As coisas difíceis do mundo

Comunicação apresentada durante o VIII Congresso Internacional da Associação Portuguesa de Literatura Comparada

Gabriel Franklin
(Re)Leituras
8 min readOct 18, 2022

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No Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago, a mulher do médico, que recebeu essa denominação simplesmente por ter aparecido (para o autor e para nós, leitores) depois de seu marido, mas que, por uma questão de protagonismo, representação e importância (não necessariamente nessa ordem), muito que merece levar outro nome, não o seu de fato, que este (como já foi dito em outro lugar, mas pela mesma voz) não conhecemos nem conheceremos; não o seu nome de fato, dizia eu, mas aquele através do qual a ela nos referimos e referiremos.

Reformulo, portanto.

No Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago, a mulher que vê diz: “O mundo todo está aqui dentro.”

Essa simples afirmação, tal qual todo discurso, traz camadas de significação; senão inúmeras, ao menos duas. A primeira delas é óbvia àqueles que acompanham o enredo do romance: ao presenciar a discussão entre dois cegos, devido a uma troca de camas ocorrida após as respectivas idas às retretes, ou, ao menos, ao lugar que se lhes fazia de vez, a mulher que vê assim fala ao marido para expressar sua melancolia diante da percepção de que, nas palavras jogadas aos ventos e nos gestos sem dimensão ou amplitude, certos hábitos, sentimentos e mazelas permanecem naquele que parece ser o lugar onde o mundo encontrará seu derradeiro e triste fim.

A segunda camada de significado dá conta de outra acepção para a expressão aqui dentro. Se, na primeira, o aqui dentro referia-se, espacialmente, ao interior da primeira camarata do lado direito, ou, até mesmo, ao manicômio inteiro, para onde foram levados os acometidos pelo mal-branco; na segunda significação, o aqui dentro refere-se, metafisicamente, ao interior da própria mulher que vê. Nesse entendimento, a personagem, assim como cada um e cada uma que se encontra nesta sala, neste momento, traz, dentro de si, mesmo sem perceber, o mundo todo.

Peço que guardem essa informação, enquanto faço um breve parêntese.

Em outro livro de Saramago, chamado A jangada de pedra, num dado momento, dois homens dividem um quarto de hotel e, cada qual em sua cama, sem correrem o risco de a trocarem, pois ambos têm as vistas boas, estão a conversar sobre as consequências do evento extraordinário que os faz querer viajar em direção à Espanha: a separação, na altura dos Pireneus, da Península Ibérica do restante da Europa. Apreensivo com a subida do nível das águas no continente que vai ficando para trás, um dos viajantes, de nome Joaquim Sassa, comenta com o companheiro: “E Veneza, que estará para lhe acontecer?”. O outro, chamado José Anaiço, tranquilamente lhe responde: “Fica sabendo que a mais fácil das coisas difíceis do mundo seria salvar Veneza.”

Feito o parêntese, retomemos, portanto, o raciocínio que deixamos em espera.

Por entre camas, camadas e angústias, unindo as palavras de uma mulher que é a única a ver num manicômio repleto de cegos, às de um professor cujos únicos pupilos são os estorninhos que o acompanham em sua busca por um homem que sente a terra tremer sem parar, temos que: se o mundo todo está dentro de nós, como diz a primeira, com ele estão não apenas suas coisas difíceis, como diz o último, mas também as fáceis, digo eu agora.

São essas coisas todas que trazemos aqui dentro (o aqui interior, que fique explicitado), tanto as fáceis quanto as difíceis, são essas coisas que nos fazem humanos. Carregamos, como diria Walt Whitman, nossos antigos e doces fardos por nossas perambulações pelo mundo real, e, geralmente só nos damos conta do que eles representam quando somos forçados a encará-los.

Esse confronto interno com as coisas do mundo ocorre, sobretudo, durante o que passarei a chamar, a partir de agora, de estados de urgência. Tratam-se de situações extraordinárias, ocorridas nas épocas mais turbulentas da História, em que a aparente ordem na qual se vive cessa de existir, seja por motivos de guerra, catástrofe natural, a instalação de um governo ditatorial ou uma pandemia, por exemplo, o que nos leva a um processo que o poeta polonês Czesław Miłosz chama de desintegração.

