Equipe Mídium | Setembro pode ser colorido

Raissa Oliveira
Raissa Azevedo
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11 min readOct 9, 2018
Parada do Orgulho LGBT de São Paulo em 2018 /Imagem: Reprodução
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Por Clarice Nascimento, Mariana Lemos e Raissa Oliveira

34% da população jovem LGBT já tentou suicídio pelo menos uma vez na vida. O índice em jovens transgêneros chega a 48%. Esses são dados divulgados pela PACE =People Acting for Change and Equality, instituição filantrópica norte-americana de saúde mental, em seu relatório RaRE, produzido ao longo de cinco anos na Inglaterra juntamente com um grupo acadêmico de três universidades do país. No Brasil, foram registradas cerca de 11.740 mortes por suicídio no país em 2015, conforme dados do Ministério da Saúde. Além disso, essa é a quarta causa de morte entre jovens brasileiros de 15 a 29 anos. Não existem dados específicos sobre a questão entre a população LGBT no país.

Uma das motivações apontadas com frequência por especialistas é a LGBTfobia. O preconceito e a discriminação acontecem por meio de olhares maldosos, comentários repressivos, piadas maliciosas e — no pior dos casos — agressões físicas. Tal realidade exerce uma pressão sob os indivíduos que fazem parte dessa comunidade, podendo resultar em adoecimentos psíquicos.

Desde criança, Rafael Nunes sentiu-se diferente por nunca se interessar pelas mesmas coisas que os outros meninos de sua idade. O jovem lembra que fazia mais coisas que ele considerava ser “de menina”, como ficar em casa brincando. “Eu não era das crianças que ia pra rua brincar de correr”, conta. Por conta de seus costumes não associados a um menino de sua idade, ele afirma que sofria repressão.

Uma vez, ao dançar em uma festa de família, um primo o repreendeu dizendo “para com isso, isso é coisa de mulher, deixa de ser viadinho”. Esse episódio fez com que, até pouco há tempo, Rafael não dançasse em público

A demora em compreender melhor sua sexualidade foi um agravante para alguns de seus problemas. “Penso que se eu tivesse me afirmado, como tem gente que se afirma bem antes, mesmo sem saber direito, não teria me privado de tantas coisas”, avalia. A essa relativa demora, ele associa a compulsão alimentar que teve de enfrentar.

“Para todas emoções eu comia. Comia porque eu me entendia, como se não fosse existir coisa melhor do que comer e eu negava que eu era diferente”, conta Rafael acerca da sua compulsão alimentar | Imagem: Equipe Mídium/ Mariana Lemos

Como forma de se esconder, Rafael procurou na comida uma aliada. “Eu vou ser gordo, os gordos são invisíveis”, assim funcionava sua cabeça quando criança. Na época, queria manter-se longe da atenção, para que outras pessoas não reparassem nesse seu jeito “diferente”. Porém, seus problemas não desapareceram e, com o tempo, além da compulsão, ele descobriu ter ansiedade. Foi nesse período que ele buscou atendimento psicológico.

Em sua experiência, Rafael nunca sofreu discriminação por parte dos profissionais, mas afirma que, provavelmente, se fosse um homem o atendendo ele não se sentiria tão à vontade quanto com a atual psicóloga.

Ele reforça a necessidade de procurar atendimento psicológico, pois afirma ser uma maneira de se entender e de descobrir qual seu lugar.

Antes da terapia que faz atualmente, Rafael recorreu ao atendimento psicológico da rede pública de saúde. Segundo ele, foi pouco proveitoso por não ser possível manter uma continuidade. “Em um mês eu tinha 4 sessões marcadas, só que no outro mês não conseguia marcar mais essas sessões”, relata.

No Brasil, o Ministério da Saúde lançou em 2016 a campanha “Cuidar bem da saúde de cada um. Faz bem para todos. Faz bem para o Brasil”, com a finalidade de melhorar o acesso à saúde e promover o atendimento humanizado para LGBTs. Mesmo com as ações do governo, ainda são recorrentes episódios de discriminação e preconceito contra essa parcela da população ao procurar ajuda médica, ainda mais quando se trata saúde mental.

