A tua culpa não vai nos salvar

Gruno
raiz
Published in
9 min readJun 30, 2020
consumo livre de culpa.

Eu tenho a sensação de ver cada vez mais gente sentindo a necessidade de fazer alguma coisa diante do cenário apocalíptico em que vivemos.

Não é pra menos: o mundo está acabando.

É realmente muito angustiante ficar parado, o que ainda piora porque o futuro catastrófico está cada dia mais com ares de presente palpável. A esperança otimista de que tudo alguma hora ia voltar ao normal se desmancha a olhos vistos.

Como diria o bom velhinho: “Tudo que é sólido se desmancha no ar.”

Nos perguntamos: O quê fazer? O que fazer para tornar o mundo um lugar melhor? O que fazer para resolver esses problemas tão evidentes?

Existem algumas respostas: militar por alguma causa, organizar e divulgar ações práticas,procurar coletivos, fazer doações, bater panela em homenagem aos profissionais da saúde.

Essa sensação de querer contribuir é tão presente no tecido social que existe um mercado da ajuda/assistência/caridade. Queremos ajudar, vemos os problemas e não sabemos o que fazer. Quantas ONGs, Associações, movimentos, multirões, grupos de igreja, organizações mundiais existem e nos pedem ajuda?

Sabemos que fazer alguma coisa é melhor do que nada, mas será que é o suficiente?

Eu defendo que não, não é o suficiente. Nesse texto eu quero falar sobre culpa, que é tanto o motor da vontade de ajudar quanto o motivo da falha miserável de tornar essa vontade em transformação efetiva.

Culpa

A culpa é um mecanismo para lidar com algo que te afeta negativamente, é reconhecer envolvimento ou responsabilidade por esse ocorrido e se arrepender disso.

A culpa é um sentimento poderoso. Quando a gente faz merda e se arrepende, o que sentimos é culpa, daí partimos para tentar lidar com esse sentimento: pedimos perdão (ou desculpa), compensamos, tentamos resolver o erro.

É muito razoável que o indivíduo faça um esforço para se livrar da culpa por que é um sentimento negativo, se sentindo uma pessoa pior e isso te faz procurar qualquer resposta que te tire desse lugar.

Não a toa, podemos enxergar a culpa como fundamental até mesmo na dinâmica religiosa do pecado. Se você peca, deve se arrepender e pedir perdão pelos pecados.

Mas quero ressaltar duas coisas sobre a culpa:

1- é individual, mesmo quando é fruto de ação coletiva;

2- é um fruto da responsabilização, mesmo não o único fruto possível da responsabilização.

Uma ação em conjunto ainda assim gera culpa nos indivíduos. Os envolvidos podem tentar resolver o próprio sentimento de culpa a partir de arrependimento individual e perdão individual.

Participar de um crime com outras pessoas ainda assim vai gerar culpabilização individual e essa noção é tão introjetada na nossa sociedade que mesmo um julgamento vai gerar punições diferentes para indivíduos (graus de culpa distintos a partir da responsabilização coletiva).

Isso leva ou é fruto de uma concepção interessante e fundamental: a culpa está dentro de você, mas pode ser removida: seja pelo perdão, pela expiação ou por uma atitude que você como indivíduo tomou.

Isso acontece mesmo que o fato gerador da culpa seja coletivo. Daí vivemos no mundo das retratações individuais, dos pedidos de desculpa público individuais, das notas individuais.

Sendo a culpa um fruto da responsabilidade individualizada, é importante refletir um pouco sobre o que significa ser responsável e até mesmo o que é responsabilidade.

Uma última nota sobre culpa se refere ao fato de que culpar alguém é uma delícia. Nessa relação entre culpa e responsabilidade, a individualização das questões pela culpa cria um cenário em que, ao acharmos um culpado, podemos ao mesmo tempo nos livrar da responsabilidade e nos sentirmos moralmente superiores.

Não é a toa que o governo brasileiro, muito antes de tomar alguma atitude sobre a pandemia de COVID ou sobre o vazamento de óleo que atingiu o nordeste do país, se desdobrou em esforços para achar um culpado, seja ele o governo chinês ou o venezuelano.

Responsabilidade

Na origem de toda culpa, tem um processo de se ver responsável, de reconhecer a participação em algo que se julga negativo ou danoso. Antes da culpa sempre vem o ponto de reconhecer que algo ruim aconteceu.