O ponto central desse processo, segundo Miłosz em seu O testemunho da poesia, é a inscrição, na própria realidade, de uma hierarquização de prioridades. Ou seja, e aqui passo a citar o poeta polonês: “Satisfazer a fome”, diz ele, “é mais importante do que a sensibilidade do palato a estas ou aquelas comidas; o mais simples ato de bondade humana em face do próximo, adquire maior significado do que o refinamento de espírito de alguém. Sucede, por fim, uma imensa simplificação de tudo e o indivíduo se pergunta por que se ocupou de coisas que agora parecem não ter importância alguma.”

Tomemos, portanto, essa breve citação, que contém exemplos da hierarquização de prioridades inerente à desintegração apontada por Miłosz, e tentemos encontrar correspondentes no Ensaio sobre a cegueira.

Senão vejamos: quando o estoque de comida enviado pelo governo começa ser monopolizado pelos homens maus das camaratas do lado esquerdo, os integrantes das outras camaratas veem-se obrigados a trocar tudo o que possuem por um mísero pedaço de pão seco e duro; até chegar ao disparate de se usar, como moeda corrente, o corpo e a dignidade das mulheres, então levadas e violentadas em troca de migalhas, que se não são suficientes para matarem a fome, são o suficiente para que a fome não os mate.

Vamos adiante: quando o ladrão do carro está a arder de febre devido à infecção causada pelo golpe que a rapariga dos óculos escuros deu-lhe à perna, esta, aos trambolhões causados pela clara escuridão e aos prantos causados pelo peso do remorso, vai pedir-lhe perdão; naquele momento, ele não era um ladrão ou um assediador, mas alguém que sofria, à mingua, prostrado numa cama, e ela não era uma mulher que se defendeu de um abuso, mas alguém que, fugindo de seu pacífico costume, fez mal a um semelhante, talvez de forma fatal.

Por fim, uma última correspondência: muitas coisas horrendas já havia presenciado a mulher que vê, muitas vezes já havia desejado cegar e ter o fardo de ver retirado de seus ombros (ou olhos). Mas a queda vem, de fato, quando percebe que esqueceu de dar corda no relógio de pulso que levou consigo para o manicômio. Sem o relógio, ela não tem mais como saber que horas são; deve, agora, guiar-se apenas pela claridade, pela escuridão e pelos reclames do estômago. Em meio ao pranto convulso pela perda de mais uma parte de sua vida antiga, ela para e chega à conclusão de que, como aquela não parece ter chances de voltar a ser o que era, o melhor seria esquecê-la de vez.

Todas essas situações que destaquei, portanto, dizem respeito ao processo de desintegração que Miłosz apregoa. Em cada uma, as personagens estão hierarquizando suas prioridades existenciais e perdendo um pouco daquilo que lhes fazia humanos: a fome ficando acima da dignidade, o remorso ficando acima da raiva, o agora ficando acima do antes e do depois.

Nessa dinâmica de encolhimento, ou se me permitem o neologismo, nesse movimento de subsolização, ou seja, de metamorfose do indivíduo no homem do subsolo de Dostoiévski, que vai ficando mais irascível, egoísta e perdido à medida que desce ao interior de si mesmo; nessa dinâmica, dizia eu, não parece haver lugar para esperança. E nem para o futuro, pois, como diz Albert Camus no seu O mito de Sísifo, o “homem sem esperança e consciente de sê-lo não pertence mais ao futuro”.

Isso tudo me leva a pensar que, se a mais fácil das coisas difíceis seria salvar uma cidade do avanço extraordinário das águas, como disse José Anaiço; então, acrescento eu, agora, a mais difícil das coisas fáceis do mundo é perder-se a esperança.

No entanto, assim como se diz que a esperança se encontra no fundo da caixa de Pandora, também a descobrimos no último nível da hierarquia de prioridades: na base dos poços de nós mesmos para onde o desespero dos estados de urgência nos leva. A questão, portanto, é de como trazer essa esperança de volta à superfície; e, é disso que quero lhes falar agora.

