Mês de maio é sempre muito longo

gabriela feitosa
quitandadapretablog
3 min readMay 26, 2020

O coração batia forte demais quando acordou. Sabia que aquilo não era normal, mas acontecia há tanto tempo que a tarefa de ir ao médico acabou por se mostrar desnecessária. O tempo corrido também não permitia esse cuidado. No fundo, já tinha se acostumado com a intensa correria dentro de si. O cabelo era parte importante nesse processo de acordar pro dia que vinha. Sempre que se atrasava, usava o cabelo como desculpa. “Demora taaanto pra arrumar”, dizia bem humorada.

Enquanto tomava café, dividia a atenção entre o pão e a televisão à sua frente. Há quase sete anos morava no mesmo lugar: um apartamento pequeno no Centro da cidade. Uma história como qualquer outra. Muita gente morava ali há muito tempo também. E era isso que não entendia. O coração batia forte demais quando acordou. Queria mudar, disso sabia. Mas quando se quer mudar, a gente começa por onde?

Recorria com frequência aos guias. Tinha noite que ia dormir implorando pra sonhar com qualquer resposta. Deveria voltar à cidade onde nasceu? Trezentos e tantos quilômetros. O abraço preto da mãe seria muito bem vindo. Mal lembrava do cheiro do cabelo dela. Fazia muito tempo que tinha saído de casa. Foi num sonho que soube que deveria sair dali. E foi a mãe que, carinhosamente, lhe disse que um bonito futuro a esperava.

Resolveu deixar o cabelo solto naquele dia 15. Há algumas semanas tinha feito um corte bonito, que deixava o cabelo ainda mais volumoso. Gostava como os cachos ornavam com o batom vermelho cor de melancia — o preferido de sua mãe. Estava cada dia mais parecida com ela e gostava disso. Até a vontade constante de mudança, que a filha brincava dizendo ser culpa dos signos. No fundo, sabia que a inquietação da mãe — e a sua — era muito mais pelo desejo da melhora.

Desligou a TV, calçou as sandálias, olhou pra imagem de São Jorge na parede. Foi um presente, mas não lembrava de quem. Pediu baixinho por proteção, trancou a porta e desceu as escadas. Um dos vizinhos passava no corredor. Ela adorava Claudinho. Vez ou outra ele lhe trazia uma janta muito farta e sempre perguntava como estavam os dias.

Bom dia. Bom dia. Tô indo no mercado, minha filha, você vai querer alguma coisa? Nada, mas muito obrigada. Falei com a mãe ontem de noite, ela te mandou um beijo. Depois vou ligar pra ela, contar que finalmente consegui trocar o sofá com a vizinha lá de cima. Ficou foi bonito, depois passa lá em casa pra ver.

Subiu no ônibus, não tão lotado como no dia anterior. Sabia que estava atrasada. Tudo bem, ia falar do cabelo. Sentou numa cadeira sem perceber a marca da chuva. Xingou baixo, mas não era grande problema. Nem percebeu que alguém lhe ligava. Só atendeu na sexta vez. Reconheceu a voz lhe pedindo pra voltar depressa pra casa. Fez o percurso imaginando os piores cenários, mas tecendo coragem pra enfrentar o que fosse. Quando chegou em casa, viu a mãe emocionada segurando a imagem de Jorge. Sonhei com vocês, minha filha. Vim embora. Mudei de novo. Espero que não seja tão repentino. Trouxe esse batom pra gente usar, achei que combinaria.

A cor era diferente daquele que sempre usava. Mas tudo bem. Elas também eram.

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gabriela feitosa
quitandadapretablog

Mulher negra comunicadora. Jornalista formada pela Universidade Federal do Ceará (UFC) com passagem pelo Jornal O POVO, Yahoo Brasil e mais.