Assim como Rafael, Milena Castro, estudante de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará (UFC) , afirma que sabe que é lésbica desde a infância, mas que seu processo de aceitação não foi fácil. Milena sofria muito preconceito na igreja evangélica que frequentava e era ela mesma intolerante em relação à diversidade. Ela afirma que fingia ter atração por homens para se enturmar na escola e que seu primeiro beijo foi com um menino, algo que considerou “uma experiência horrível” . Na adolescência, mesmo sem Milena assumir sua homossexualidade, seus amigos a influenciaram a ter um pensamento mais tolerante.

No entanto, mesmo que ela alcançando a auto-aceitação, Milena nunca conversou sobre sua sexualidade com a família materna. O medo da reação de seus parentes, somado aos discursos homofóbicos emitidos por eles, fez com que a jovem começasse a ter crises de ansiedade.

“Tinha dias que eu não conseguia ir pra escola, passava o dia todo chorando e não conseguia comer. E aquilo tava influenciando na minha saúde, eu tinha anemia”, conta

Em 2016, após ter revelado que era lésbica para seus amigos, Milena começou a se consultar com uma psicóloga, o que a ajudou com suas crises de ansiedade e nervosismo. Castro conta que se projeta muito no futuro e que acha que sua ansiedade começou pelo medo do preconceito, o que a fazia chorar por dias inteiros. Em casos de crises muito profundas, Milena era medicada. “Com esse remédio, se eu tivesse uma tristeza exacerbada, eu ficava tão grogue a ponto de não conseguir sentir nada. Eu não sentia tristeza, não sentia felicidade, ficava só ali existindo”, conta. Apesar dos bons resultados do tratamento, as consultas psicológicas tiveram que ser interrompidas pois a profissional entrou de licença-maternidade. A partir daí, Milena conta que suas crises voltaram e ela sentiu a necessidade de recomeçar o acompanhamento psicológico. No entanto, dessa vez a experiência não foi benéfica.

Eu não gostava de chorar em público, principalmente em crise, porque eu não sei quando é que eu vou parar de chorar”, relata Milena Castro | Imagem: Equipe Mídium/ Raíssa Oliveira

A nova psicóloga, conhecida pela mãe da menina no convívio da igreja, carregava uma visão conservadora e homofóbica nos seus atendimentos. Milena conta que a profissional assegurava que “Deus repudia muito” o que ela está fazendo e que o fato de ser lésbica era um pecado. A opinião psicológica sobre a separação dos pais de Milena também tinha relação com a religião.

“Ela falava que meu ‘homossexualismo’ poderia ter acontecido pela ausência do meu pai. Não ter a figura de um homem, de um casal hétero em casa, de uma família tradicional”, relata Milena. Desde então, ela não conseguiu voltar às consultas e permanece sem acompanhamento psicológico até hoje, apesar de sentir a necessidade.

No final do ano passado, Milena foi surpreendida com a notícia de que seu pai é gay. Ela conta que ficou aliviada, pois sente que caso sua mãe não a apoie, seu pai irá lhe acolher. Após conversarem sobre sexualidade, a relação entre Milena e seu pai ficou “bem mais próxima”. No entanto, o medo da reprovação familiar persiste:

“Ele [seu pai] tinha receio de conviver comigo por medo de eu não aceitá-lo. Isso é horrível. Eu sou lésbica e aceitaria isso de boa. Ele demorou 18 anos pra me dizer que é gay e eu fico pensando quanto tempo eu vou demorar a falar pra minha família que eu sou lésbica, pelo mesmo receio”

Em alguns casos, mesmo sabendo, a família se omite em relação a sexualidade. Foi assim com Bernardo, homem trans e bissexual. Ele afirma que essa relação familiar é complicada porque, no caso dos transgêneros, as pessoas não compreendem a diferença entre sexualidade e gênero. Bernardo conta que, quando se entendia como mulher cis, achava que era lésbica e isso já foi complicado de conversar com os parentes. Da mesma forma, quando descobriu ser trans e também bissexual, eles passaram a desconfiar sobre essa sexualidade. Contudo, ele acredita que hoje está sendo mais fácil devido ao sobrinho mais novo, que sempre o trata pelo masculino e chega a corrigir quem não o trata da mesma forma.

