A busca pela beleza discursiva das coisas

Comunicação apresentada durante o XVIII Congresso Internacional da Associação Brasileira de Literatura Comparada

Gabriel Franklin
(Re)Leituras
6 min readJul 15, 2022

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É com Roland Barthes que faço meu começar. Em seu A câmara clara, Barthes, querendo discorrer acerca do que consiste, em essência, a Fotografia com F maiúsculo, parte de uma fotografia (essa com f minúsculo) onde aparece, ainda criança, sua recém-falecida mãe.

Passando pelo particular entendimento de que ele, enquanto ser que investiga, é sempre a medida última de suas análises — sendo a História, por exemplo, compreendida como o período antes de seu nascimento –, Barthes chega ao que nos interessa aqui hoje: há, naquela foto em especial, algo que salta de dentro da moldura, algo que lhe invade violentamente, que lhe fere, e do qual ele não consegue mais escapar. A esse algo, Barthes chama de punctum.

O punctum, portanto, parte da cena, como uma flecha, para penetrar o observador e, uma vez nele entranhado, influenciar toda sua percepção da imagem. No entanto, Barthes ressalta que o punctum trata-se de um elemento parcial, no sentido de ser subjetivo, e que, dessa forma, não poderia ser intencional. Em outras palavras, isso quer dizer que uma mesma foto pode ter impactos diversos: pode ser dilacerante para uma pessoa, mas pode ser uma mera imagem para outra.

Muito embora sua análise parta, como disse, de uma foto específica, Barthes irá, por uma força expansiva própria do conceito que desenvolve, entendê-lo como um potencial elemento de qualquer foto, uma vez que, diante da não-dependência à vontade do fotógrafo, é o sujeito impactado que completa a invasão. É devido a essa sua força expansiva, a esse caráter de inte, ou seja, de algo que vai, que parte, que, acredito, me é permitido transpor, agora, o punctum de sua origem fotográfica para uma aplicação literária.

Pois, também na Literatura, somos tocados por detalhes que, ainda que sem a intenção dos autores, nos marcam como ferro em brasa. É da página que parte o objeto que nos fere, imprimindo percepções e relações que nos fazem retornar, uma e outra vez, ao lugar para onde fomos arrastados numa jornada feita de palavras.

Isso se dá, sobretudo, no âmbito do romance dito realista, assim denominado em virtude da pretensão, mais de quem o lê do que de quem o escreve, em emular a realidade nas suas mais pungentes nuances. Por meio de pequenos furos lexicais, constroem-se poços escuros e profundos em nossos peitos, para onde por vezes caímos, dilacerados, e de cujo fundo vemos, como me conta Haruki Murakami, pássaros cruzarem o ar, contra um céu azul que outrora foi o nosso aqui.

Em nossa constante luta com o real, buscamos na ficção um meio de fuga, mas, nela, acabamos frequentemente alimentados por um vazio, preenchidos por uma falta, confortados por uma ausência. O que parecia uma solução, torna-se parte do problema; como se, nos dizeres de Giorgio Agamben, tentássemos ser pontuais num compromisso a que só podemos nos atrasar.

Por isso, leio em Mia Couto que, sabendo-se “que a realidade é uma espécie de recinto prisional, fechado com a chave da razão e a porta do bom-senso”, “a transgressão poética” mostra-se como “o único modo de escaparmos à ditadura” do real. Sua proposta, portanto, é a de que o ser humano do futuro seja plural, munido de um idioma também plural: “ao lado de uma língua que nos faça ser mundo”, diz ele, “deve coexistir uma outra que nos faça sair do mundo. De um lado, um idioma que nos crie raiz e lugar. Do outro, um idioma que nos faça ser asa e viagem.”

Bebo, sedento, essas palavras de Mia, mas ouso delas discordar em dois pontos. O primeiro é o de que caiba ao indivíduo do futuro esse idioma plural. Na verdade, me parece que esse pensamento deve ser aplicado ao que fomos e não ao que seremos. Esperamos, na ilusão do que nunca será, que o real aconteça; mas, quando este finalmente for, já terá sido, antes, no âmbito do imaginário, do sonho. Portanto, se queremos, como Mia, que os dois, real e imaginário, coexistam, devemos admitir que, no fim das contas, estamos mesmo é no que foi. De forma que escrevemos e lemos, ainda e sempre, do mesmo modo que vivemos: do passado; e, por isso, é a ele que pertence nossa busca.

