O feminino nas distopias

Raissa Oliveira
Raissa Azevedo
Published in
7 min readApr 14, 2019

A escrita feminina, ao longo da história, foi subestimada em diversas ocasiões. Seja a escrita das mulheres ou a escrita sobre mulheres, quando o tema é o feminino, a literatura acaba sendo restrita e nada inclusiva. Levando isso em consideração e observando a literatura através da sua influência na sociedade, pode-se chegar à conclusão de que ela embasou o patriarcado vigente na sociedade.

A literatura foi e continua sendo uma importante ferramenta para moldar as normas sociais ao longo do tempo. Durante os séculos XIX e XX, os livros ditavam as formas de se portar e a sociedade elitista — quem prioritariamente produzia e tinha acesso a esse material — reproduzia fielmente o que lhes era imposto.

Principalmente durante o século XIX, no período pós Revolução Francesa, muitos estudiosos começaram a observar o mundo através de um novo olhar frente às transformações sociais do período. Muito foi alterado quanto à forma de compreender as ciências e isso se refletiu também no campo literário. A partir daí, começaram a realmente entendê-lo como uma ferramenta social.

A partir dessa concepção, a escritora francesa Madame de Staël (1766–1817), com sua obra De la littérature considérée dans ses rapports avec les institutions sociales, tornou-se pioneira no estudo da área. Em sua obra ela foi capaz de interligar política, religião e sociedade dentro das amarras literárias, ao abordar a condição da mulher num meio repressor da liberdade, junto à análise da literatura em diferentes culturas. Todos feitos marcantes para uma mulher do século XIX.

Foi também a partir da chama do Iluminismo que surgiram novos gêneros literários, como a utopia, sendo um reflexo dos ideais revolucionários do século XVI, mas que nunca concretizaram-se efetivamente.

A utopia busca apresentar uma sociedade perfeita e extraordinária. A proposta primária desta categoria literária seria o de quebrar a ordem vigente e mostrar, de forma idealizada, uma possível sociedade superior à existente. Como contraponto dessa sociedade impossível, surgiu a distopia, como uma utopia negativa. Enquanto a utopia busca apresentar uma sociedade perfeita e extraordinária, a distopia baseia-se em propor um modelo de sociedade distorcida, mas que não se distancia tanto do presente. Elas possuem um pessimismo ativo, mas não por simplesmente querer mostrar o negativo e sim para impedi-lo de acontecer, evitando que certas tendências da sociedade se perpetuem, como práticas sociais questionáveis ou questões políticas problemáticas, a fim de combatê-las.

O grande impacto dessas duas categorias literárias, utopia e distopia, é a representação fiel da sociedade, trazendo críticas pertinentes à realidade vivida. Contudo, esse impacto pode ser discutível, ao passo que é preciso questionar: que sociedade é trazida nestas obras? Uma sociedade elitista sobre a visão de mais um escritor branco — tal qual tantas obras já existentes? Ou uma sociedade verossímil, com a presença de minorias e diversidade?

A resposta é que na grande maioria das obras, tem-se apenas mais do mesmo: personagens masculinos vivendo seus grandes dilemas de vida e sendo heróis marcantes com feitos pouco admiráveis. Isso não se diferencia nas obras mais famosas como 1984, de George Orwell, Admirável mundo novo, de Aldous Huxley e Fahrenheit 451, de Ray de Bradbury — considerados clássicos distópicos. Estes exemplos citados foram escritos durante o século XX e trazem uma mínima presença de personagens mulheres, ou, quando presentes, a figura feminina é colocada em papéis secundários, o que acaba por podar seu potencial como personagem para a obra.

Muitos desses livros são, inegavelmente, ótimas narrativas, além de que acertam ao criticar a política e o governo; porém, as críticas são limitadas ao não trazerem personagens da vida real. Para começar, vemos que a maioria dos autores citados são homens, logo, eles trazem uma visão excessivamente masculina sobre a realidade, ainda mais ao escreverem diretamente para outros homens. As mulheres só foram realmente ganhar espaço na literatura com a escrita feminista desenvolvida a partir do século XX. Ela permitiu que as mulheres, dentro do universo literário, produzissem obras que não apenas as representassem bem, mas que também abrissem espaço para que elas pudessem projetar sua imaginação no futuro dentro de uma produção literária distópica.

