A prisão da bruxa | Uma análise sobre “Eu não sou uma feiticeira”

Junno Sena
re_corte
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3 min readOct 24, 2018

Se se descobrir bruxa é sinônimo de liberdade sexual, de gênero e religiosa na nossa cultura, não muito longe daqui, é o exato oposto. Sobre a ótica inocente de uma criança, em Eu não sou uma feiticeira, Shula nos mostra que não há nada de glamouroso em se descobrir bruxa em Zâmbia. Primeiramente pela população indignada por viver junto do que eles pensam ser, uma criatura que serve a algo sombrio;em segundo, pela perda de liberdade.

Ao ser condenada — e reitero o uso dessa palavra ao invés de “descoberta” — Shula perde o poder sobre seu próprio corpo. Seu direito de ir e vir, de ser quem sempre foi é dado ao governo que a julga como propriedade dele. Isto é, que deve agora usar todos os seus poderes — mesmo inexistentes — para o único fim de dar lucro a homens já ricos. E claro, se tornar uma atração cultural para turistas brancos.

Talvez o mais interessante desta leitura não seja a falta de glamour que nos faz ansiar para fazer parte de universos incriveis como acontece em Hollywood, mas como ela trabalha com o completo oposto do que conhecemos. Não que ser queimada em fogueira seja atrativo, mas se para Thomasim (A Buxa), feitiçaria representa a sua única forma de liberdade; e para Gillen (Da Magia à Sedução), a saída para encontrar uma irmandade que a proteja da dominação masculina; para Shula, não há nada além de aprisionamento.

Tanto psicológico, ao fazer com que todos passem a tratá-la como uma adulta, fazendo assim a garota perder sua infância para o governo; seja fisicamente, ao ser amarrada com uma fita branca em um carretel através de um ritual, sendo ameaçada de se tornar uma cabra caso corte essa fita.

Mas, se ainda há grandes diferenças entre estas culturas, também há semelhanças. Devido a um equívoco, Shula foi transformada em bruxa pelos olhos dos outros, mas também lhe foi dada uma escolha: viver sobre novas regras de uma classe dominante ou ser livre como uma cabra. Novamente, se consagrar uma bruxa, sem amarras de outros, mesmo com total ciência das consequências é a opção dada a essas mulheres que nada fizeram além de ser elas mesmas.

E o medo de se descobrir presa no corpo de uma cabra é maior do que o de se tornar uma escrava, isolada socialmente e sem expectativa de mudança. Ou quase isso, nesse drama com pitadas de comédia devido a tantos absurdos, também aprendemos que há um porém. Se arranjar um marido que lhe abrigue, a bruxa pode tirar o carretel, mas nunca a presilha que o prende a sua roupa. Isto é, ela é domada por um homem para viver como uma pessoa comum.

Sendo uma metáfora da manipulação do governo ou não, Eu não sou uma feiticeira trata de uma visão completamente diferente da que conhecemos sobre a magia. Uma em que subverteram o poder da bruxa para torná-la nada além de uma máquina. Alguém tão profano que não merece nada além de servir o estado.

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Junno Sena
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Apenas um escritor, jornalista e designer tentando encontrar um rumo.