CRÔNICA | 920

gabriela feitosa
quitandadapretablog
4 min readFeb 3, 2021

Para mim, parece relativamente fácil saber se alguém não é do Ceará. Basta ter um amigo de Aquário extremamente observador por perto e estar num terminal de ônibus às 9h30 de um sábado. Foi o que aconteceu outro dia comigo, enquanto esperávamos — eu e meu amigo de Aquário — um outro amigo de Sagitário na fila de embarque da linha “920 — Caça e Pesca/Papicu” em um terminal de ônibus de Fortaleza.

— Com toda certeza aquela moça ali não é daqui, do Ceará! — disse meu amigo sobre uma mulher que acabara de chegar com uma criança próximo de nós.

— E como tu sabe? — perguntei, mas já julgando também. Tinha certeza de que ela não era daqui. Nem ela, nem a criança, que por sinal era muito quieta.

— Só olhar as roupas dela — ele cochichou no meu ouvido.

A mulher usava um vestido de tom que nem me lembro direito. Acho que era rosa, mais ou menos no tom de sua máscara. E usava aquelas sandálias crocs (acho que esse foi o demarcador principal). Branca, olhos claros, cabelos meio alourados. É, não era daqui. E se fosse, imitava alguém de São Paulo.

— Ela se veste diferente da gente.

— Diferente em quê?

— Parece que a uns dois anos à nossa frente. A gente se veste meio 2016/2017.

Pensei na minha roupa. Pronta para a praia, eu vestia uma saída de banho branca rendada, biquíni azul na parte de cima e uma cor que nem sei definir na parte de baixo. Só depois, já dentro da água da Praia da Sabiaguaba, fui observar que a calcinha me fazia parecer estar pelada.

Mas concordei com ele. Acho que me visto mesmo meio 2016, meio 2017. Eu mal tinha arrumado os cabelos naquele dia. Só os juntei em um coque mal feito e calcei meus chinelos. Deus me livre usar crocs! Acho coisa de paulista. Aliás, sudestinos no geral. E sulistas também.

O nosso amigo sagitariano estava atrasado quase uma hora, mas penso que foi proposital, só para a gente saber o desfecho da história daquela mulher não cearense.

Ela esperava alguém com a criança. Esse alguém chegou tempos depois. Era um homem alvo como ela, mas bronzeado. Cumprimentou a mulher e tomou a criança nos braços.

Eles trocaram algumas palavras. Acho que eram aqueles casais que compartilham a guarda após separação. Fiquei pensando há quanto tempo e por que eles terminaram. E isso me fez pensar nos meus términos também — muito mais fáceis, já que não tenho criança para criar.

Chego à conclusão de que eu e aquela mulher desconhecida cumpríamos nossa cota de homens medianos (espero que isso não ofenda o rapaz). Mas acho que você sabe do que estou falando. Outra coisa relativamente fácil de saber é quando um homem é mediano, entende? Desses que tiram nosso brilho, energia, filhos.

Não sei exatamente o porquê, mas ela me lembrou Macabéa, do livro de Clarice, de quem gosto muito. Uma vítima. A diferença é que a gente sabe que Macabéa é nordestina.

Juntos, o homem e a criança embarcaram em um ônibus (não o que eu e meu amigo esperávamos) e partiu. A mulher ainda ficou alguns minutos esperando não sei o quê. De repente, achava que a criança choraria para ficar com ela. A verdade é que não vi quando ela foi embora. Como meu amigo atrasado estava demorando mais que o normal, eu e o aquariano resolvemos dar uma volta pelo terminal. Depois de um tempo, o amigo desembarcou, com suas roupas 2016, e pegamos o 920.

Chegamos tarde à praia. Eu nunca tinha ido àquele ponto da costa de Fortaleza, mas sempre ouvi sobre a beleza do encontro do rio com o mar. De repente, fiquei imaginando como seria a Macabéa na Sabiaguaba. A primeira, destituída de beleza; e a segunda, que parece concentrar tudo de mais sereno e belo no mundo. Como seria esse encontro?

E como seria o encontro da Macabéa do terminal de ônibus com a praia? Será que ela entraria de crocs no mar? Feia, virgem, tímida, solitária, ignorante, alienada e de poucas palavras. Eu também era Macabéa naquele momento. Exceto a parte do virgem.

Da mesa onde estávamos, dava para ver um homem limpando peixes na barraca e tão logo eu fiquei imaginando se fosse eu ali sendo abatida. Essa seria a minha morte: um homem mediano descolando a mais fina camada da minha pele. Eu e a desconhecida tínhamos mais em comum do que eu imaginava. Uma história que acontece em estado de emergência e de calamidade pública.

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gabriela feitosa
quitandadapretablog

Mulher negra comunicadora. Jornalista formada pela Universidade Federal do Ceará (UFC) com passagem pelo Jornal O POVO, Yahoo Brasil e mais.