Goseki Kojima e a fluidez de Lobo Solitário

Pedro Henrique
Raijuu!!
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6 min readApr 23, 2017

A premissa de Lobo Solitário (子連れ狼, Kozure Ōkami) é simples: Ogami Ittō é um samurai que viaja com o seu filho de três anos, Daigorō, fazendo serviços para quem o contrata (e o seu filho está incluído no contrato, o que ele deixa explícito em seu estandarte) e seguindo o seu caminho para concluir uma vingança contra o clã Yagyū, que armou uma arapuca para desonrá-lo perante seu senhor. Apesar de a história de Kazuo Koike partir de um ponto tão simples, sua união com Goseki Kojima, em 1970, gerou uma das mais importantes obras da história dos quadrinhos. O sucesso foi tão colossal que seis filmes, quatro peças teatrais e uma série para televisão foram criadas para contar a história de Ittō Ogami e seu filho em diferentes mídias. Atualmente a obra está sendo publicada no Brasil pela editora Panini.

Apesar de o foco deste texto ser a arte de Kojima que será abordada em breve, é impossível comentar sobre esta obra sem conhecer a importância que o senhor Koike, responsável pela história do mangá, possui. São suas riquezas de apresentação de mundo que ajudam a tornar uma premissa de vingança algo além do padrão. Simbolismos das teologias budista e confucionista estão presentes pela obra inteira, casando com um laço entre pai e filho jogados em um mundo completamente hostil, em que um movimento errado pode destruir por completo a jornada. Além disso, o embasamento histórico que permeia a obra é palpável. Mesmo os personagens sendo ficcionais, todo o cenário ao redor deles é crível, com a história se passando na era Ietsuna da 4ª geração de Tokugawa. A cultura samurai é explorada a fundo, mostrando o bushido e o conflito entre a honra de um guerreiro contra ações corruptas de homens da lei ou outras noções de honras mais perversas, por exemplo. Isso é importante para dar um plano de fundo para o modo que Ogami Ittō lida com sua antiga vida como um samurai honrado de um senhor e sua nova vida, agora trilhando o caminho de um assassino.

Goseki Kojima

Naturalmente, Lobo Solitário se apoia bastante em toda essa cultura de época do Japão para compor o seu estilo visual. Essa arte é a liga que torna crível a saga de Ogami Ittō e Goseki Kojima faz o seu trabalho de forma magistral. As composições se dividem em dois momentos básicos em cada um dos capítulos mais comuns. A origem do conflito e o confronto físico. Apesar da história seguir um rumo principal, que é a já citada vingança, há também os pequenos causos que dão vida ao mundo ao qual os personagens estão envolvidos. Como Ittō é um “mercenário”, é habitual que os seus serviços sejam contratados com alguma frequência e ele tenha que concluí-los. E é graças ao maravilhoso trabalho de Kojima que a aventura não cai na arapuca do tédio. Ele consegue trazer um frescor especial tanto em cenas de batalha, com muito uso de traços sujos para indicar movimentação dos personagens e uma fluidez quadro-a-quadro crível, quanto em cenas de conversa, seja por simplesmente exibir a expressão corporal de um personagem durante um discurso ou seja utilizando do cenário e seus acontecimentos para não tornar a leitura enfadonha.

Em uma entrevista dada por Kojima e Koike para Frank Miller na revista Comics Interview, quando perguntado sobre a colaboração entre os dois, Kojima disse: “Eu odiei o roteiro dele. Ele tentou me dar um monte de palavras para os personagens. Então eu comecei a inserir coisas sem sentido, como as expressões de Daigorō, suavizando a tensão da história. Isso acabou se tornando popular. Funcionou, eu acho. Ele me deu liberdade e eu gostei disso. Se o Sr. Koike é o roteirista, eu sou o diretor do filme e o elenco. Você precisa ser bastante flexível para poder assumir este cargo. Eu acho que isso é um dom meu. Eu sempre digo, você tem que criar um drama, mesmo quando você desenha uma árvore ou uma pedra.”

