As tentações da infância

Saramago e a literatura quântica

Gabriel Franklin
(Re)Leituras
13 min readOct 31, 2023

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Nasce uma criança, e o mundo todo,
que está aí para ser conhecido,
é como uma tentação.

(As pequenas memórias, José Saramago)

“De temptatie van de heilige Antonius”, Jheronimus Bosch (c. 1500)

A infância, se a considerarmos sob uma perspectiva romântica,[1] pouco foi (re)tratada por José Saramago em sua ficção. Há que se fazer essas duas ressalvas, que vêm restringir a afirmação com que abro este ensaio, pois, no conjunto não-ficcional de sua obra, sobretudo no âmbito das crônicas e dos textos políticos (vejam-se Deste mundo e do outro, A bagagem do viajante e O caderno), Saramago sempre demonstrou uma constante preocupação com o destino da criança em Portugal e no mundo.

Feitas e explicadas as ressalvas, continuemos o raciocínio interrompido: ainda que, mesmo afirmando não saber fazê-lo,[2] tenha escrito para crianças (A maior flor do mundo, O silêncio da água e O lagarto são provas disso), o autor português, de fato, pouco escreveu sobre crianças em seus romances, sendo raras as exceções (o rapazito estrábico do Ensaio sobre a cegueira, o jovem Jesus do Evangelho segundo Jesus Cristo e o pequeno Henrique de Claraboia são algumas). Nesse sentido, seu raio de (moviment)ação sempre parece ter sido a vida adulta, e, seu alvo, a “gente crescida”, sobretudo a mais madura.

Talvez isso se deva à intenção de Saramago em fazer com que a escrita sua e a leitura nossa acompanhassem a jornada que o próprio autor empreendia na roda do tempo; uma vez que os anseios ficcionais do ribatejano começaram, a sério, somente quando este já lá ia pelos seus 50 anos de caminhada. Outra possibilidade, que ora me ocorre, é a de que, devido ao pouco contato com crianças em geral (visto que teve somente uma filha), Saramago não se sentia à vontade para escrever sobre e para elas.

A única criança que parecia dar-lhe confiança suficiente para tornar-se uma autêntica “pessoa de livro”, é a própria criança que Saramago foi, e que ele, em diversas oportunidades (mas, principalmente, nas entrevistas que deu na parte final de sua vida), disse respeitar e, por isso, buscar a aprovação. Em dado momento, Saramago chegou, inclusive, a associar seu processo de escrita à presença, em si, da solitária criança que nunca deixou de ser. Refletiu o ribatejano que seu fazer literário se utilizava da “confiança nas virtudes cognitivas da imaginação”; confiança essa que, por sua vez, alimentou, durante muito tempo, “as inspirações mais fáceis dos poetas e a fantasia de criança que, de uma maneira ou de outra, cada um de nós vai tentando defender e guardar dentro de si.”

Sabendo-o ou não, Saramago tocou, ao falar da criança interior em comunhão com o poeta, em um importante ponto de algo que me arrisco a chamar aqui de teoria onírico-estética, em outras palavras, um olhar gnoseológico que relacione a origem do impulso artístico aos etéreos meandros do sonho (ainda que desperto). Freud, em sua conferência “O poeta e o fantasiar” (proferida em 1907 e publicada em forma de texto um ano depois), faz exatamente essa associação, ao afirmar que o

poeta faz algo semelhante à criança que brinca; ele cria um mundo de fantasia que leva a sério, ou seja, um mundo formado por grande mobilização afetiva, na medida em que se distingue rigidamente da realidade. E a linguagem mantém esta afinidade entre a brincadeira infantil e a criação poética, na medida em que a disciplina do poeta, que necessita do empréstimo de objetos concretos passíveis de representação, é caracterizada como brincadeira/jogo [Spiele]: comédia [Lustspiel], tragédia [Trauerspiele] e as pessoas que as representam, como atores [Schauspieler].