Para tanto, mais uma vez recorro a Saramago; permitam-me mais dois exemplos de Ensaio sobre a cegueira.

O primeiro diz respeito ao momento em que a rotina na primeira camarata da direita finalmente se estabelece, ao ponto de o tédio se igualar à miséria. Num dado momento, alguém sugere que se contem histórias. Outro, aproveitando a deixa, diz que seria ótimo se alguém soubesse, de memória, a Bíblia. É nesse momento que o velho da venda preta revela que trouxe um tesouro consigo para a camarata: um rádio. Com dificuldade ele procura entre as estações alguma notícia do mundo exterior, mas para quando escuta uma voz fraca e intermitente a cantar. Nós, e a mulher que vê, presenciamos então a procissão de cegos que vão se aproximando da voz que sai do rádio. Não importa que seja uma canção que nem todos gostem; não importa que daí a pouco o velho vá interromper a cantoria para economizar as pilhas. Naquele momento, mesmo que não vá se realizar, os cegos da camarata sonham.

O segundo exemplo, dá-se quando, depois de saídos do manicômio, e sempre com a ajuda da mulher que vê, o primeiro cego e sua mulher visitam sua antiga morada. Lá chegando, descobrem que esta foi invadida por um escritor e sua família, todos, obviamente, também cegos. Durante as combinações de como a situação iria se resolver, descobre-se que o escritor, mesmo sem poder ver, continua a trabalhar: com a ajuda das depressões que a caneta faz no papel, o escritor cego registra, em forma de palavras e em linhas que às vezes se sobrepõem, o mundo que lhe rodeia. Naquele momento, mesmo que ninguém vá ler, o escritor cego escreve.

Em ambas as situações, as personagens estão presas entre um passado a que não têm como voltar e um futuro com o qual não se dão ao luxo de sequer sonhar. A diferença entre os dois exemplos é que, no primeiro, algo as fez esquecer, mesmo que por alguns momentos, o presente que as confina. No segundo, o confinamento é transformado em motor de criatividade, não para esquecer, mas para lembrar. Mas, novamente, em ambas há ainda a esperança, a espreitar por entre uma voz misturada à estática, ou entre palavras misturadas umas às outras em linhas tortas.

Não é porque essas situações e essas personagens são de ficção que não podem ser consideradas reais. Basta olharmos para nossos dois últimos anos; basta pensarmos em como o confinamento, às vezes obrigatório, às vezes voluntário, nos moveu em direção a nós mesmos. O que encontramos? O que nos encontrou?

As respostas para essas perguntas e(s)coam no tempo. Tentativas de representação certamente serão levadas à cabo, como estas linhas, escritas, na solidão do outro lado do Atlântico, por um guardião cego que teimou em esconder seus tesouros marcando-os com tinta, mas que ora os desenterra e lhes revela, com um misto de ansiedade e alívio, como há de ser toda partilha de segredos.

Por fim, começo meu terminar como terminei meu começar, com uma citação do Ensaio sobre a cegueira. Nesta, que será a última, prometo, vemos o médico, ou melhor, o marido da mulher que vê, conversando com o primeiro cego justamente sobre a esperança, ou a falta dela.

Contradizendo-se, pois afirma não se considerar um otimista, o marido da mulher que vê então fala, meio ao companheiro, meio a si mesmo: “Alguma coisa vai ter de suceder aqui”. Assim como as palavras de sua esposa, essas trazem um aqui que na verdade são dois: tanto o exterior, (ou seja, o mundo), quanto o interior (ou seja, o peito).

Pois eu lhe digo, caro senhor doutor, que algo já aconteceu, acontece e acontecerá enquanto tivermos olhos para ouvir, ouvidos para ler, mãos para falar e um corpo para navegar por esse mar de incertezas que é a vida.

Esse algo é o motivo pelo qual estamos reunidos hoje, aqui, na proa dessa jangada de pedra ainda por zarpar; esse algo, caro senhor doutor, chama-se Literatura.

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Gabriel Franklin
(Re)Leituras

Fingindo que estou, sonhando que vou, inventando que volto.