A Guerra da Síria pelos Olhos de um Refugiado

Entenda como a guerra civil síria afeta diretamente a vida no país, sob a ótica de um refugiado sírio

Raissa Oliveira
Raissa Azevedo
8 min readSep 9, 2019

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Bashar al-Assad em mural na Síria | AFP 2019 / Joseph EID
Bashar al-Assad em mural na Síria | AFP 2019 / Joseph EID

Em 2012, quase um ano após o início das revoltas populares ocorridas por todo o Oriente Médio — consequência da Primavera Árabe — Mohammad Alsaeed estava com os amigos rumo a um restaurante para jantar, logo após ter saído da aula de mestrado, quando foi parado pela força policial. Eles pediram suas identificações. Até certo ponto era um procedimento normal, uma abordagem de rotina. Pouco depois de analisar suas identidades, os policiais retornaram, solicitando que os jovens os acompanhassem ao centro policial, afirmando que queriam apenas que os rapazes respondessem a mais algumas perguntas.

Mohammad não pôde retornar à sua casa por um mês após aquela abordagem. Foi levado à cadeia por se recusar a desempenhar o serviço militar obrigatório,afinal, todos os homens em idade ativa deveriam servir militarmente, especialmente durante o período de guerra pelo qual o país passa. Sua recusa foi razão o bastante para que ele ficasse um mês preso em uma cela minúscula, com condições insalubres.

Segundo seu relato, ficavam na mesma cela cerca de 70 pessoas, homens dos 11 aos 60 anos de idade. Não havia circulação adequada de ar devido à superlotação, o banheiro era em um pequeno espaço interligado à cela e mal havia espaço para sentar, muito menos para dormir. “Toda doença estava espalhada assim. Não sei como eu sobrevivi.”, narra o jovem.

Após um mês nessas condições, seu pai conseguiu resgatá-lo e tirá-lo da cadeia, no entanto, este havia sido o estopim. Não poderia mais ficar no país. Tinha medo do governo ainda caçá-lo. Decidiu, então fugir. “Eu fui para o Líbano primeiro, não poderia voar do aeroporto de Damasco, eu tive que ir para o Líbano. Nesse momento, começou sua jornada como refugiado, tendo de fugir de país para país, até achar um abrigo.

Foto de Mohammad Alsaeed no fim de 2012 | Reprodução Facebook

Mohammad Alsaeed tem 30 anos e nasceu em Damasco, na Síria, lugar de onde nunca havia saído enquanto pôde evitar. Foi em 2012 que se viu obrigado a fugir, adentrando, assim, nas gigantescas estatísticas de refugiados sírios, a qual cresce exponencialmente desde 2011 com o início da guerra.

Ano esse, inclusive, de grande importância para os países árabes. Foi quando teve início a Primavera Árabe, uma série de insurgências populares que aconteceram em diversos países do Oriente Médio e do norte da África, como Tunísia, Líbia, Egito e a própria Síria.

A Tunísia foi o berço dessas revoltas, ao depor o presidente Zine El Abidine Ben Ali, a partir de manifestações populares motivadas pela revolta com as condições precárias de vida, a corrupção e o autoritarismo governamental. O estopim da revolta, que desencadeou a reação internacional dos países da região, foi o suicídio do comerciante Mohammed Bouazizi, que ateou fogo ao próprio corpo frente à repressão policial que sofria com seu comércio, sua vida e a de sua família.

A revolta iniciada na Tunísia logo se espalhou pelos países próximos que sofriam de questões similares. Mesmo que cada país sofresse com problemas específicos, em uma visão macro do universo árabe percebia-se problemas similares, como governos ditatoriais, falta de liberdade — tanto individual, como de expressão — e repressão à população, além de uma economia fraca e altamente concentrada nas mãos de poucos.

Não era diferente na Síria. Desde 1971, o país é governado pela mesma família, os Assad, que detêm quase todo o poder — e economia — na região, iniciado com o governo de Hafez al-Assad, perdurando até a atualidade com Bashar al-Assad, seu filho. Os anos desse governo totalitário na Síria resultaram em índices exorbitantes de inflação e em uma elevação extrema da desigualdade no país.

