gabriela feitosa
quitandadapretablog
2 min readFeb 7, 2020

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CRÔNICA | temporal — parte 1

quando o ano virou, senti minha mente vazia vazia vazia. vinte vinte. amo e odeio planos. é chato, tem que cumprir. mas me arrisquei em fazer 10. faz tempo que não escrevo, só rabisco frases desconexas no caderno/celular. não quero ser refém desse exercício, apesar de ter escolhido ele como profissão e hobby pessoal. às vezes odeio ter que escrever, mas sou extremamente apaixonada pela palavra grudada na superfície. qualquer superfície, te digo. tipo a textura do guardanapo barato do bar mais derrubado do Centro da cidade. escrever me faz querer vomitar. a cerveja que tomei ontem também. não tenho medo da morte, diretamente. mas morro de medo de doença. você consegue me listar dez pessoas que ficaram gravemente doentes e se curaram?

outro dia visitei uma tia minha que está doente. uma amiga de infância também passou por isso esses meses. nosso corpo não vale de nada, pensei. nem mesmo a pele que se estica a cada vez que amo mais. nem mesmo a parte mais sensível tocada pelo outro. mesmo a lembrança mais doce ou mais dolorosa: tudo se vai quando o corpo começa a desacelerar. me sinto assustada e um tanto impotente. quando criança, eu e essa amiga costumávamos planejar nossas vidas de acordo com a idade. a gente combinou de ter muitos namorados antes de casar, uma boa profissão e manter o contato sempre que possível. nada cumpri. faz muito tempo que não a vejo, apesar de tentar. e até entendo nossa fuga uma da outra. a vida é que faz questão de desalinhar os planos, às vezes. sol em aquário, faz parte.

se não fosse por essa minha insistência em revisitar o passado, muita coisa poderia doer bem menos. talvez eu fosse menos nostálgica e apegada ao que se foi. talvez meus amigos me achassem menos chata, talvez fosse menos fechada com minha mãe e talvez conseguisse amar sem ser cruel. há muita coisa sobrea a qual não consigo falar. tenho medo de não ser ouvida. mas isso são só talvezes e se eu pudesse ter certeza de algo, queria assegurar que pudesse ter orgulho de mim mesma quando, um dia, meu corpo também ficar mais lento. gosto de pensar nos bons sentimentos que ficam após o toque. e gosto de pensar que tocar a mim mesma seja a coisa mais honesta a se fazer.

nesse meio tempo de vinte vinte, prometo deixar o vazio vazio vazio aqui. ele também é importante. a calma e paciência são, por vezes, características que não possuo, mas preciso. há um temporal emergindo. e há pessoas doentes no mundo. odeio a possibilidade da não cura, mas deixarei que a natureza decida onde esse sol em aquário há de nos levar.

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gabriela feitosa
quitandadapretablog

Mulher negra comunicadora. Jornalista formada pela Universidade Federal do Ceará (UFC) com passagem pelo Jornal O POVO, Yahoo Brasil e mais.