Para quebrar com a visão masculina e elitista,decidimos separar, aqui, uma lista com algumas notáveis obras do universo utópico e distópico que representam propriamente as mulheres, ao passo que foram escritas por ótimas escritoras que merecem destaque.

A rainha do Ignoto

Publicado em 1899, foi escrito por Emília Freitas, uma cearense nascida em Jaguaruna. A obra é considerada a primeira ficção científica escrita por uma mulher no Brasil. No livro, a autora cria uma figura feminina mística e poderosa: a rainha do Ignoto. A personagem vive em uma ilha isolada onde as únicas moradoras permitidas são mulheres. Ao tomar conhecimento desse misterioso local, um jovem galante se torna obcecado com a lenda da rainha e busca a todo custo adentrar sua sociedade perfeita. É verdadeiramente uma obra à frente de seu tempo por levantar discussões sobre mulheres, sociedade e justiça para o Brasil da época.

Mulher à beira do tempo

Uma utopia clássica escrita por Marge Piercy e lançada em 1976. Marge é uma escritora norte americana conhecida principalmente pelo teor feminista presente em suas obras. Em Mulher à Beira do Tempo, são abordados pontos sobre justiça social, feminismo e tratamento de doenças mentais em uma história sobre viagem no tempo. Na narrativa, a personagem Connie Ramos recebe visitas de uma figura do futuro, Luciente, que vem de um mundo aparentemente perfeito com total igualdade. Devido à sua revolta com a disparidade entre presente e futuro, Connie se revolta e acaba sendo constantemente internada em centros de tratamento mental, despertando, na obra, críticas sobre o abuso dos manicômios.

Herland: A terra das mulheres

Escrita por Charlotte Perkins Gilman e publicada em 1915, a obra gira em torno de três estudantes que exploram um país ocupado exclusivamente por mulheres. A narração se dá a partir da visão individual de cada um dos três personagens e aborda o choque de suas perspectivas individuais da realidade, com a visão das habitantes do país. A noção aguçada da autora sobre as diferenças na vida das mulheres caso vivessem em um universo exclusivamente feminino é o que mais chama atenção.

Jogos vorazes

Primeiro livro de uma trilogia famosa mundialmente, Jogos vorazes, escrito em 2009 por Suzanne Collins, traz uma sociedade futurística na qual os Estados Unidos são divididos em doze distritos e uma capital. Todos os anos cada região têm que enviar crianças para participar de uma grande carnificina, os Jogos Vorazes. Nessa realidade, Katniss Everdeen, a protagonista, se voluntaria para ir aos jogos lutar para proteger sua irmã, que havia sido escolhida. Tornando-se muito mais que uma participante dos jogos, Katniss inicia um processo revolucionário ao questionar e se rebelar contra as leis do sistema vigente — que é ditatorial e desumanizado.

O conto da aia

Adaptada para a televisão em 2017, esta distopia vem ganhando cada vez mais destaque. Escrita por Margaret Atwood em 1976, a história trata de uma realidade na qual o poder é regido por um governo teocrático. Neste mesmo universo, devido à degradação ambiental, muitas mulheres tornam-se inférteis. Como modo de manter a procriação, as poucas mulheres que permanecem férteis são treinadas para tornarem-se aias, “úteros com pernas”, servindo exclusivamente para dar filhos aos homens que estão no poder. Para escapar dessa realidade degradante, Offred, a protagonista, começa a investigar sobre os poderosos desta sociedade, descobrindo aos poucos os seus segredos.

Esses são apenas alguns exemplos de obras pertinentes escritas por mulheres. A escrita feminina por si só já é subversiva, pois inclui uma minoria que por muito tempo foi renegada do universo literário. Contudo, é limitada em certos aspectos, pois ainda não inclui efetivamente mulheres negras e LGBT+. Estes aspectos tendem a mudar conforme esse espaço de inclusão é aberto.

O primeiro passo para isso é o consumo dessas obras. Precisamos estimular a produção de um conteúdo fiel com a diversidade existente. É necessário dar espaço para que todas/os as/os escritoras/es tenham suas vozes ouvidas dentro da literatura e para que todas e todos possam se sentir devidamente representados.

Originally published at https://medium.com on April 14, 2019.

--

--

Raissa Oliveira
Raissa Azevedo

Feminista. Apaixonada pelo universo, por músicas e por doces. Acredita que (quase) tudo pode ser relativo. Escrevendo para aliviar e alimentar a alma.