Ao homem o que é do homem, a Deus o que é de Deus

VV 4 L K E R
Walker
Published in
5 min readNov 5, 2020

Oi. Você ainda lembra de mim? Não escrevi mês passado porque passei por um bloqueio criativo sem precedentes. A cada vez que pensava em fazê-lo mais me atraia a folha em branco, o silêncio, o deixar para lá. A arte de ser esperado em um lugar e não aparecer, a arte do deixar fazer-se. Aos poucos venci a paralisia com mero treinamento de digitação e alguma leitura — não muita, não pouca, apenas o suficiente para voltar a apreciar a palavra escrita.

Estive me sentindo esmagado nos últimos meses. Uma mistura de depressão com burn-out, mas o pior é aquela vozinha que fica no fundo dizendo: “você tem que produzir”, “você tem que fazer um novo texto”, “você tem que ler todos os seus livros” (não esse ou aquele, mas todos). “você tem que aproveitar cada minuto sob a pena de nunca mais poder voltar a fazê-lo”. Fora de contexto essa vozinha seria muito bem vinda, afinal, precisamos mesmo aproveitar a vida. Mas não ao custo de si mesmo. Não quando enfrentamos uma pandemia.

Em outubro eu fiz 36 anos, como ficou registrado no texto anterior. Também acabei um curso excelente sobre literatura chamado Lendo nosso Tempo, mas percebi que já estava apurado e sem condições de lidar com a pressão quando, ao cabo das cinco semanas, mesmo fazendo um curso tão interessante e que efetivamente vinha de encontro à minha pesquisa em poéticas, eu pude dar conta das leituras designadas, quem dirá fazer as outras leituras do grupo de pesquisa e se dedicar ao trabalho diário.

Haviam também muitos relatórios, transmissões ao vivo e reuniões via teleconferência. Foi bastante natural, até, que eu estagnasse de vez em algum momento, me afundando em séries e videogames (o que foi excelente e me ajudou a superar muito o perrengue e os ataques de ansiedade, apenas não era o que eu esperava deste período onde supostamente temos que ser a melhor versão de nós mesmos).

É preciso aprender a apreciar aquilo que te faz feliz, e não aquilo que faz feliz aos outros. Com o tempo tenho visto que fazer o outro a ser feliz é a maneira como quero viver a vida, até o fim, e isso não adjudica o fato de que o que me faz feliz são outras coisas, bem específicas, e bem simples também. Aceitar minha própria mortalidade, enfim, passa por aceitar que não aceitamos a morte, e isso é a fonte de todo o conflito. Também pode ser onde se descansa.

Gilgámesh por Enkídu, amigo seu,
Amargo chora e pela estepe vaga:
Morro eu e como Enkídu não fico?

Sin-leqi-unninni. Ele que o abismo viu: Epopeia de Gilgámesh. Autêntica Editora

O papel da cultura na história humana não pode ser subestimado em circunstância alguma. Quando entro em discussões com meus amigos materialistas (eu mesmo muitas vezes mais a favor do que contra eles), rapidamente me vejo defendendo aquilo que antes era motivo de chacota, como a existência da religião, ou da metafísica. E em toda discussão do tipo, como é de se esperar, ninguém muda de opinião.

Hormuzd Rassam, circa 1854, em Mosul, Iraque.

Estimam-se que as as primeiras coisas escritas foram apenas contabilidades; que a recém inventada tecnologia ainda não servia a nada além de fins práticos. Sabemos isso por causa das descobertas do arqueólogo Hormuzd Rassam, em 1853, que foi quando ele encontrou os tabletes de argila com a Epopeia de Gilgamesh nele. O mundo, então, não havia sido completamente cartografado, e os arqueólogos não tinham a a cara do Indiana Jones.

A Epopeia de Gilgamesh, uma das primeiras obras literárias já escritas, ainda por volta do ano 2100 antes de Cristo, nos dá uma dimensão deste conflito com a morte. Não apenas contra a morte, mas a favor da eternidade, pois são graças a esses registros que podemos ter um vislumbre do que era a vida então, e de como pensavam os homens. Mais ainda, a epopeia de Gilgamesh nos apresenta um herói não diferente de muitos dos que vemos hoje no cinema; e sua história segue uma estrutura muito parecida com a jornada do herói, ou, simplificando mais ainda, com a estrutura de história de Vonnegut chamada de Man in Hole.

Como calar, como ficar eu em silêncio?
O amigo meu, que amo, tornou-se barro,
Enkídu, o amigo meu, que amo, tornou-se barro!
E eu: como ele não deitarei
E não mais levantarei de era em era?

Sin-leqi-unninni. Ele que o abismo viu: Epopeia de Gilgámesh . Autêntica Editora. Edição do Kindle.

Quanto à questão de produtividade, levando em consideração as diversas formas com que lidei com as coisas até agora, só posso afirmar que o maior obstáculo a mim sou eu mesmo. Dito isso, entrego os pontos e afirmo reconciliação. Não dá para ficar juntando todos os cacos cada vez que uma coisa quebra, precisamos seguir em frente. E não perder as esperanças. Mesmo sabendo que com as diversas formas de conhecimento que tive contato até hoje, nenhuma foi suficiente para me fazer mais sábio. Olho o passado como olho o futuro, e diversamente de antes, aprendo a sorrir e relevar; tudo tem seu tempo, e para quem perde esse tempo, outra chance ainda há de chegar.

Em suma, contribuir com a cultura de uma sociedade é uma forma de fazer parte dela. Não é enganar a morte, mas é quase. Gilgamesh encenará isso quando volta para a casa, de mãos vazias porém mais sábio, livre das amarras mundanas de poder e controle. Livre da hybris, consciente de sua própria mortalidade, e do irremediável que ela representa, Uruk e ele se tornarão, finalmente um só. É um final singelo e comovente para uma obra de quase cinco mil anos. Quisera eu saber finalizar uma obra assim.

Voltei a escrever aqui, enfim, mas a custos ainda não calculados — a musa inspiradora ainda é o prazo e o som engraçado que eles fazem quando passam voando pela gente. Talvez escrever menos e com mais frequência, cerca de mil palavras no máximo. Quanto ao novo layout, está em testes: testando a minha paciência. Porque o medium inventou isso de design da própria página? parece ter voltado à era blogger de 2004. Se eles não inventarem alguma coisas para solucionar essa precariedade, devo reverter ao layout antigo.

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