USS Plato

Fábio Souza
Re-cortes
Published in
3 min readOct 31, 2018
  • Texto originalmente publicado em 22/02/2018 em blog pessoal do autor

-Você assistiu a nova temporada de The Black Mirror? Perguntou Caio.

-Assisti.

-E aí? O que achou?

-Não curti muito não -respondi. Vi na cara de Caio a frustração. Ele só estava tentando puxar conversa, mas, infelizmente, tocara numa ferida recém-aberta. Desestimulado pelo meu desânimo, ele se voltou para o lado e foi se juntar a um grupo de amigos que estava logo a frente. Fiquei ali, remoendo minha mágoa. Mágoa? Não sei se posso chamar de mágoa. Ou seria um senso de culpa? Ouvi uma vez a Jout Jout comentar que o problema dessa série é que ela fazia você pensar que o mundo está exatamente daquele jeito, mas só um pouco menos intenso. Ou algo parecido. Não deveria gastar meu tempo pensando em algo que posso facilmente verificar, mas tenho preguiça de rever o vídeo do Youtube para conferir se ainda lembro do que foi dito. Mas isso não importa num tempo que temos uma celebridade presidenciável gritando aos berros “Fake News”. Se ele pode, não serei eu que ficarei me preocupando se o que entendi realmente é o que foi dito.

Quando comecei a assistir a quarta temporada, logo no primeiro episódio, bateu um sentimento ruim. A única coisa que me distanciava, era a falta de materialidade de meu mundo virtual. Mas, considerando que a minha atitude com as pessoas também atravessa a minha relação com minha projeção sobre elas, será que não dou vida, de alguma forma, ao meu mundo imaginário? E, se sim, isso seria traição?

-Oi amor — Lu chegou, me deu um beijo e essa foi minha deixa. Me despedi de todos e fui para o carro com ela. Permaneci ali, no carona, com um sentimento distorcido de culpa. Por horas me culpava, por horas culpava ela. Ela sempre quis simplesmente um relacionamento convencional. Também não acho que estou disposto a desistir desse conforto de saber que ela está ali, logo ao alcance, sem necessidade de competições pela sua atenção. Na real, não desejo um relacionamento aberto. Para mim, está bom do jeito que está. Se eu pudesse mudar algo, simplesmente não teria assistido a esse maldito episódio.

-Amor, vou parar no Shopping para comprar o presente de minha mãe rapidinho — disse Lu.

-Acho que vou aproveitar para ir ao banco — respondi, dando um beijo nela. Ao chegar no shopping, nos separamos. Por um momento, distraído, estava simplesmente caminhando em direção ao banco sem pensamento fixo. Mas após a quinta gostosa que capturei para minha caverna, voltei à consciência do que estava fazendo. Eram mulheres aleatórias. Não tinha nenhum problema. Mas como seria se Lu soubesse que fantasio com sua irmã, com suas amigas e com as minhas amigas? Isso seria platonizar? Não sei ao certo. Mas é tão bom. Tenho um mundo sob meu controle de mulheres me desejando. E posso me imaginar possuindo elas de todos os jeitos. Não sei porque me sinto culpado por isso, se é graças a minha capacidade de brincar em minha cabeça que podemos ter um casamento estável. Eu nunca a traí. Nunca agarrei sua irmã, sua prima, sua amiga. Me contento em povoar um mundo imaginário. Seria então essa a base de todo o relacionamento? Platonizar suas demais relações e escolher uma para realizar? Que mal haveria nisso? Não existe aí também uma lisonja de se saber escolhida para ser a pessoa do mundo real?

Me vi com o extrato bancário em mãos. Tinha feito tudo no automático enquanto pensava nisso tudo. Liguei para Lu. Nos encontramos em frente à praça de alimentação.

-Oi Amor, olha quem encontrei aqui? — disse Lu, sem desconfiar da captura que estava por vir.

-Oi Ju — Julia era a prima de Lu — que surpresa? Olhei rapidamente, da cabeça aos pés, e lá estava ela, transportada para minha caverna.

Desviava o olhar, por vezes, constrangido de imaginá-la das formas que ali estava eu imaginando.

Abracei Lu, enquanto elas conversavam, e sussurrei em seu ouvido — Te amo — E me descolei da realidade.

--

--