De maneira que, para Freud, a criança, ao brincar, comporta-se como um poeta, “na medida em que ela cria seu próprio mundo, melhor dizendo, transpõe as coisas do seu mundo para uma nova ordem, que lhe agrada”; e o poeta, por sua vez, enquanto adulto, deixou de brincar, “renunciando claramente ao ganho de prazer que a brincadeira lhe trazia”. No entanto, continua Freud, através da análise da vida psíquica das pessoas, é possível constatar que, enquanto crescemos, “não poderíamos renunciar a nada”; o que ocorre é que “apenas trocamos uma coisa por outra; o que parece ser uma renúncia é, na verdade, uma formação substitutiva ou um sucedâneo”. Assim, completa Freud seu raciocínio, o poeta nada mais faz que tomar de empréstimo objetos reais para si: “em vez de brincar, agora fantasia. Ele constrói castelos no ar, cria o que chamamos de sonhos diurnos.”

O sonho diurno, que, como vimos acima, Freud chama de fantasia, mas que Bachelard, por sua vez, chama de devaneio, diferencia-se de seu correlato noturno, pois este último, “sobrecarregado das paixões mal vividas na vida diurna”, traz, em si, uma solidão estranhamente imbuída de hostilidade. Nesse sentido, enquanto “o sonho noturno pode desorganizar uma alma, propagar, mesmo durante o dia, as loucuras experimentadas durante a noite, o bom devaneio ajuda verdadeiramente a alma a gozar do seu repouso, a gozar de uma unidade fácil”.

Se continuarmos, nessa pequena digressão, a dialogar com Bachelard, teremos que o império do devaneio do poeta confunde-se, justamente, com o reino da infância, cujos domínios podem ter a extensão da vida inteira:

Por alguns de seus traços, a infância dura a vida inteira. É ela que vem animar amplos setores da vida adulta. Primeiro, a infância nunca abandona as suas moradas noturnas. Muitas vezes uma criança vem velar o nosso sono. Mas também na vida desperta, quando o devaneio trabalha sobre a nossa história, a infancia que vive em nós traz o seu beneficio. É preciso viver, por vezes é muito bom viver com a criança que fomos. Isso nos dá uma consciência de raiz. Toda a árvore do ser se reconforta. Os poetas nos ajudarão a reencontrar em nós essa infância viva, essa infância permanente, durável, imóvel.

Partindo, portanto, de Saramago; passando, depois, por Freud; e desembocando, finalmente, em Bachelard; junto agora, para poder continuar, as pontas que deixei soltas: uma vez que Saramago se via, ainda e então, como uma criança que brinca, ou seja, como um poeta que, devaneando palavras, constrói castelos no ar, parece lógico que a única autobiografia que tenha intentado escrever, e assim a denominar (levando-se em conta que os já aqui citados Cadernos de Lanzarote sejam uma espécie de autobiografia, mas que não levam, nem trazem, consigo, a alcunha), parece lógico, repito, que esta desse conta, precisamente, de sua infância, período que o próprio demarcou como sendo “só até os catorze anos”.

O menino dos três começos

Como disse acima, a conclusão parece lógica; no entanto, digo-o agora, é digno de curiosidade, e a razão de ser de todo esse percurso em que já vamos nós a mais da metade, o nome escolhido, inicialmente, para o projeto: O Livro das Tentações. A ideia, segundo Saramago, surgiu, à época da escrita do Memorial do Convento (publicado em 1982), após uma vista de olhos mais prolongada sobre o quadro As Tentações de Santo Antão, de Hyeronimus Bosch, que estava (e ainda está) exposto no Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa:

A ambiciosa ideia inicial havia sido mostrar que a santidade, essa manifestação “teratológica” do espírito humano capaz de subverter a nossa permanente e pelos vistos indestrutível animalidade, perturba a natureza, confunde-a, desorienta-a. Pensava então que aquele alucinado Santo Antão que Hyeronimus Bosch pintou nas Tentações, pelo facto de ser santo, havia obrigado a que se levantassem das profundas todas as forças da natureza, as visíveis e as invisíveis, os monstros da mente e as sublimidades dela, a luxúria e os pesadelos, todos os desejos ocultos e todos os pecados manifestos.

