gabriela feitosa
quitandadapretablog
3 min readSep 23, 2019

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CRÔNICA | em 2003, alguém fazia aniversário

existe algum tipo de ligação angustiante que, vez ou outra, me faz retornar às memórias mais antigas. papo de gente que tem mais de 30, bem sei. eu, que mal cheguei aos 21, vou tateando com receio as paredes de um futuro que se aproxima. sempre tive medo do passado, apesar de querer voltar pra ele em alguns momentos. mais especificamente voltar praqueles momentos de completude em que, muito criança, acordava cedo pra ir à escola e isso bastava. nada me basta mais, agora. quase nada basta. também sempre tive medo do futuro, mas ele chega todo dia. sem pensar muito, apenas aceito: as mudanças, os novos rostos que se fazem presentes na minha semana, meu velho reflexo no espelho. tenho a impressão de que sempre estive aqui de alguma forma. sempre fui minha, dos outros, de quem tivesse coragem de estar perto, de tocar. totalmente pretensioso o mistério, sei disso. acabei por me tornar alguma coisa que mal consigo entender. mas, meus lugares são muitos, gosto de pensar assim. há quase um ano, completava 20 e me assustava a possibilidade de uma idade que começa com 2. medo bosta e meio besta esse. se mamãe me ouvisse falando isso - ela no auge dos sessenta e tantos - riria aquela risada que só ela tem. apesar disso, o número 2 sempre foi um número que muito gostei. cheguei a considerar meu número da sorte. nunca soube muito bem decidir por coisas. cor preferida, livro de cabeceira, música da minha vida e todas essas coisas bobas que parecem definir alguém. mal li tudo que deveria ter lido, mal ouvi todos os sons - e penso que será mais dificultoso, já que o jornalismo anda me tirando também a audição (brinco disso com um amigo meu, apesar de relativamente preocupada). todo dia de manhã, indo ao trabalho, tenho vontade de descer na parada seguinte e andar sem rumo por aí. andar por andar, sem pretensão da chegada. aquela coisa clichê sobre fugir de tudo, você entende? não sei por qual motivo, exatamente, tenho pensado muito no meu aniversário. a data nunca me foi importante. diria que sempre me foi um pouco triste, na verdade. mas, torço pra que, pensar muito nos 21, tenha algum significado ainda a ser descoberto. a verdade é que até aqui, deitada no sofá da minha pequena casa no centro da cidade, as mudanças foram muitas. e talvez seja isso que tanto me emociona. mudanças do outro, minhas, do chão que piso/já pisei. eu estou viva. 21 anos procurando significados e dando sentidos místicos às coisas só pelo prazer do mistério, da história divina mal explicada. por que é que chove, afinal? e por que é que se ama tanto assim? quanto amor cabe nesse corpo pequeno, tímido, apressado, mas também paciente?
a dualidade das coisas é o que me explica, acredito. duas naturezas, duas substâncias, dois princípios. dois eus, dois você, dois nós. talvez esse seja o prazer da convivência comigo: dispensar a explicação racional. aceito as justificativas divinas e também as faço. 21 anos de sentimentos ora explicados, ora bagunçados. vinte e um. em 2003, alguém fazia aniversário. talvez eu, talvez você, talvez nós dois. em 2019, eu te amo. sem nenhum talvez, eu te amo. em 2003, alguém amava.

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gabriela feitosa
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Mulher negra comunicadora. Jornalista formada pela Universidade Federal do Ceará (UFC) com passagem pelo Jornal O POVO, Yahoo Brasil e mais.