“Tem toda uma ideia de que a pessoa trans odeia seu corpo e essa ideia ela é errônea, porque nós não estamos em corpos errados. Estamos no corpo certo, mas sentimos que somos de outro gênero”, conta Bernardo sobre a transsexualidade. Na imagem, ele está junto de sua namorada, Letícia | Imagem: Equipe Mídium/ Raíssa Oliveira

Durante o processo de transição sexual, a saúde mental foi uma questão pouco tratada por Bernardo. Não por conta da necessidade, mas devido às condições financeiras que não o ajudavam. Antes do processo transitório, ele teve acesso a um tratamento psicológico numa igreja, custeado pela tia. Ao contrário de Milena, a psicóloga não depositou carga religiosa durante as sessões.

Logo nos primeiros encontros, Bernardo contou que não se sentia confortável por estar sendo tratado dentro da igreja, então a psicóloga explicou a separação do projeto com a religião, o que o deixou mais aliviado. Apesar disso, o jovem acredita que ela foi negligente e omissa com sua situação e isso o deixou receoso de procurar outros psicólogos. Ele conta que a psicóloga o diagnosticou com uma neurose simples, comum a qualquer pessoa, mesmo sabendo das tentativas de suicídio que ele tinha passado.

O jovem sentiu bastante diferença no trato pessoal quando passou a fazer terapia no Núcleo de Atenção Médica Integrada (NAMI) da Universidade de Fortaleza (Unifor). Por ser transsexual, ele acredita que os psicólogos, em geral, supõem que é esse o motivo que mais atinge e aflige sua saúde mental. Ele conta que a nova psicóloga lhe deu mais segurança:

“Ela perguntou se eu estava ali por conta da transsexualidade e eu falei que não. Daí ela falou que tinha percebido porque eu me firmava bastante. Isso me deixou mais confortável”

Imposições religiosas, falta de aceitação pela família, padrões sociais, todos esse fatores tendem a recair sobre a saúde mental da pessoa LGBT. O que há em comum entre esses fatores é que todos se originam de um mesmo ponto: o preconceito. A continuidade de atitudes preconceituosas traz uma carga negativa que a população LGBT, infelizmente, se vê obrigada a carregar — e a atual ascensão de políticos com tendências fascistas representa um risco ainda maior para o bem-estar desse grupo social.

A psicóloga Anne Joyce Dantas, pesquisadora formada pela UFC, afirma que refletir sobre gênero, identidade e sexualidade é cada vez mais necessário. Estamos diante de temáticas que perpassam a nossa trajetória de vida enquanto sujeitos.

Segundo a psicóloga, encaixar-se no grupo dos homens impõe que o sujeito passe a agir de certa conduta, assim como no grupo das mulheres. “Se, quando criança, o sujeito não consegue se identificar com algum desses grupos, o processo de sofrimento surge”, afirma. Dependendo das relações familiares e sociais e da forma como ela é acolhida no ambiente escolar, esse processo pode ou não se agravar.

“Toda essa representação social se torna adoecedora, porque a representação relacionada ao que é ser homossexual foi por muitos anos, e ainda é, ligada à perversão e à hostilidade”, afirma Anne.

As pautas LGBT, identidade e sexualidade são recorrentes nos estudos da psicóloga | Imagem: Reprodução/Acervo pessoal da entrevistada

Segundo Anne, é por conta da rejeição da sociedade que os LGBTs passam a refletir mais cedo sobre suas identidades e seus papéis no contexto social.

Embora o indivíduo se orgulhe e goste de ser quem é, essa reflexão torna-se negativa quando ele passa a sentir-se mal por achar que sua identidade incomoda o outro.