A partir dessa explicação, contudo, é de se pensar que, como o próprio idealizador depois o pensou e escreveu, o título não caberia, à risca, ao projeto intentado:

Curiosamente, a tentativa de transportar tema tão esquivo (ai de mim, não tardaria a compreender que os meus dotes literários ficavam muito abaixo da grandiosidade do projecto) para um simples repositório de recordações a que, obviamente, conviria um título mais proporcionado, não impediu que me tivesse visto a mim mesmo em situação de alguma maneira semelhante à do santo. Isto é, sendo eu um sujeito do mundo, também teria de ser, ao menos por simples “inerência do cargo”, sede de todos os desejos e alvo de todas as tentações.

A tarefa de substituir o Livro das Tentações coube, portanto, ao “simples repositório de recordações” que Saramago, então, resolveu chamar de As pequenas memórias.[3] Nele, Saramago fala de seus primeiros cenários[4], de seus duradouros traumas[5] e de seus (três) começos. Sobre estes últimos, vale a pena se estender um tanto mais.

Seguindo a lógica ordem dos caminhos, onde os acontecimentos iniciais precedem os finais, tendo, entre si, os meios (ou médios, se preferirem), o ideal é, então, partir do antes em direção ao depois. Curiosamente (e parece que as curiosidades se multiplicam quando falamos sobre José Saramago), o escritor português subverteu essa máxima organizacional, invertendo a ordem cronológica dos ocorridos e suas respectivas aparições nas Pequenas memórias.

Sendo assim, o primeiro começo de Saramago ocorreu quando sua mãe, ao ser pedida em namoro por seu pai, junto à fonte da vila (fonte esta que será retomada, sob outras circunstâncias, em Levantado do chão), esqueceu, ao voltar à casa, que carregava na cabeça o pote com a água que fora buscar: “Cacos, água derramada, ralhos da minha avó, talvez risos ao conhecer-se a causa do acidente. Pode-se dizer que a minha vida também começou ali, com um cântaro partido”. Trata-se, portanto, do momento em que Saramago considera que passou a existir, ainda que potencialmente, visto que demoraria ainda alguns anos para, de fato, nascer.

O segundo começo, e, para não perdermos as contas nem as direções, também a mediana de minha enumeração, dá conta da entrada de Saramago na vida letrada, e, dessa forma, no mundo. O gatilho para a recordação vem de um teste de língua portuguesa, um simples ditado, quando da ida do jovem Zezito a uma nova escola:

Logo poucos dias depois de as aulas terem começado, a professora, com o fito de averiguar como andávamos nós de familiaridade com as ciências ortográficas, fez-nos um ditado. Eu tinha então uma caligrafia redonda e escorreita, aprumada, boa para a idade. Ora, aconteceu que o Zezito (não tenho culpa do diminutivo, era assim que a família me chamava, muito pior teria sido se o meu nome fosse Manuel e me tratassem por Nelinho…) cometeu um único erro no ditado, e mesmo assim erro não era bem, se considerarmos que as letras da palavra estavam lá todas, embora trocadas duas delas: em vez de “classe” tinha escrito “calsse”. Excesso de concentração, talvez. E foi aqui, agora que o penso, que a história da minha vida começou.

Por fim, mas não menos importante (há quem, inclusive, diga que o melhor sempre fica para o final), trago à colação o último (e, talvez, mais caro) dos começos que Saramago aponta para si: a primeira grande desilusão amorosa. Já às bordas da adolescência, Saramago cruzou o rio para ir encontrar, numa festa, a moça por quem estava enamorado; após passar a noite sem conseguir se soltar o bastante para avançar mais do que alguns passos de dança e perceber que a moça estava mais interessada em outros jovens parceiros, foi um cabisbaixo Saramago que voltou, a pé, para casa de seus avós maternos:

Depois de muito caminhar, ainda o amanhecer vinha longe, achei-me no meio do campo com uma barraca feita de ramos e palha, e lá dentro um pedaço de pão de milho bolorento com que pude enganar a fome. Ali dormi. Quando despertei, na primeira claridade da manhã, e saí, esfregando os olhos, para a neblina luminosa que mal deixava ver os campos ao redor, senti dentro de mim, se bem recordo, se não o estou a inventar agora, que tinha, finalmente, acabado de nascer. Já era hora.

