Coronavírus, tecnologia e relações afetivo-sexuais: o Grindr em tempos de pandemia

Ettore Medeiros
R-EST
Published in
6 min readMay 4, 2020

Os tempos de coronavírus trouxeram inseguranças que extrapolam as questões de trabalho, economia e saúde física. Para além do próprio temor do vírus, temos observado outro medo: o da solidão. A chegada da quarentena exigiu frear a socialização face a face: menos toque pele a pele e mais toque de recolher. Se até o aperto de mão teve de ser reinventado, como ficam as relações afetivo-sexuais, principalmente para aqueles/as que não estão passando a pandemia acompanhados/as de parceiros/as?

Boates, bares e saunas foram fechados. Os cinemas estão vazios. Ir até a casa de alguém pode significar enfrentar um campo minado por onde circula o vírus. É nesse contexto que o uso da internet e das plataformas de mídias sociais se intensifica ainda mais, trazendo até mesmo a preocupação de se a internet pode “quebrar” por estar sobrecarregada. O delicado momento em que vivemos tem requerido ressignificar como imaginamos, fazemos e consumimos sexo.

Levantamento feito pelo Pornhub, grande plataforma de produção pornográfica, mostra que o consumo de vídeos sexuais em seu site tem aumentado no Brasil durante a pandemia, atingindo um crescimento de quase 29% de acessos no final de março em comparação com um dia regular. A mesma plataforma liberou acesso gratuito à sua versão paga no Brasil e em outros países durante o coronavírus, abordando em seu site a importância de diminuir o contágio. Usuários/as de aplicativos de relacionamento, como Tinder e Happn, também estão passando mais tempo conectados/as nessas plataformas.

Esse contexto tem demandado dos aplicativos de relacionamento/encontro uma ação estratégia rápida. Os/as usuários vão parar de ficar on-line durante a quarentena já que a recomendação é de ficar somente em casa? Se isso ocorrer, quem receberá os anúncios que contribuem com parte do faturamento dessas plataformas? Caso não se posicionem sobre o coronavírus, as empresas podem ter sua imagem de marca manchada?

Foi refletindo sobre essas perguntas que venho pesquisando durante a pandemia o Grindr, aplicativo de encontro gay utilizado com intenções afetivo-sexuais que mostra pessoas conectadas nas proximidades. Além de conversar com usuários e observar os usos da aplicação nos últimos dois meses, tenho observado como a plataforma tem lidado mercadologicamente com o coronavírus, ponto que discuto neste artigo. O estudo é inicial, de modo que o que compartilho são apenas apontamentos preliminares e não conclusivos.

A camada mercadológica do Grindr
Nos últimos anos, a sociedade começou a desmistificar a ideia de que as plataformas de mídias sociais são meras intermediárias no processo de comunicação entre sujeitos. Contrariamente, elas encorajam algumas interações em detrimentos de outras, selecionam por meio de algoritmos quais conteúdos os seus usuários receberão e têm lógicas de funcionamento pouco transparentes, como o pesquisador Tarleton Gillespie nos explica. Além de criarem e refinarem suas próprias regras constantemente, tendo como finalidade a proteção de seus usuários e delas próprias, as plataformas de mídias sociais possuem outras camadas de atuação.

Entre elas, está a mercadológica. Nieborg e Poell explicam que diversos são os atores que compõem a rede de uma plataforma: usuários, investidores, programadores, governo, empresas terceiras — sejam parceiras ou não — e anunciantes. Ainda que costumem expor que seus serviços são não pagos aos usuários finais, as plataformas organizam-se a partir de estratégias de mercado multilaterias, que fazem com que seu faturamento tenha mais de uma fonte.

Print das informações sobre o Grindr Xtra, versão paga do aplicativo
Print de informações sobre o Grindr Xtra, versão paga do aplicativo

No caso do Grindr, o aplicativo oferece ao usuário final uma versão “gratuita”. Em contrapartida, além de coletar uma infinidade de dados, tal versão requer que se veja publicidade em vários formatos. Entram aí os anunciantes, que são responsáveis por 25% da receita da empresa, enquanto 75% advêm de compras do Grindr Xtra, como expressam Albury et al. O Grindr Xtra é o serviço pago que proporciona uma navegação sem anúncios, a visualização de mais perfis nas proximidades e a utilização de alguns filtros para selecionar usuários.

Com essas informações, não podemos perder de vista que o Grindr, assim como outras plataformas, têm objetivos mercadológicos. Isso também inclui desenvolver ações de relações públicas que mantenham sua imagem positiva, não à toa o aplicativo vem se posicionando estrategicamente em tempos de coronavírus, por exemplo produzindo conteúdo sobre cuidados necessários para proteger-se da pandemia. Do mesmo modo, há razões por que o Grindr tem liberado funcionalidades premium justamente em um momento de quarentena.

