VV 4 L K E R
Walker
Published in
5 min readJun 24, 2020

--

Decidido a me tornar uma pessoa melhor, começarei a fazer terapia. Ninguém tem desculpa para ser um fardo para os outros. O maior motivo que me fez querer progredir foi que, toda vez em que me perguntava o que estava errado comigo para querer fazer terapia um silêncio indecoroso tomava conta de meus pensamentos, ecoando o desconhecimento de quem faz a pergunta. O que há errado comigo para não fazer?

Porque sempre haverá motivos para não se aprofundar, para não se embrenhar nos recantos obscuros de si mesmo e não encarar nossas fraquezas; nisso somos todos iguais sem exceção, mas é possível lograr alguma grandeza na mesma medida em que se esforça para notar em que se é pequeno. Essa é a questão levantada já por Wilhelm Reich (1897–1957) quando chama atenção do pequeno homem, pedindo para que escute:

Diferes dos grandes homens que verdadeiramente o são apenas num ponto: todo o grande homem foi outrora um Zé Ninguém que desenvolveu apenas uma outra qualidade: a de reconhecer as áreas em que havia limitações e estreiteza no seu modo de pensar e agir. Através de qualquer tarefa que o apaixonasse, aprendeu a sentir cada vez melhor aquilo em que a sua pequenez e mediocridade ameaçavam a sua felicidade. O grande homem é, pois, aquele que reconhece quando e em que é pequeno. O homem pequeno é aquele que não reconhece a sua pequenez e teme reconhecê-la; que procura mascarar a sua tacanhez e estreiteza de vistas com ilusões de força e grandeza, força e grandeza alheias. Que se orgulha dos seus grandes generais, mas não de si próprio. Que admira as idéias que não teve, mas nunca as que teve. Que acredita mais arraigadamente nas coisas que menos entende, e que não acredita no que quer que lhe pareça fácil de assimilar

Verbalizar a intenção publicamente é apenas uma forma de registrar o inevitável — do meu ponto de vista todos encontram mais cedo ou mais tarde o escape que precisa para conviver, ainda que em medida mínima, com suas próprias neuroses. Até mesmo porque a cura nunca é garantida e o trabalho é árduo, só o que muda é o método, e eu tenho tentado muitos, mesmo sem saber que me tratava, mesmo sem saber que precisava me tratar.

O maior empecilho, como homem, para procurar terapia, é ser visto como fraco ou vulnerável, sempre. É um circuito entranhado que dificilmente se quebra, e que tenho convivido amiúde na minha vida. Afinal, desde muito novo meninos são testados para saber onde se encontra exatamente seu ponto de inflexão — e estes ritos de passagem podem ser bastante cruéis às vezes. E mesmo que se escape às cobranças mais atrozes, a sociedade, senão a linguagem e a cultura, tendem a lembrar continuamente que homens tem um código rigoroso de ação e pensamento, e que escapar a eles significa qualquer coisa, menos que se é homem.

Eu tive sorte, de certa forma, de ser criado por um pai presente, não violento e não preconceituoso. Suas lições eram implícitas na sua maneira de agir e de viver e foram avidamente absorvidas por mim em meu desenvolvimento. Porém muitos de seus conselhos se tornariam irônicos quando visto sobre a ótica de quem sabe que ele não era meu pai genético (imagino que ele se esquecia também). Quando dizia para eu comer mais que estava com “cintura de bailarina”, por exemplo, não era apenas preconceito que ele exprimia, mas ignorância sobre qual tipo de corpo eu estava destinado, por questões genéticas, a ter.

Claro, isso são águas passadas e tenho certeza que ele fez o melhor. Foi só uma fase, portanto, a rebeldia que me tomou nas imediações daquele ano em que soube de tudo — fumar e beber em excesso deixou de ser exceção para virar regra, e tudo se tornou intenso de forma que eu mal posso imaginar hoje. Um amigo que cheirava cola morreria no ano seguinte, sozinho em seu quarto, enquanto que outro, após sucessivos envolvimentos com criminosos acabou levando um tiro na boca que saiu sem causar muito dano igualzinho naquela sequencia final do filme Clube da Luta. Essa amizade, em especial, foi uma das poucas na minha vida que desvaneceu para completo esquecimento.

Clube da luta inclusive foi uma coisa que efetivamente fizemos entre nós por um tempo. Uma destas pessoas, que se juntou tardiamente ao grupo, sendo, portanto, o mais perseguido nas brincadeiras, se assumiu homossexual ano passado. Veio através de mensagem privada me dizer que nunca falou antes porque não sabia qual seria a reação. Isso diz muito sobre a imagem que projeto nas pessoas e no mundo ao meu redor, e isso é muito grave. E quando se tem mais de trinta, quando se esta há mais tempo no mundo se criando do que sob o teto dos pais sendo criado, nem dá para culpar os outros mais; e eis que a resposta de “porque fazer terapia” surge, como mágica.

É um absurdo que estejamos chegando ao fim do século, fim de milênio, ostentando os índices de analfabetismo, os índices dos que e das que, mal alfabetizadas, estão igualmente proibidos de ler e de escrever, o número alarmante de crianças interditadas de ter escolarização e que com isso tudo convivamos quase como se estivéssemos anestesiados.

A importância do ato de ler em três artigos que se completam (Coleção Questões da Nossa Época) (Freire, Paulo)

Uma semana sem sair de casa tem me dado muito o que pensar sobre o valor da cultura e do quanto devemos respeitar aqueles que a têm e a cultivam. Mesmo passando dias e dias às voltas com leituras, filmes, séries, games, música e estudos eu não sinto que avancei nem mesmo, digamos, quinze por cento daquilo que queria avançar; um dia não basta, dois dias não bastam e nem uma semana. Olho minha cadeira de estudos e já sinto repulsa. Nesse horizonte não se veem terras, e, à deriva, a procrastinação toma conta. Não é que falte tempo, todos os dias tem o mesmo numero de minutos, e não é que falte um objetivo claro, mas é quase. Como é que Paulo Francis, Jô Soares e Robert Crumb conseguiram?

Nestes momentos eu tento usar algum destes métodos consagrados como o pomodoro e também gosto de biografias como a que Isaacsson fez sobre Da Vinci, mas mesmo começar precisa de um incentivo. Eu adotaria um senso de urgência se isso fosse de bom grado para os outros. Estou firmemente confiante de que as micro-sociedades da internet irão prosperar e gerar sinergia através do compartilhamento de ideias e interesses afins. Talvez muito mais do que isso, mas já não saberia com certeza. A militância de sofá, neste lockdown, finalmente encontrou seu momento de brilhar. E no entanto, estamos em luto, estamos depauperados demais com tudo o que houve — até mesmo para brigar uns com os outros sobre filigranas ideológicas.

Essa semana foi até um fio de esperança no campo político — vimos sinais claros de Brasília de que as instituição não apenas estão funcionando como estão implacáveis — o blefe do golpe militar foi revelado e novas maneiras de pensar a representatividade de uma país sem representação se configuram. Uma catástrofe nunca fará sentido, mas algumas pessoas meio que chegam bem perto — seja através do humor seja através da arte. A anestesia não vai durar muito e já se pressente uma reviravolta em breve.

--

--