Esse, portanto, foi o livro que, de fato, escreveu Saramago, o menino dos três começos, o homem das três amarguras;[6] o livro que teria deixado orgulhosa a criança que Saramago fora e, que, segundo ele mesmo, iria deixar este mundo consigo, de mãos dadas, quando chegasse a hora de ambos. Símbolo disso é a frase que encerra as Pequenas memórias: “Nunca mais tornei a ver o lagarto verde”; com efeito, a partir daquele momento de perda de inocência, o qual talvez tenha lhe catapultado, finalmente, à adolescência, Saramago teve que (re)criar, no plano da imaginação, seus próprios lagartos verdes, em respeito aos que a criança, que trazia dentro de si, já não mais podia encontrar no mundo.

Contudo, resta, ainda, a questão do livro que ele não escreveu: o livro que falaria do sentimento de Santo Antão diante da tentação que é o mundo inteiro. Para encerrar este ensaio, então, faço uma pergunta, à qual intentarei responder com duas hipóteses: qual a natureza (se é que a há) do verdadeiro Livro das Tentações? Vamos lá a ver…

A litertura quântica

Inicio aventando a hipótese de Saramago não ter escrito o Livro das Tentações por este já ter sido escrito por outra pessoa, só não sendo esta real (ou, ao menos, não de carne e osso). O livro, portanto, pertenceria a uma categoria especial de literatura que, segundo o próprio Saramago, foi inaugurada, ou inventada, pelo escritor argentino Jorge Luís Borges: a literatura virtual.[7]

Composta por livros que só existem dentro de outros livros, a literatura virtual foi utilizada por Borges, pode-se dizer, como meio de creditar à sua escrita contística um certo toque canônico de autoridade que o próprio autor não contava já possuir; em outras palavras, seria uma espécie de salvaguarda (se a narrativa fosse boa, seria de sua autoria; se fosse ruim, ele assumiria a figura de um simples intermediário). O certo é que seus leitores ficavam a perguntar-se acerca da origem de livros que pareciam reais, como The god of the labyrinth, e da inspiração de outros que pareciam impossíveis, como O livro de areia.[8]

Saramago teve, então, contato com a literatura virtual através de Borges, e a utilizou tanto explícita (o acima mencionado The god of the labyrinth é o livro que Ricardo Reis leva consigo do navio que o trouxe de volta à Portugal),[9] quanto implicitamente, tendo criado seus próprios livros virtuais.

Sete são os que ficaram registrados nas epígrafes de seus romances: O Livro dos Conselhos (História do cerco de Lisboa e Ensaio sobre a cegueira), O Livro das Evidências (Todos os nomes), O Livro dos Contrários (O homem duplicado), O Livro das Vozes (Ensaio sobre a lucidez), O Livro das Previsões (As intermitências da morte), O Livro dos Itinerários (A viagem do elefante) e O Livro dos Disparates (Caim).

O Livro das Tentações faria parte desse seleto conjunto virtual, não fosse um pequeno detalhe: não ser ele mencionado em nenhuma das epígrafes que abrem as obras saramaguianas, ao ponto de as célebres palavras que antecedem As pequenas memórias (“Deixa-te levar pela criança que foste”), serem retiradas do Livro dos Conselhos (perfazendo um total de três aparições deste que, pode-se agora dizer, é o mais [des]conhecido livro virtual de Saramago).

Talvez Saramago não o tenha incluído no rol de epígrafes, e, assim, equiparado-o aos seus outros livros virtuais, por ter entendido que O Livro das Tentações deveria tratar da tentação sob o particular ponto de vista da infância de vida inteira que é o fazer poético (conforme discutido no início deste ensaio), abordando, assim, a totalidade do mundo por conhecer; de tal maneira que se estaria diante de uma outra categoria de literatura: não mais virtual, mas quântica.

O termo pode parecer esdrúxulo, mas tem razão de ser. Se um dos experimentos fundadores da física quântica dá conta de um felino que, ao mesmo tempo, está vivo e morto numa caixa; então, o experimento fundador de uma literatura quântica será aquele que dará conta de um livro que, ao mesmo tempo, já foi escrito e ainda está por escrever.