Porém, se toda culpa depende da responsabilidade, não podemos dizer que a responsabilidade precise se tornar culpa para que algo aconteça. Na verdade, há um processo profundamente libertador e de consequências práticas óbvias em deixar de tornar toda responsabilidade uma culpa.

Existem maneiras de assumir responsabilidade sem que isso se transforme em um grande julgamento de valor ou um peso insustentável em cima do frágil indivíduo.

Na verdade, ao assumirmos a responsabilidade sem culpa, é muito mais fácil fazer alguma coisa a respeito do problema, ao invés de ficar dando voltas vacilantes em lidar com como você se sente em relação a o problema.

Tá muito abstrato né? Vamos pensar num exemplo: você magoa alguém de quem você gosta. Você se vê responsável por isso.

Você entra numa espiral de se sentir culpado, tenta compensar a pessoa dando presente que você nem sabe se ela quer, pede desculpas um milhão de vezes. De repente, é tudo muito mais sobre você e a sua culpa do que sobre a pessoa.

Como alternativa, você pode assumir a responsabilidade pelo que fez e tentar olhar para as origens do problema e atuar em cima dos fatos, respeitando os tempo e os limites tanto seu quanto da pessoa. É fácil? Nem um pouco (haja terapia!), mas é o caminho que te leva para alguma solução.

Culpa na política

Da mesma forma é possível encarar os problemas políticos, históricos e sociais que temos e enfrentamos nas nossas vidas. Ao olhar para o coletivo, fica ainda mais claro o quão danosa é a lógica da culpa, o quanto dos problemas e da ineficácia das soluções que temos se deve ao fato de que estão quase sempre baseadas na culpa e não na responsabilização.

Os setores mais conservadores, talvez pela ligação profunda com a religiosidade e a sintonia fina com a ponta de lança do individualismo, são experts na transformação da responsabilidade em culpa. Sua habilidade em encontrar indivíduos culpados só é menor do que a capacidade de negar a própria culpa. Operar na lógica da culpa tem isso: ao encontrar o alvo, vocẽ se livra da sua parcela de culpa e da sua responsabilidade ao mesmo tempo.

Racismo? Culpa de indivíduos racistas, não uma responsabilidade de uma sociedade com processo histórico próprio. Como eu posso ter culpa pelas consequências da escravidão, se eu sou Ítalo-Brasileiro e a minha família veio pro brasil só no começo do século XX?

Culpa e indivíduo no centro, sempre. Nunca o coletivo, nunca a história, nunca responsabilidade por algo maior do que o individual. A lógica da culpa está tão arraigada que o caminho responsabilidade>culpa>desculpa nem passa de fato pela responsabilidade. Há uma tentativa de negar a responsabilidade do coletivo pela negação da culpa do indivíduo.

Repare que nunca foi só pela culpa do indivíduo, ou pelo menos não devia ser. Acreditar que apenas o julgamento dos indivíduos por ações racistas vai resolver a questão do racismo no país é acreditar, por exemplo, que o Estado brasileiro não tem as mãos sujas de sangue das populações negras, mesmo com um longo histórico de leis discriminatórias contra essas populações e o uso constante da polícia como instrumento de controle social das mesmas.

A lógica da culpa dialoga com a essência individual das pessoas, então uma pessoa que tem uma atitude racista pode ser desculpada simplesmente pelo fato de ela não ter sido racista e outros momentos, tipo o clássico discurso do “eu não sou racista, eu tenho até um amigo negro”. No discurso padrão conservador, a culpa funciona para esconder a responsabilidade e garantir que as coisas continuem iguais.

Mas podemos e devemos ir além, pois quem dera que a culpa fosse uma chave que diferenciasse quem é progressista de quem não é, que diferenciasse quem acredita na existência do racismo e quem não acredita.

Há uma profunda atuação da lógica da culpa mesmo dentro de quem se considera progressista.

A culpa gera o famoso complexo do branco salvador. A pessoa que sozinha vai conseguir expiar a própria culpa por nascer em uma sociedade racista, homofóbica e misógina sendo ela mesma o oposto disso, e claro, mostrando MUITO que é o oposto disso.