Conflito pessoal de Daigorō

Antes de partir para a galinha dos ovos de ouro, as lutas, é importante pontuar a habilidade de Kojima ao lidar com o pequeno Daigorō. Como este é apenas uma criança, muitas das suas emoções são passadas apenas com suas expressões. A página acima é um exemplo. A simplicidade de mostrar a tristeza de Daigorō crescendo a medida que o som dos passos das pessoas se distanciam diz tudo que é necessário dizer naquele momento. Em outras vezes são apenas quadros de Daigorō brincando com uma borboleta, por exemplo. Sem palavras, apenas uma criança sendo uma criança. E narrativamente esses momentos pesam. É importante estabelecer a humanidade de Daigorō em um cenário tão problemático que é o que ele está inserido. É uma guerra diária para ele e seu pai e mostrar ele se divertindo com o mundo ou sentindo a tristeza ao ver algo que ele goste partir conta para que não se tenha a sensação de que ele é apenas uma ferramenta para a vingança. Ele também é um agente de transição da vingança, não só um símbolo da fraqueza de seu pai.

Uma das maiores fontes de pesquisa e de gosto pessoal de Kojima foi o cinema. E isso transparece em sua obra principalmente ao se comparar com um outro grande artista a trabalhar com obras de samurais neste ramo: Akira Kurosawa. Algo que ambos compartilham ao fazer cenas de batalha é criar uma sequência que faça com que o leitor entenda os movimentos básicos dos personagens, mas se perca ao tentar desvendar, por vezes, o que causou o fim da batalha. É como se o samurai tivesse uma aura de mistério em certos de seus golpes e, quando um leitor se depara com isso, chega a conclusão que é o feitio de um expert. A credibilidade passada ao guerreiro é dada de forma quase mística, de uma maneira que instiga o imaginário do leitor mais do que a apresentação de uma ciência exata.

Mas também Kojima consegue abordar batalhas usando tanto segmentos de quadros de fácil compreensão, quanto usando sugestões visuais do que pode acontecer. É como se ele te oferecesse dois óculos diferentes que são usados em diferentes páginas. Em um deles, você é uma pessoa que pouco entende o que está acontecendo de fato, tal qual um completo leigo em uma batalha, apenas admirando o dançar de espadas de dois experts. Já quando você coloca os outros óculos, você entende absolutamente tudo que está ocorrendo. Ele te oferece sugestões visuais que te fazem prever o que poderá acontecer, além de mostrar uma fluidez nos quadros que faz com que todos os movimentos sejam leves e compreensíveis. Essa brincadeira de situações que ele vai te dar certo óculos é feita magistralmente.

A página tá em ordem de mangá, mas a ordem dos quadros tá como quadrinho tradicional, não tenho ideia do motivo

As páginas acima são de um embate do final do capítulo 2 da obra. Esse trecho é impressionante em sua quantidade de detalhes. Em duas páginas toda a batalha que se desenha durante o capítulo é feita e toda a movimentação dos personagens é feita de forma fluida e representativa. Elas expressam a rápida arma do adversário de Ogami e em como este é hábil para fugir e poder usar uma brecha nos movimentos para atingir o inimigo. Interessante também notar como o ato de Ogami de jogar sua espada para atingir o adversário também serve como um simbolismo de como ele abandonou o caminho tradicional dos samurais e o coloca como um assassino. Isto pois a espada é vista com uma “alma” do samurai e este nunca deve jogá-la. Nada é à toa na narrativa pujante de Koike e Kojima.

A união de Kazuo Koike e Goseki Kojima é um das colaborações mais fortes da história da arte. O entendimento entre eles e as liberdades que um davam para o outro tornou o Lobo Solitário em uma das mais amadas obras da história dos quadrinhos. As camadas de complexidade diferentes e variantes nas cenas de combate, o expressionismo simples e eficaz dos personagens e as quebras de tensão com momentos que ainda assim contribuem para a forte narrativa da história é uma prova da genialidade de Kojima, que não deixa em nenhum momento que a história caia em um teor formulaico e se apresenta como um dos grandes quadrinistas da história.

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