Talvez essa seja, justamente, a natureza última (e, porque não, também, primeira) do Livro das Tentações: por serem infinitas as tentações da infância (ao menos enquanto o finito mundo durar), o único livro que poderia contê-las todas seria um livro também infinito; um livro que contivesse todos os livros da Biblioteca de Babel borgiana, ou seja, todos os que já foram e os ainda por vir;[10] um livro escrito em páginas de areia (se quisermos continuar com Borges) e em líquidos caracteres (tal qual foi escrito o nome do jovem poeta inglês);[11] um livro quântico, portanto.

Notas

[1] “Tem-se a impressão, portanto, de que, a cada época corresponderiam uma idade privilegiada e uma periodização particular da vida humana: a ‘juventude’ é a idade privilegiada do século XVII, a ‘infância’, do século XIX, e a ‘adolescência’, do século XX.”

[2] “(…) não sei escrever para crianças, (…) quando eu próprio fui criança não me interessavam muito o que chamamos <<histórias infantis>>, o que eu queria era saber o que diziam os livros para a gente crescida.”

[3] “Sim, as memórias pequenas de quando fui pequeno, simplesmente.”

[4] “para a criança melancólica, para o adolescente contemplativo e não raro triste, estas eram as quatro partes em que o universo se dividia, se não foi cada uma delas o universo inteiro”

[5] “Quem pela primeira vez me visita pergunta-me quase sempre se sou cavaleiro, quando a única verdade é andar eu ainda a sofrer dos efeitos da queda de um cavalo que nunca montei. Por fora não se nota, mas a alma anda-me a coxear há setenta anos.”

[6] “João Barroso cumpriu a promessa que havia feito, trouxe-me um nome chinês. Além de Saramago, serei também San Ku, que quer dizer Três Amarguras”

[7] “A cada escritor consultado foi entregue o desenho de uma árvore com onze molduras dispersas pelos diferentes ramos, onde suponho que hão de vir a aparecer os retratos dos autores escolhidos. A minha lista, com a respetiva fundamentação, foi esta: Luís de Camões, porque, como escrevi no Ano da Morte de Ricardo Reis, todos os caminhos portugueses a ele vão dar; Padre António Vieira, porque a língua portuguesa nunca foi mais bela que quando ele a escreveu; Cervantes, porque sem ele a Península Ibérica seria uma casa sem telhado; Montaigne, porque não precisou de Freud para saber quem era; Voltaire, porque perdeu as ilusões sobre a humanidade e sobreviveu a isso; Raul Brandão, parque demonstrou que não é preciso ser-se génio para escrever um livro genial, o Húmus; Fernando Pessoa, porque a porta por onde se chega a ele é a porta por onde se chega a Portugal; Kafka, porque provou que o homem é um coleóptero; Eça de Queiroz, porque ensinou a ironia aos portugueses; Jorge Luis Borges, porque inventou a literatura virtual; Gógol, porque contemplou a vida humana e achou-a triste.”

[8] Ver “Exame da Obra de Herbert Quain” e “O livro de areia”, respectivamente, em Ficções e O livro de areia.

[9] “Pôs o livro na mesa-de-cabeceira para um destes dias o acabar de ler, apetecendo, é seu título The god of the labyrinth, seu autor Herbert Quain, irlandês também, por não singular coincidência, mas o nome, esse sim, é singularíssimo, pois sem máximo erro de pronúncia se poderia ler, Quem, repare-se, Quain, Quem, escritor que só não é desconhecido porque alguém o achou no Highland Brigade, agora, se lá estava em único exemplar, nem isso, razão maior para perguntarmos nós, Quem. O tédio da viagem e a sugestão do título o tinham atraído, um labirinto com um deus, que deus seria, que labirinto era, que deus labiríntico, e afinal saíra-lhe um simples romance policial, uma vulgar história de assassínio e investigação, o criminoso, a vítima, se pelo contrário não preexiste a vítima ao criminoso, e finalmente o detective, todos três cúmplices da morte, em verdade vos direi que o leitor de romances policiais é o único e real sobrevivente da história que estiver lendo, se não e como sobrevivente único e real que todo o leitor lê toda a história.”

[10] Ver “A Biblioteca de Babel”, em Ficções.

[11] Here lies One Whose Name was writ in Water”, lê-se na lápide de John Keats.

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Gabriel Franklin
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Fingindo que estou, sonhando que vou, inventando que volto.