Índio quer Michael Douglas?
Já tem alguns anos que a marchinha sobre índio querer apito ganhou contornos diferentes no carnaval do Rio. Numa homenagem problematizável, problemática e cheia de matizes, era possível ouvir, em 2016, cantos de “índio quer haxixe, bala, doce e MD”, em substituição ao “índio quer apito, se não der, pau vai comer”. A droga MDMA ou MD, vulgo Michael Douglas, ainda aparecia como novidade para muita gente por aqui.
No desfile-desbunde feito pelo incansável e metanfeminadamente abastecido bloco Boi Tolo no carnaval deste ano, duas meninas pulavam e acrescentavam um novo elemento ao grito de guerra tribal de não-indígenas. “Índio quer haxixe, bala, doce e MD. Se pá, uma gota!”, cantarolavam e sorriam, felizes e lindas. A gota é uma versão líquida do LSD e circula bastante no verão.
A referência às drogas sintéticas, atribuídas a essa figura coletiva de um indígena que só existe no carnaval, me fez pensar sobre certo desejo coletivo de uma drogadição aquém do moralismo, apontando para a liberdade e para o consumo descriminalizado de, pelo menos, algumas substâncias. Medida que levaria a muitos benefícios sociais e para a saúde pública. Um sonho.
Imagino que os excessos de que se têm registro sejam agravados pelo caos social vivido hoje pelo país. O Brasil me obriga a beber, dizem muitos. Assim como se consome maconha e cocaína no asfalto, também se faz na favela: lança-perfume é droga popular em lugares como a Nova Holanda, na Maré, e outras comunidades.
Há dois anos, o Ministério Público pediu políticas públicas à Funai, para combater o alcoolismo e o consumo de drogas ilícitas entre povos indígenas. Parece que está todo mundo mal, penso, ao mesmo tempo em que vejo com bons olhos a circulação de mais informações e interesse de não-indígenas por substâncias xamânicas como rapé e ayahuasca, cujo consumo está ligado a rituais que buscam conexão com elementos espirituais.
2018 trouxe problematizações maravilhosas sobre a questão indígena, que fizeram pensar se fantasias de carnaval eram homenagem ou desrespeito. Representando o povo Kalapalo, do Alto Xingu, no Mato Grosso, a jovem Ysani Kalapalo afirmou na época que não via problema com o uso de cocar. “É troca, não discriminação”, disse.
Acho esse tensionamento importantíssimo, e também sua extensão para o “Dia do Índio”, “comemorado” principalmente nas escolas, neste 19 de abril. Em entrevista à MultiRio no ano passado, o escritor Daniel Munduruku afirmava que as crianças acabavam sendo levadas a visões equivocadas e discriminatórias, em vez de terem acesso a uma pedagogia voltada para o respeito. Torço bastante para que a data fomente, cada vez mais, acesso a culturas negligenciadas, costumes, línguas, visões não-hegemônicas de mundo.
O mundo perde a oportunidade de ser melhor quando permitimos o assassinato de nossos povos contemporâneos. Além do português, cerca de outras 180 línguas são faladas por aqui. Muitas estão se extinguindo.
Imagine a variedade de interpretações do humano, da natureza, a riqueza de cosmogonias, histórias, memórias e culturas que perdemos a oportunidade de conhecer e enriquecermos a todos, quando as ignoramos.
A Fundação Nacional do Índio que, como o nome diz, deveria atender aos interesses dos povos originários, é regida por vontades do setor agropecuário. A última notícia da influência da bancada ruralista vem esta semana, com a informação, nos jornais, de que o “governo” federal, a pedido da bancada do boi, troca até a próxima segunda-feira o comando da fundação.
Temos muito a aprender com esses brasileiros. Para quem deseja se informar melhor, indico a Mídia Índia, agência de notícias feita de indígenas para indígenas, ótimo exemplo para desmistificar a ideia de que convivemos com pessoas paradas no tempo. Outro exemplo é o Coisa de Índio, com registros importantes sobres os guajajaras e os krikatis.
Permita-me citar um exemplo um pouco bobo, mas sempre lembro do dia em que pataxós, guaranis, tumbalalás e outras etnias protestaram contra a tenebrosa PEC do “teto de gastos” em Brasília, urinando na entrada do Planalto. Apenas acho que devíamos incorporar a prática aos nossos protestos! Puta performance política.
Eu, que amo música, louvo muito a produção do pessoal do Uaná System, cujo nome provém do tupi-guarani (uaná significa vagalume), exemplo fantástico de multiculturalismo amazônico, que une referências dos povos originários ao eletrônico e psicodelias audiovisuais.
Proteger a natureza é coisa tão básica, e ignoramos muito as pessoas que mais se voltam à proteção do ecossistema e práticas não predatórias de viver nessa terra.
“Nunca como hoje, nos últimos 30 anos, o Estado brasileiro optou por uma relação completamente adversa aos direitos dos povos indígenas. O governo ilegítimo de Michel Temer assumiu uma política declaradamente anti-indígena pondo fim à demarcação e proteção das terras indígenas, acarretando a invasão dessas terras por empreendimentos governamentais e privados. Impulsionou ainda o desmonte das instituições e políticas públicas voltadas aos povos indígenas e está sendo omisso e conivente com as práticas de discriminação e violência de toda ordem contra os povos e comunidades indígenas até mesmo em territórios já regularizados”.
Esse texto faz parte da convocatória do Acampamento Terra Livre, maior mobilização indígena do país, que acontece entre os dias 23 e 27 de abril, em Brasília. Eles convocam os diversos povos e chamam todos de parentes: algo que devíamos lembrar de fazer, pois somos parentes deles também.