Mohammad conta que a vida na Síria nunca foi tão fácil, mas a situação da guerra acentuou bastante os problemas. Mesmo antes dela, crescer em uma família com sete crianças trouxe certas dificuldades para sua mãe dona de casa e o pai professor.

A educação pública não era de qualidade, mas, ainda assim, ele conseguiu estudar, terminar o ensino médio e entrar na universidade, com um espécie de apoio econômico que o governo fornecia para os estudantes que se destacavam. Contudo, problemas de ordem econômica sempre o afetaram, tanto quanto as questões religiosas que marcam a história do país.

Com a maioria da população sendo islâmica sunita — uma vertente com interpretações mais flexíveis dos ideais islâmicos — era difícil a harmonia com um regime islâmico xiita alauíta, a religião do próprio presidente Bashar al-Assad. “Nós temos uma estrutura social baseada na religião”, diz Mohammad. No entanto, o posicionamento religioso advindo do governo quase que totalmente divergente ao posicionamento de mais de 80% da população afeta diretamente a estrutura social.

Foi realmente após a explosão da Primavera Árabe que a situação no país se agravou. Mohammad participou das manifestações desde o início. Apesar de querer ter sua voz ouvida, ele conta que já sabia que não conseguiria alcançar muito.

Desde o começo, o governo reagiu com violência aos protestos, atirando contra a população. “Eu vi, na minha frente, muita gente ser morta, eles tinham snipers e eu vi duas pessoas simplesmente caírem mortas”, fala ele. Aquela circunstância revoltou a todos, o tratamento inumano dado a população não tinha explicação. O regime não os escutava e muito menos queria que eles se expressassem.

A falta de liberdade de expressão já era evidente desde o início do regime Assad. Mohammad conta que a população não podia se expressar politicamente. Desde pequeno ele foi ensinado a evitar falar de suas opiniões políticas. “Lembro que meu pai falava quando estávamos discutindo política ‘Não fale, porque as paredes sempre têm ouvidos, vão nos ouvir e relatar’. Eles iriam nos levar e ninguém iria ligar. Ninguém podia questionar sobre isso”. Entretanto, mesmo sendo uma realidade duradoura para os sírios, essa repressão da liberdade de expressão só ficou evidente para o mundo quando houve o caso de Deraa.

A razão do início dos protestos foi a tortura de dezenas de jovens e adolescentes, sem justificativas, nem julgamento, após eles terem pintado um painel na escola onde estudavam em Deraa, no sul da Síria, com palavras de ordem contra o governo de Assad. Tal ação resultou na repressão policial. Os adolescentes foram presos e torturados pela força de segurança nacional.

Foi a partir daí que as manifestações da Primavera Árabe se intensificaram no país.

O povo saiu às ruas exigindo a deposição de Bashar al-Assad. A resposta do governo, obviamente, foi a supressão violenta das insurgências. O que, em contraponto, influenciou na revolta armada como resposta à violência do governo. Surgiram, então, as forças rebeldes sírias, uma parcela crucial na guerra civil.

A maior parte da força dos rebeldes eram pessoas que perderam alguém. Muitas pessoas tiveram seus familiares ou pessoas próximas levadas ou mortas pelas forças militares, o que levou à ascensão de um “espírito de vingança” contra o governo ditatorial. Uma parte dessas forças rebeldes, ao longo da guerra, conseguiu adquirir apoio internacional. Alguns países ocidentais como Estados Unidos, França e Reino Unido vêm fornecendo diferentes graus de apoio para o rebeldes que consideram mais “moderados”. Entre esse apoio, está a participação na aliança que deu origem às Forças Democráticas Sírias (FDS)), grupo rebelde que tem conseguido o controle de diversas territórios sírios.

Em contraponto, o governo Sírio tem recebido o apoio direto de forças da Rússia, China e Irã. São esses países os responsáveis pelo financiamento as forças militares, além de fornecerem armas e treinamento para o exército sírio, sob o pretexto de estarem ajudando a combater terrorismo no país.

