A parte que falta(va)

Gabriel Franklin
(Re)Leituras
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4 min readMay 21, 2022

Father, you left me but I never left you
I needed you, you didn’t need me
So I, I just got to tell you
Goodbye goodbye

(“Mother”, John Lennon)

Mesmo que não tenha sido agora, mesmo que o tempo já tenha apagado a maior parte das marcas, suas e minhas, somente hoje soube que você foi.

Vou lhe tratar por você, mesmo tendo aprendido que deveria lhe chamar de senhor. Peço desculpas se a falta de costume me faz mal-educado, mas não me arrependo do desrespeito. Tenho medo mesmo é das minhas palavras aparentarem falsidade. Hoje, aqui, assim, quero, mais do que nunca, ser sincero e lhe contar muito do que você perdeu.

Quando tinha seis anos, querendo voar, caí de um sofá; o resultado foi um tumor, que precisou ser operado. Até hoje, foi a única vez que passei por uma anestesia geral. Ainda lembro de entrar dentro da parede, ou dela entrar em mim, antes mesmo de chegar no 3 da contagem até 10. E, desde então, tenho medo das alturas, não ambicionando mais do que este duro chão que me pisa.

Pouco depois, talvez aos oito, quase me afoguei no mar. Fui salvo por alguém sem rosto e sem nome, que me puxou quando já me faltavam pé e ar. Devo minha vida a esse desconhecido anônimo tanto quanto a devo a você, o desconhecido nônimo. E, desde então, tenho medo das profundezas, todas elas, pois não é apenas nas águas que se afoga.

A primeira mulher que vi completamente nua foi numa foto de revista. Nunca contemplei algo tão lindo e tão triste. Recortei a foto, escondi no quartinho de entulho do quintal e a olhei por semanas, tentando entender porque algo que deveria me inspirar apenas desejo, e de fato inspirava, também transpirava solidão. Foi quando percebi a origem da melancolia, o ponto exato no corpo feminino de onde brotava tanta desilusão: eram os olhos. A tristeza nos olhos daquela moça na revista nunca mais me deixou; passei a encontrá-la nos olhos de todas as moças que vim a conhecer. E, desde então, meio sem saber como, tento apaziguar, em vão, a mim e a elas.

Meu primeiro beijo foi horrível e o meu melhor beijo foi aquele que nunca experimentei. No mesmo dia em que descobri que não conseguia ver o mundo nas mesmas cores que as outras pessoas, também tive meu coração partido pela primeira vez. Fiquei em pedaços. Para soldar o que restou e remontar-me, tive que canalizar toda a quentura que havia em meu corpo. E, desde então, trago as mãos frias, sempre à procura de um calor que teima em não voltar.

Peguei dinheiros que não eram meus, para obter palavras que não seriam minhas de graça. Tirei-os de carteiras, vestidos, cofres, e nunca os devolvi; nem os dinheiros e nem as palavras. Em cada uma das vezes, menti, deslavadamente. A culpa sempre recaiu sobre outros ou no acaso. O remorso desse muito pouco ainda não me deixa dormir. E, desde então, não consigo guardar e esbanjo o pouco que consigo juntar: os dinheiros e as palavras.

Já pensei em ir embora, mas o riso de uma criança me fez ficar. E, desde então, vou ficando, e vou ficando, e ficando.

Isso foi um pouco do que você perdeu. O que eu perdi, no entanto, foi muito mais. Foi tanto mais, que eu nunca imaginei que iria ter motivo para escrever o que agora escrevo, pois não posso lhe dizer o que agora digo. Mas, hoje, tudo mudou. É que você que não está mais aqui.

Durante um tempo, cheguei a achar que, na verdade, você nunca esteve aqui, espalhado por aís e com alguéns que não faziam diferença para mim, mas deviam importar para você. Você tinha sentimentos, desejos, aspirações, tristezas, tudo independente do que eu queria ou achava. Reneguei seu nome e a poucurta memória que de você eu tinha.

Mas, agora que você não está mais aqui, vejo que sempre esteve aqui. Sua presença se fez na ausência que deixou em mim; no que não foi e talvez nem pudesse ter sido; na parte que eu achei que só faltava, mas que, na verdade, falta. O tempo verbal faz toda a diferença.

Mesmo sabendo que isso não vai trazer de volta os anos que se foram, para mim e para você; e, mesmo sabendo que isso não irá, magicamente, respingar em você os anos que me virão; faço agora as pazes com meu futuro, e com você. Precisamos descansar. Façamos um acordo, então. Você pode descansar, em mim; e eu posso descansar, em você.

Quando assinar meu nome, com minha letra de criança; quando ouvir Jethro Tull, e junto comigo os meus vizinhos; quando jogar xadrez, e provavelmente perder; sei que descansarei uma parte sua.

As minhas partes que descansam com você, infelizmente não tenho como saber. Mas isso não é problema. Uma das coisas que esqueci de lhe dizer é que sei inventar muito bem, até um pai.

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Gabriel Franklin
(Re)Leituras

Fingindo que estou, sonhando que vou, inventando que volto.