Salvador Branco

Zizek explora essa noção de forma brilhante nesse vídeo, em que a compra recheada de culpa de um café na strabucks (por ligações com trabalho escravo e sei lá mais o quê que as grandes corporações trazem) pode ser anulada por uma doação de centavos para alguma ONG que (aparentemente) combate a extinção dos pandas.

Aqui vem o ponto central do que eu quero discutir: a tua culpa não vai nos salvar. Não existe doação para causa específica que combata o buraco global em que estamos nos enfiando enquanto sociedade.

Você pode se sentir mal pelo racismo, machismo, LGBTQfobia e fascismo do nosso mundo: você inclusive pode se sentir especialmente mal por odiar todas essas coisas e não ser alvo de nenhuma delas, mas essa culpa não serve pra nada.

Aliás, há algo de especialmente cruel nesse sentimento. Porque se sentir culpado te leva a achar que essa culpa sai de você quando você compartilha uma postagem, doa o troco ou dá uma esmola. Te faz pensar que você fez a sua parte e que é impossível ou desnecessário fazer mais do que isso.

Fazer essas coisas é bom, agir para mudar o mundo é bom e esse é um texto que defende isso. Mas a gente precisa sair da reação por reflexo diante da tempestade de chorume que é o mundo de hoje. A tua culpa e a expiação dela não resolvem os problemas.

Precisamos nos responsabilizar. E aqui eu oponho voluntarismo e militância.

A culpa move o voluntarismo, a responsabilidade move a militância. No voluntarismo, a medida de sucesso é como você se sente, na militância, a medida de sucesso é o avanço das pautas no debate e nas ações concretas para resolver o problema.

O voluntarismo serve para aliviar a culpa do voluntário, a militância é uma construção coletiva que busca resolver um problema.

Além disso, o voluntarismo atua em causas específicas, foca no pequeno, no local, no problema super especificado. A ideia é causar muito impacto e que se ‘todo mundo fizesse o mesmo’ para todas as causas, resolveríamos todos os problemas.

Cria-se um mundo desconexo, fraturado, morada perfeita pro indivíduo composto por várias identidades desconexas. Os problemas daqui podemos enfrentar: think locally, fuck globally (pense localmente, que se foda o global).

Mas a grande e cruel sacada é que nunca vamos de fato resolver tudo. Atuar no pequeno é abrir mão da briga grande, é aceitar o cenário global e atuar no local. É ceder em tudo menos naquilo que te deixam controlar. A salvação global não será feita a partir de pequenas ilhas de bom senso localizadas

Olhamos pros galhos, pras menores folhas nos menores ramos, mas não olhamos pro tronco, não olhamos pras raízes. Perdemos a conexão entre os problemas.

A gente não pode mais viver nesse mundo fraturado. A gente não pode fechar o olho para os motivos dos problemas.

E se eu te disser que a extinção dos pandas, dos golfinhos (e de qualquer outro animal não-humano que você que come carne acha que merece ser salvo) e o desalento de quem nasce no CEP errado da cidade grande e o genocídio da população negra são braços do mesmo problema fundamental que é a forma como organizamos nossa sociedade?

E se eu te disser que todas as lutas individuais são fundamentais, que precisamos sim de gente pra ir na frente de baleeiros e de gente pra ir protestar contra a exploração pelos aplicativos de entrega e de gente pra protestar contra a morte de mais uma criança negra pelas mãos da polícia?

Todas essas lutas são fundamentais. É evidente que há pautas mais urgentes, pautas de curto e longo prazo, pautas que a conjuntura joga na nossa cara e pautas que precisam ser detalhadamente debatidas. Mas eu repito: precisamos encarar todos os problemas.

A militância é essa resposta. Já que a militância não funciona pela culpa, não se cobra tanto do indivíduo.

Eu não estou cobrando que você atue em todas as frentes, por que esse não é um texto sobre você, indivíduo. Mas eu quero que você construa um coletivo que esteja em todas essas frentes.

Precisamos atuar em coletivos que queiram fazer essa grande disputa e todas as menores também. Não é fácil, não é bonito, não rende post legal no instagram. Mas é o único caminho.

O momento exige movimento. A culpa não vai te salvar, não vai nos salvar. Não é hora de se perder nas pequenas lutas nem nas pequenas pautas, é hora de sonhar alto. É hora de se rebelar.

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