Aliás, a ideia da guerra ao terrorismo está intermitentemente ligada à ascensão do grupo terrorista Estado Islâmico — ou ISIS, em inglês. Para Mohammad, o ISIS surgiu como uma desculpa para a forças internacionais de países como EUA, Rússia e outros países europeus terem uma razão para intervir nos conflitos internos sírios, mas sem afetar excessivamente um lado ou outro, o governo ou os rebeldes. O Estado Islâmico teria aparecido como uma força a mais para ser combatida, um terceiro desdobramento em uma guerra já conturbada. Entretanto a diferença desse desdobramento, que levou os outros países a intervirem, seria a ideia de que o conflito afetaria diretamente a população ocidental, afinal, era parte do terrorismo que o Ocidente sempre esteve tão disposto a combater.

Segundo Muhammad, o ISIS seria um modo de desviar a atenção sobre a guerra real e a forma como milhares de civis estavam sendo afetados pela situação, ele incluso. “Já quanto ao governo, sua desculpa era que eles queriam dar mais liberdade às pessoas, mas tendo o EI, eles teriam que continuar protegendo a população desse mal, isolando-a desse perigo”.

O Estado Islâmico é composto por uma parcela dos islâmicos sunitas, com uma visão bastante radical sobre os seus conceitos religiosos. Os sunitas radicais do EI consideram que os xiitas são infiéis e devem ser mortos, assim como os cristãos. Eles surgiram como uma dissidência do grupo Al-Qaeda. Tendo ganhado forças exatamente a partir da guerra da Síria, buscam criar uma identidade árabe, impondo uma visão ultraconservadora do islã.

Desde então, a guerra vem crescendo, com o desdobramento entre rebeldes, governo e ISIS, a violência do conflito aumentou e os civis tem sido mais e mais afetados pela realidade de violência. Já foram registradas 106 mil mortes de civis, sendo, no total, 354.000 mortes até março de 2018, segundo o Observatório Sírio de Direitos Humanos, uma ONG britânica que vem monitorando o conflito. Sem levar à contagem os que ainda estão desaparecidos ou os casos de morte ainda não documentados.

O número de refugiados sírios já é de 5,6 milhões de pessoas, segundo dados da ACNUR (Agência da ONU para Refugiados). Ao todo, mais de 10 milhões de sírios tiveram de se deslocar de suas moradias em busca de condições mais dignas de vida — entre deslocados internos e externos.

Como Mohammad, muitos têm que se arriscar por rotas perigosas, migrando entre diversos países, até encontrarem refúgio em alguma nação. O sírio foi obrigado a fazer sua rota saindo de seu país em direção ao Líbano, — uma das principais rotas de fuga — a fim de embarcar em um avião, já que não podia voar a partir do aeroporto de Damasco. De lá, foi para Istambul, Turquia, onde tinha alguns amigos.

Buscou, então, por trabalho, o que foi difícil, já que não falava nada de turco, e nem ele, nem os nativos, sabiam falar em inglês. Logo em seguida, conseguiu ir para a Suécia, onde o inglês é falado como segunda língua, e ele pôde aprender os idiomas do país simultaneamente.

No total, Mohammad já viveu em cinco países diferentes, nos cinco anos, desde sua fuga da Síria. Apesar de ter fugido, ele ainda mantém contato com sua família, que permanece no país. Já conseguiu trazer sua mãe para morar na Suécia com ele e ainda manda uma ajuda de custo todos os meses para sua irmã, que permanece em sua terra natal.

Por ter fugido ainda em 2012, Mohammad teve sorte ao ainda conseguir ser agraciado com as políticas de apoio aos refugiados na Suécia. Muitos outros não encontraram situação parecida, sofrendo com ataques de preconceito e com o fechamento de fronteiras em outros países, como a Itália com a situação dos náufragos rejeitados; a Hungria com a instalação de arames farpados; ou mesmo o Reino Unido com a atual situação do Brexit. O governo da direita conservadora que vem ganhando força no Ocidente tem a tendência de complicar ainda mais a vida para os refugiados.

Entrevista obtida em janeiro de 2019, em Londres, Inglaterra.

Matéria publicada originalmente no Portal CII

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Raissa Oliveira
Raissa Azevedo

Feminista. Apaixonada pelo universo, por músicas e por doces. Acredita que (quase) tudo pode ser relativo. Escrevendo para aliviar e alimentar a alma.