O que a plataforma tem feito e por quê?
Durante meu trabalho de campo no Grindr, tenho percebido que a plataforma tem liberado gratuitamente diferentes funcionalidades. Na segunda quinzena de março, o aplicativo permitiu que cada usuário tivesse acesso a 300 perfis, o que é usualmente restrito a 100 na versão gratuita. Durante a mesma época, foi possível saber as últimas pessoas que visualizaram o meu perfil e utilizar o chat global, que dá acesso a conversas diretas com usuários de qualquer localidade do mundo. As ações eram anteriormente disponíveis somente no modo pago, mas foram disponibilizadas integralmente em alguns momentos da pandemia.

De modo similar, nos últimos dias de março o Grindr autorizou o uso de todos os filtros por 48 horas, de forma que era possível selecionar quais usuários eu gostaria de ver a partir de faixa etária, peso, altura, posição sexual, entre outros. Na versão gratuita, apenas filtros básicos como idade podem ser clicados; ou seja, houve a liberação de filtros avançados.

Alguns usuários com quem converso relatam que o seu uso do Grindr tem diminuído, já que, por respeitarem a quarentena, não se encontram face a face com ninguém. Para reter este público, liberar funcionalidades em tempos de pandemia incentiva que usuários permaneçam mais tempo conectados, sigam consumindo anúncios e sintam um gostinho de “quero mais” pela versão paga. Isso é essencial para que o faturamento da plataforma não saia prejudicado.

Em março e abril, o Grindr emitiu pop-ups e notas sobre o coronavírus. As últimas ficam fixadas no topo da seção “Caixa de entrada”, onde estão as conversas de chat do usuário. Assim, toda vez que um diálogo é estabelecido com alguém, as notas são necessariamente vistas. Elas apresentam alguns cuidados importantes de serem tomados durante o período de pandemia, como o cumprimento do distanciamento social e dicas de saúde.

No meio de abril, uma nota tem o seguinte título “Fique em casa, fique conectado”. A frase parece sugerir que, apesar da quarentena, relações afetivo-sexuais exclusivamente digitais podem ocorrer, de maneira que o Grindr seguiria sendo útil para encontrar possíveis parceiros. Sobre isso, a plataforma disponibilizou gratuitamente, por pouco tempo, que chamadas de vídeo de duração de até 2 minutos ocorressem entre usuários, o que podemos associar a um estímulo para o sexo audiovisual. Vale lembrar que alguns usuários migram do Grindr para outras plataformas, como o WhatsApp e o Skype, que oferecem chamadas de vídeo ilimitadamente.

Print da nota do Grindr sobre o coronavírus
Print da nota do Grindr sobre o coronavírus

É relevante mencionar que algumas pessoas estão usando o Grindr para marcarem encontros face a face, mesmo em tempos de quarentena. Minha presença em campo tem revelado três perfis de usuários que se conectam ao Grindr atualmente: 1) os adeptos: aderiram completamente à quarentena e, por isso, estão em abstinência afetivo-sexual presencial; 2) os negociantes: compreendem a importância do isolamento, mas o quebrariam em uma situação excepcional — caso um parceiro ideal aparecesse ou, ainda, se vários “cuidados de saúde” fossem tomados para o encontro; 3) os recusantes: podem crer ou não na relevância das medidas de segurança contra o coronavírus, mas não estão dispostos a segui-las, permanecendo ativos em suas práticas afetivo-sexuais face a face.

Posicionar-se mercadologicamente diante do coronavírus se tornou um imperativo para diversas empresas, o que é por vezes cobrado dos próprios consumidores. Oferecer informação sobre como se proteger do vírus e sugerir a permanência em casa são estratégias importantes de serem adotadas para a construção de uma boa imagem, sobretudo em um momento em que as plataformas estão sendo frequentemente acusadas de fazerem uso inadequado de dados de seus usuários. No caso do Grindr, ações de relações públicas têm se feito necessárias, uma vez que nos últimos anos a plataforma foi acusada de compartilhar o status de HIV de seus usuários com empresas e de ter brechas de segurança que coloca a privacidade dos usuários em risco.

Não podemos perder de vista a dimensão mercadológica do Grindr e das plataformas em geral. Suas ações refletem menos uma postura de altruísmo e mais um pensamento empresarial, o que parece fazer sentido, já que as grandes plataformas digitais têm um alinhamento à lógica neoliberal. O toque na tela precisa continuar, mesmo que isso possa se converter em mais solidão…

--

--

Ettore Medeiros
R-EST
Writer for

Doutorando e Mestre em Comunicação Social (UFMG). Professor de Comunicação Digital. Interesses de pesquisa em plataformas e LGBTfobia.