“A partir do momento em que eu nasço, e você também, nós somos diferentes. Não tem um padrão. O padrão é totalmente social, do que é ser você é totalmente social, do que é ser a sua identidade”, afirma a psicóloga

Uma pesquisa realizada pelo Instituto de Ciências Médicas da Unicamp constatou em 2012 que a saúde mental não é afetada diretamente por ser ou não LGBT, mas sim pelo medo de andar na rua e sofrer preconceito ou de como a família e a sociedade vão os receber. Na pesquisa, 67% dos entrevistados afirmaram sentir vergonha de sua orientação sexual. Entre os adultos, essa vergonha era induzida mais pela pressão da sociedade e por questões religiosas. Já, enquanto nos adolescentes, era motivada, principalmente, pelo medo de frustrar a família.

Assim, é preciso compreender o que são a diversidade e as diferenças, e que respeitá-las é fundamental para que o preconceito e a discriminação acabem. A falta de um apoio — seja familiar, escolar, fraternal ou e social — pode levar ao estágio mais difícil desse adoecimento, o suicídio. Apesar desse quadro complexo, é preciso entender que grande parte dos suicídios podem ser evitados.

No último dia 27, o Centro de Referência Janaína Dutra promoveu a palestra Vidas LGBT importam. Durante o debate, a psicóloga Priscilla Costa destacou a importância de promover medidas para fortalecer a saúde mental das minorias. Para ela, o suicídio é “muito evitável”, pois não é como uma doença abrupta fatal.

A psicóloga afirmou que associar a sexualidade com os transtornos mentais é errado e pode ajudar a patologizar uma condição normal. É o contexto de marginalização, intolerância e segregação em que vivem os LGBT que tem relação com os distúrbios. De acordo com ela, os fatores de risco são acentuados para essa comunidade.

Outro ponto são as lacunas no conhecimento acerca das especificidades da saúde mental dos LGBT, já que “estudos não contemplam de forma adequada perguntas sobre sexualidade e identidade de gênero”. De modo geral, não existem opções que abranjam as diversidades de sexualidades e identidades de gênero nas pesquisas, assim, não existem dados específicos para essas minorias. A especialista reiterou que a falta de informações oficiais inviabiliza o problema e, assim, as demandas para políticas públicas não são avaliadas.

Palestra “Vidas LGBT importam”, realizada no dia 27 de setembro, o mês ‘amarelo’, na Biblioteca Municipal Dolor Barreira | Imagem: Acervo pessoal de Priscilla Costa

O Centro de Referência Janaína Dutra é um equipamento vinculado à Prefeitura de Fortaleza destinado à população LGBT em situação de violência e vulnerabilidade. Dentre as ações da entidade, destacam se o oferecimento de acompanhamento psicológico e o encaminhamento a pousadas e centros de acolhimento. De acordo com Lúcia Paulino, servidora do setor pedagógico da instituição, a demanda para o atendimento psicológico é altíssima e, em virtude do pequeno número de profissionais, o esforço para garantir um tratamento aprofundado é grande. Ela conta que a maioria dos pacientes é trans, mas que o número de lésbicas que solicitam o atendimento psicológico tem aumentado.

“Muitos não perpassam por violência ou violação dos direitos. Muito são acometimentos mentais por situações familiares, emocionais, de relacionamento. Temos que atender prioritariamente casos de violações, mas não negamos atendimento.” — afirma Lúcia sobre os motivos que levam os pacientes a procurarem o centro.

No que diz respeito a adoção de políticas públicas para os LGBT, a Equipe Mídium tentou contatar a Coordenadoria Especial de Políticas Públicas para LGBT, órgão do gabinete do Governo do Ceará, mas não obteve resposta.

Em tempos em que demonstrações de amor são reprimidas por discursos de ódio, é preciso relembrar que sempre existe uma saída. Em Fortaleza, existem serviços de atendimento público e a preços populares para quem necessita de acompanhamento:

Originally published at medium.com on October 9, 2018.

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Raissa Oliveira
Raissa Azevedo

Feminista. Apaixonada pelo universo, por músicas e por doces. Acredita que (quase) tudo pode ser relativo. Escrevendo para aliviar e alimentar a alma.