Desconstruindo o briefing do app do Bolsa Família
Engenharia reversa para descobrir o que motivou esse projeto.
Eu sei que é difícil pensarmos que não houve corrupção em algo tão estranho como um aplicativo para celular para os beneficiários do Bolsa Família. Principalmente se pensarmos na quantidade de escândalos envolvendo os cofres públicos nos últimos anos.
Mas se desconsiderarmos todo esse histórico de corrupção atual e pensarmos apenas na questão de comunicação e motivos para o desenvolvimento do mesmo, podemos perceber problemas muito grandes que podem ou não serem relacionados ao briefing recebido.
Alguém aprovou não só um app para 3 plataformas como toda a campanha para promove-lo.
Então resolvi pensar em como as empresas que trabalharam nesse projeto receberam o briefing para o seu desenvolvimento.
Esse briefing é uma ficção para ilustrar o que acontece quando algumas agências de publicidade/branding e produtoras recebem problemas dos seus clientes.
O BRIEFING FICTÍCIO
O que? Qual o objetivo desse projeto? que problema ele quer solucionar?
Queremos facilitar o acesso a informação do programa Bolsa Famíla pelos seus beneficiários.
Para quem? Quem serão as pessoas que serão impactadas por esse projeto?
Todos os beneficiários do programa. Homens, mulheres cuja renda familiar seja de R$77 a R$154 mensais por pessoa. Ou segundo o site da Caixa:
“A população alvo do programa é constituída por famílias em situação de pobreza ou extrema pobreza.
As famílias extremamente pobres são aquelas que têm renda mensal de até R$ 77,00 por pessoa. As famílias pobres são aquelas que têm renda mensal entre R$ 77,01 e R$ 154,00 por pessoa. As famílias pobres participam do programa, desde que tenham em sua composição gestantes e crianças ou adolescentes entre 0 e 17 anos. (…)”
Quando esse projeto deve ir para o ar?
O quanto antes para que as pessoas possam ter acesso logo a essas informações.
Onde esse projeto acontecerá? Que canais?
Em todos os canais possíveis.
Qual a principal motivação para que as pessoas usem isso?
Os beneficiários saberem quando o dinheiro do Bolsa família foi depositado para que possam usar esse dinheiro e manter a família fora das situações de pobreza e extrema pobreza.
Para esse briefing fictício, a agência provavelmente apresentou um plano que partia de um fato real: o Brasil tem mais celulares do que pessoas (280 milhões de celulares e densidade de 136,86 cel/100 hab)e por isso a sua solução era criar aplicativos para esse público conseguir acessar essas informações de qualquer lugar.
Smartphones vendidos no Brasil (2014): 54MM de aparelhos
A agência deve ter pensado:
“Legal. Isso aqui já confirma o racional.”
Mas ou esqueceram de ver como era essa distribuição entre o público-alvo, ou optaram por não ver/questionar porque fazer um app para um público que passa por tantas dificuldades: famílias em situação de pobreza ou extrema pobreza.
Parece que não fizeram o básico: analisar a sobreposição de usuários de smartphones que estão na faixa de pobreza ou extrema pobreza(beneficiados pelo Bolsa Família) e a cobertura do 3G e internet.
Partindo do pressuposto que as regiões Norte e Nordeste foram as mais beneficiadas pelo programa (mesmo que a região Sudeste também tenha tido bastante ajuda) e olhando os dados de cobertura 3G e acesso a internet (afinal smartphones podem ser usados apenas em WiFi, certo?) dá para começar a notar que pode ter havido um erro justamente aí.
Cobertura 3G no Brasil — no Norte/Nordeste a média de cobertura é de aproximadamente 68% dos municípios (não contando a zona rural, ou seja a cobertura pode ser ainda menor)
Usuários de internet por Classe Social(2014): Classe D e E — apenas 21% são usuários de internet.
Usuários de internet por faixa de renda: até 1 Salário Mínimo — apenas 27% são usuários de internet.