O segundo ponto diz respeito à divisão do lado de cá/do lado de lá estabelecida por Mia em sua fala. Creio que tal dicotomia possa ser superada, convivendo, então, num mesmo idioma, o ser e o sair; empreendendo-se, numa mesma língua, a viagem e o lugar; criando-se, numa mesma fala, raiz e asa. Esse sonho de Mia, eu junto sonhei e agora o chamo de realirismo.

É nele que começo a atar as pontas que descosturei e deixei soltas até agora. Pois o realirismo veste-se como um idioma de despropósitos, que combina o punctum de Barthes à transgressão poética de Mia Couto; é uma língua que compreende o peso da linguagem romanesca, bem como a leveza da linguagem poética; é uma fala que engloba o realismo do que foi e o lirismo do que poderia ser.

No realirismo não se foge ao punctum, mas o processo não acaba na ferida. Como já tive a audácia de afirmar em outra oportunidade, partindo da concepção de que, muito embora a Literatura não seja a Vida, por ela ser uma vida, faz-se também a Vida, entendo que as mesmas palavras que abrem buracos são capazes de, lentamente, começar a preenchê-los.

Mas, preencher com o que?

Para lhes transmitir a resposta, não basta o dizer; é preciso, antes, o sentir. É preciso, então, que comigo vocês levantem-se do chão, para que juntos ouçamos o murmúrio de uma terra sonâmbula, onde sentiremos o peso de um pássaro morto, até que, finalmente, sejamos contaminados pelas doenças do Brasil.

José Saramago, Mia Couto, Aline Bei e Valter Hugo Mãe têm em comum, além de compartilharem a língua portuguesa, a paixão pela incessante busca ao oculto das coisas. Entre portugueses, brasileira e moçambicano descortinam-se os nomes como os sete véus de Salomé: seduzindo e cadenciando o olhar, desarmando as defesas cuja construção a vida impõe. Subitamente, no cair do último véu, no dizer da última palavra, vem o corte, a estocada, o pedido. No entanto, depois do impacto, quando seria esperado que restasse apenas o que falta, vislumbra-se algo que, passando-se dos véus de Salomé à caixa de Pandora, poderíamos chamar de esperança.

Os exemplos que trago não são, nem pretendem ser, exaustivos, pois vejo o realirismo não como uma escola, mas como uma forma literária. Trata-se, creio eu, de um jeito de escrever e ler que se propõe a, na busca pela beleza discursiva das coisas, preencher o vazio que o real instaura em nosso peito. Injetando-nos a crença num depois melhor que o antes, o realirismo, portanto, inunda o fundo do poço de nós mesmos, nos levando ao que deixamos na superfície: o voo dos pássaros, o azul do céu.

Me é difícil terminar algo sobre o qual poderia discorrer indefinidamente. Mas, se, por ora, é preciso o silêncio, que este seja menos o que se segue ao ponto final e mais o que vem após as reticências. Faço, então, as minhas reticências em forma de poesia e, para isso, como bom carregador de água em peneira que sou, peço ajuda a Manoel de Barros:

Tenho um livro sobre águas e meninos.
Gostei mais de um menino
que carregava água na peneira.

A mãe disse que carregar água na peneira
era o mesmo que roubar um vento e
sair correndo com ele para mostrar aos irmãos.

A mãe disse que era o mesmo
que catar espinhos na água.
O mesmo que criar peixes no bolso.

O menino era ligado em despropósitos.
Quis montar os alicerces
de uma casa sobre orvalhos.

A mãe reparou que o menino
gostava mais do vazio, do que do cheio.
Falava que vazios são maiores e até infinitos.

Com o tempo aquele menino
que era cismado e esquisito,
porque gostava de carregar água na peneira.

Com o tempo descobriu que
escrever seria o mesmo
que carregar água na peneira.

No escrever o menino viu
que era capaz de ser noviça,
monge ou mendigo ao mesmo tempo.

O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.

Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.
O menino fazia prodígios.
Até fez uma pedra dar flor.

A mãe reparava o menino com ternura.
A mãe falou: Meu filho você vai ser poeta!
Você vai carregar água na peneira a vida toda.

Você vai encher os vazios
com as suas peraltagens,
e algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos!

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Gabriel Franklin
(Re)Leituras

Fingindo que estou, sonhando que vou, inventando que volto.