Eu não sei passar como o tempo

gabriela feitosa
quitandadapretablog
5 min readJan 9, 2022

História de amor à distância grafada a lápis em um livro de Lya Luft

FORTALEZA

Li o primeiro livro de Lya Luft em 2016, ainda desavisada sobre o mundo de mistérios e enigmas que traz a autora. “O rio do meio” me acompanhou por meses, nessa empreitada adolescente de descobrir quem se é, o que é o tempo e o que fazemos dele.

Maravilhada, me apegava a cada palavra como se elas pudessem me traduzir, fantasiando uma personalidade leve e sossegada em meio ao calor de Fortaleza. À época, onde nem se imaginava coronavírus e companhia, e trabalho e faculdade não me tomavam todo o tempo, adorava caminhar pelo Centro da cidade, onde moro desde muito pequena.

Tenho uma lembrança muito carinhosa (acho que muitos cearenses vão se identificar) de ir todos os anos, ao lado dos meus pais, comprar o material escolar na Praça dos Leões. “É livro usado, senhora?”. Quando o debate sobre ~ocupar o Centro da cidade~ ainda não tinha tomado conta do Twitter (e muito menos eu tinha um), contemplava silenciosamente — ou em meio aos gritos de desconto — a praça, os leões, a Rachel de Queiroz, escritora homenageada com uma estátua no local.

Numa dessas voltas acabei por comprar “O tempo é um rio que corre”, também de Lya. A autora nos deixou numa quinta-feira, 30 de dezembro — ou como ouvi esses dias: “Depois dos 60 a gente não morre, minha filha, a gente se muda”. Dos clichês que ainda gosto e me permito dizer, Luft é eterna, assim como seus escritos, que percorrem muito bem as várias fases da vida e do tempo. “As contradições do tempo são as nossas: ele mata, ou eterniza, e para sempre está conosco aquele cheiro, aquele toque, aquele vazio, aquela plenitude, aquele segredo”.

A pequena história que relato agora está grafada nas páginas de “O tempo é um rio que corre”, mesmo que não pela autora em si. Somente um bom livro é palco para inesquecíveis histórias de amor, e para as esquecíveis também. A vida é feita desses episódios perdidos, marcados a lápis em páginas amareladas, a fim de serem encontrados por aí, anos depois, numa praça, sob o sol do Ceará.

12/05/2014

Oi! Não há como não lembrar de você com o passar das horas. O tempo corre e, por várias vezes, ele me traz você: em uma música, um pensamento, ao tocar a minha própria pele tão tua. Eu te espero sem o contar rítmico das horas. Eu te espero com o coração, repleta de desejos revelados e ocultos. A tua essência transcorre entre os meus dedos….

Para você e eu! P. H*

13/05/2014

Será que esqueceu? Eu não consigo esquecer de você! Sinto uma energia vibrante dentro de mim ao lembrar de você. E ao lembrar de você, lembro também de mim!

Me recordo que quase sempre estivemos distantes e que em algum momento algo me religou à ti. E foi mágico, como sempre é! Saudades…

Sem data

Eu não sei de ti! Me sinto angustiada…. Eu sei que sua vida irá transcorrer aí por um tempo. Eu queria estar junto, além dos sentimentos. Queria te encontrar, te abraçar, ouvir você falar do congresso, dos cursos, das pessoas, do nível de sódio na água (risos)… Qualquer coisa.

Saudade é coisa que aperta e é ruim demais. Amor é coisa grandiosa, que encontra remédio para tudo. Eu rezo para que o nosso amor cresça na distância e supere o tempo.

Sem data

Só por hoje apreciaria as tantas gotas de chuva que lá fora caem. Feliz pela clausura imposta pela tua falta, triste porque você não pode ver…

Sinto saudade ao lembrar o quão perfeito somos juntos: nos olhos que se encontram, no roçar da nossa pele. Desejo estar nos teus braços e, se pudesse, simplesmente ia.

É no teu abraço que estou desejando morar, nas nossas loucuras pela madrugada.

Não mais datarei o que te escrevo, na esperança de que a gente se torne atemporal.

Sem data

A tristeza chega com as tuas palavras mudas. Eu já conheço esse teu jeito, essa loucura que vem de vez em quando e me faz tão mal. É como se eu ouvisse uma única nota de piano e não compreendesse.

Não compreender me dói. O teu “se deixar levar” também me dói. Por favor, não vá.

Sem data

Desamor e desencanto: foi assim que você temperou o meu dia com aquelas palavras. Você disse que não pode ser, que não quer a sua vida nesses termos e eu não me contento com metades. Esperneio como uma criança. A letra tá horrível, trêmula. Desassossego.

Sem data

Não sei passar como o tempo.

Sem data

A noite chega, carregada de uma dor sufocante no peito. Será que você pensa em mim? Será que tá tudo bem por aí? Estou tão longe, já não te vejo mais.

Anos depois, quarentenada em meu quarto e triste pela partida de Lya, reabri o livro para folhear esses registros. Fico pensando o que aconteceu com esse casal. Será que a moça superou o sumiço de P.H? Será que ele chegou a ver isso? E, se visse, como reagiria?

Penso que de onde Luft está agora, ela tem as respostas. Fazendo de outro livro seu próprio diário (como a moça ali de cima fez), ela escreve reflexões sobre a morte, a perda, a saudade ou sobre temas ainda não entendíveis para nós. O tempo sempre foi um mistério para mim também. Como é possível não estar mais aqui um dia?

Neste período assombroso que vivemos, a obra da gaúcha ganha novos significados. O poder da literatura de Lya está também nisso de falar sobre o que sangra, o que causa dúvida, angústia, aquilo que provoca. Essas são as eternidades que falamos.

Particularmente, gosto de um trecho onde Luft diz (e encerro com ele) que somos “cúmplices de nós mesmos nesse solitário brinquedo de existir. Alternamos trabalho duro com euforia cintilante, desejo de se ocultar atrás de fantasias e o ímpeto de arrancar as máscaras e finalmente ser”.

Parafraseando o diário, “eu não sei passar como o tempo”. Mas, ele sabe, então, por favor, passe.

*Resolvi não colocar o nome completo do rapaz, como está escrito no livro, por questões de segurança (vai que a gente causa um caos na vida alheia).

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gabriela feitosa
quitandadapretablog

Mulher negra comunicadora. Jornalista formada pela Universidade Federal do Ceará (UFC) com passagem pelo Jornal O POVO, Yahoo Brasil e mais.