“É, esses números não ajudam. Vamos ignorá-los. A idéia do aplicativo é muito boa”
Será que houve uma pesquisa com o público-alvo para saber se isso era fundamental? Se sim, qual foi a amostragem? E em que locais foi feita essa pesquisa? Se há algo levemente errado com o racional, devemos explorar mais para confirmar ou cancelar o insight por trás do plano.
E aí que está o problema. Se ninguém questionou isso e mudou o planejamento, algo muito errado estava acontecendo. Eu sei, ano de crise, perdendo clientes ou clientes gastando menos. Temos que faturar ou teremos que demitir mais pessoas da equipe. Sim, tudo isso é verdade e passa na cabeça de todo mundo que tem ou teve uma agência de publicidade ou produtora. Mas há coisas que devemos pensar antes:
“ Qual é o papel da agência de publicidade e da produtora?” Teoricamente é apresentar a melhor solução para os problemas do seu cliente e que seja rentável para a agência/produtora.
Essa foi a melhor solução? Para o cliente, aparentemente, não. Para agência/produtora, aparentemente, sim. Mas qual seria a melhor? Sem ver o briefing real, fica difícil saber. Mas uma coisa é certa: já há uma tabela para saber o dia que o benefício do Bolsa Família deve ser pago. Será que não seria melhor divulga-lo melhor ao invés de fazer um app para 3 plataformas diferentes? Um aplicativo com integração ao sistema bancário não é barato. Imagina em 3 plataformas diferentes. Será que não seria mais fácil e barato fazer um site responsivo que funcionasse no browser de qualquer aparelho?
E aí chegamos na parte final que é a aprovação do cliente. Se esse plano passou por todo mundo da agência e ninguém questionou (ou conseguiu convencer seus pares) por que motivo o cliente não questionou essa solução? Será que ele pensou apenas no nicho que ele ocupa e esqueceu quem seriam os beneficiários desse plano? Será que em nenhum momento passou pela cabeça dele que as pessoas do programa que estão recebendo ajuda por estarem em situações de pobreza ou extrema pobreza teriam dinheiro para ter um smartphone (note que não é um celular comum tipo feature phone)e um plano de dados mesmo que pré-pago?
Enfim, tendo em vista tudo isso e vendo que o aplicativo foi para a rua e até agora (23/10 — quase 1 mês depois de lançado)ele foi baixado por algum número entre 10 mil e 50 mil pessoas apenas para Android. Se usarmos o máximo desse mesmo número e o multiplicarmos para as 3 plataformas (o que é improvável) teríamos 150 mil aparelhos com o aplicativo. Em um programa que ajuda 50 milhões de brasileiros, atingir 150 mil pessoas me parece a prova cabal de que esse aplicativo foi mal planejado e não deveria ter sido feito.
ATUALIZAÇÃO:
O investimento na criação do aplicativo foi de 160 mil reais. Até 3ª feira (20.out.2015), 12.567 pessoas fizeram o download do serviço. Desses, 640 usavam a plataforma iOS; 10.449 Android e 1.478 Windows Phone. (via blog do Fernando Rodrigues UOL Política)
Acho que mesmo se esse número chegasse a 5 Milhões de usuários (aproximadamente 10% do público beneficiado pelo Bolsa Família), ainda pareceria um erro pois há maneiras mais baratas e eficazes de fazer essa mesma informação chegar a todo mundo.
Aí fica a pergunta: Corrupção ou incompetência?
Em ambos os casos a resposta deveria ser a mesma: questionar quem aprovou e quem propôs essa solução e, se for o caso de corrupção (difícil de provar aqui), demitir os responsáveis e cancelar o contrato da agência/produtora que propôs o desenvolvimento desse aplicativo.
Mas infelizmente é aquela história, né? Se a farinha é pouca, meu pirão primeiro. Esse não foi primeiro aplicativo inútil a ser criado e provavelmente não será o último. Mas com certeza, esse é um dos que incomodou mais. Pelo menos a mim.