CRÔNICA | contra o extermínio de mim

gabriela feitosa
quitandadapretablog
3 min readDec 3, 2019

Pegava o ônibus para o show de Luedji Luna em Fortaleza quando me atentei: havia um tempão uma música dela ecoava na cabeça. O trecho diz o seguinte:

Cabô,

vinte anos de idade

Quase vinte e um

Pai de um, quase dois

E depois das 20 horas

Menino, volte pra casa!

Até lembrei de, quando eu era pequena, mamãe dizia a mesma coisa para mim e meus primos. Voltar cedo para casa é quase lei numa terra em que se é Juan Ferreira dos Santos. Nome muito bonito, inclusive. Devem existir, nas minhas contas, 3 ou 4 milhões de Ferreira dos Santos por aí. Mas Juan Ferreira dos Santos, filho de Dona Tânia, só existia um. Depois das oito horas tudo acontece, sabe?

Não sei se lembra muito bem dessa história. O adolescente de 14 anos que foi a s s a s s i n a d o. Detesto a palavra, mas reconheço seu impacto. Daí que até concordei com um colega (com quem quase nunca concordo) quando ele disse outro dia que as manchetes dos jornais estavam equivocadas. “Ele não foi morto, foi assassinado”. Percebe a diferença?

Até procurei o significado da palavra para ver o que é que tinha de tão assustador no verbo.

“Destruir a vida de (um ser humano) por ato voluntário (ação ou omissão); matar”.

Matar.

Taí outra palavrinha que dispensaria para os meus. Aparentemente a polícia não pensa assim. Ou alguém faz a polícia não pensar assim. Ou ninguém pensa e é isto mesmo, atira para o chão e vê no que dá. Em nada. A culpa é de quem mesmo? Ou, como diz Luedji nessa mesma música:

Quem vai pagar a conta?

Quem vai contar os corpos?

Quem vai catar os cacos dos corações?

Quem vai secar cada gota

De suor e sangue?

Mas, voltando ao dia do show (28 de setembro, a quem interessa), pisava naquela grama de uma área do parque do Cocó, olhava para um amigo meu, também preto, quando comecei a chorar. Pela emoção do momento, mas também pela emoção da ancestralidade. E pelo Juan e pela menina Ágatha. Que merda, odeio escrever sobre isso!

Estava trabalhando um dia depois que fuzilaram as costas da criança. Era sábado, dia de plantão em um redação de um jornal cearense que, há poucas semanas, noticiava Juan. Precisei noticiar Ágatha. No Twitter, a galera comentava avidamente sobre isso. Uma menina de oito anos foi assassinada. Meu Deus! Oito anos. Um absurdo difícil de engolir, bem sei. No mesmo sábado, somente rezava para que o expediente logo terminasse. Que merda, eu odeio escrever sobre isso!

Talvez pela proximidade das datas, das formas de matar, das desculpas esfarrapadas, pelo absurdo como um todo, as mortes de Juan e Ágatha reacenderam debates dentro de seus próprios limites. Quem mora nas periferias de Fortaleza, no entanto, já sabe que precisa ir para casa cedo. Menino, volte pra casa. A prisão às vezes é aqui mesmo, dentro da gente, dentro do outro. Mas, quem garante a proteção?

Talvez pela proximidade ancestral que nos une, as mortes de Juan e Ágatha reacenderam um debate dentro de mim mesma. Ia começar esse texto dizendo que, contra o extermínio de mim, aviso que estou viva. Mas estou mesmo? Quase dez da noite quando as últimas palavras são digitadas. A lei das oito da noite é silenciosa, assim como tantas violências. Contra o extermínio de mim, vou para casa, pois cabô.

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gabriela feitosa
quitandadapretablog

Mulher negra comunicadora. Jornalista formada pela Universidade Federal do Ceará (UFC) com passagem pelo Jornal O POVO, Yahoo Brasil e mais.