Bem-te-quero: Saramago e a literatura curativa

Comunicação apresentada durante o Congresso “Figurações Interartes”, realizado na Universidade de Lisboa

Gabriel Franklin
(Re)Leituras
5 min readJun 22, 2022

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Começo, então, com Freud, quando este diz, n’O mal-estar na civilização, que “a vida, tal como nos coube, é muito difícil para nós”, pois traz, em seu bojo, “demasiadas dores, decepções, tarefas insolúveis”. Para suportá-la, devemos lançar mão de meios paliativos que, segundo ele, seriam de três tipos: “poderosas diversões, que nos permitem fazer pouco de nossa miséria, gratificações substitutivas, que a diminuem, e substâncias inebriantes, que nos tornam insensíveis a ela.”

Esse trecho denota o caráter paradoxal de nossa relação com a realidade: se, por um lado, diante da liquidez do mundo moderno, como diria Bauman, buscamos a todo custo fincar raízes firmes no terreno do real e, para isso, procuramos meios de, em linhas precisas, diferenciá-lo do imaginário; por outro, o real nos aterroriza a tal ponto, que nossa existência diária não passa de uma incessante tentativa, se não de transformação, ao menos de fuga.

Quase cem anos separam as palavras de Freud do dia de hoje e, nesse período, pouco parecemos ter mudado: continuamos os seres assustados que sempre fomos, constantemente em luta com o mundo. Este, no entanto, segundo Byung-Chul Han, foi que mudou: passou da repressão para a depressão. No que poderíamos chamar de sua Trilogia da Sociedade, Han aponta as características desse mundo pós-moderno que nos envolve e nos contamina.

É um mundo pautado pelo desempenho, onde se substituiu a exploração do outro, pela exploração de si mesmo; onde a aparência de liberdade proporcionada pela romantização do empreendedorismo e da livre iniciativa neoliberais, na verdade mostra-se tão (ou mais) sufocante quanto a situação proletária do início da Revolução Industrial.

É também um mundo pautado pela superficialidade, onde se substituiu o negativo pelo positivo, o áspero pelo liso, o árduo pelo prazeroso; onde se busca a satisfação dos desejos de maneira rápida e fácil, pornográfica, que não deixa espaço para o mistério e a cadência sedutora do erótico.

É, por fim, um mundo pautado pela aparência, onde se substituiu o interior pelo exterior; onde o like é o bem mais valioso que se pode ter, e que se torna a aspiração última de toda uma geração que não sabe mais ouvir os próprios pensamentos, se é que os têm.

Portanto, triplamente envoltos pelo cansaço, pelo paliativo e pela transparência, habitamos algo que, a partir de agora, passo a me referir como soci(ansi)edade: um ambiente onde somos atormentados pelas banalidades da própria vida, em um perene estado de urgência, que se alastra para todas as esferas de nossa existência, inclusive para a Arte que utilizamos como escape.

Italo Calvino, em seu Seis propostas para o próximo milênio, aponta que a linguagem artística foi acometida, no fim do último século, por uma peste, que consiste “numa perda de força cognoscitiva e de imediaticidade”, como se se tivesse instaurado um processo nocivo e perverso de “automatismo, que tendesse a nivelar a expressão em fórmulas mais genéricas, anônimas, abstratas, a diluir os significados, a embotar os pontos expressivos, a extinguir toda centelha que crepite no encontro das palavras com novas circunstâncias”. Para Calvino, portanto, a linguagem artística está tão doente quanto o mundo e os indivíduos que a geram.

De maneira que, também a Arte desenvolvida em meio ao estado de urgência da soci(ansi)edade se apresenta como uma das manifestações da paradoxal relação que estabelecemos com a realidade: na mesma medida em que a utilizamos para expressar o que é, também a usamos para fugir no que poderia ser. Mas, mesmo fugindo, e os modos pelos quais se foge são tão diversos quantos são os indivíduos, parecemos não conseguir nos desprender do que nos rodeia. Estamos, portanto, contaminados pela angústia do real, que nos persegue até quando construímos nossos castelos feitos de nuvens. A fuga, no fim das contas, nos leva (apenas e sempre) de volta à própria soci(ansi)edade.

Por isso, a chamada Crise das Humanidades que nos une aqui hoje, trata-se antes de tudo, de uma Crise da Humanidade, do humano em si, que se encontra doente de algo que ele próprio criou: o futuro, “essa mentira sobre o tempo que”, segundo Valter Hugo Mãe, “nos impede de viver quando somos e nos adia para quando jamais haveremos de ser”. É o futuro que adoece as coisas todas, inclusive as palavras, subjugando-as a um “depois que, por definição, não acontece”.

Mas, se, por um lado, a Arte do tempo presente (e, com ela, obviamente, também a Literatura) reflete a crise sobre a qual me referi até agora, é também através dela que se pode encontrar uma solução, uma cura, pois, novamente segundo Italo Calvino “a literatura (e talvez somente a literatura, essa “Terra Prometida em que a linguagem se torna aquilo que na verdade deveria ser”), pode criar os anticorpos que coíbam a expansão desse flagelo.”

É aqui que passo a falar sobre José Saramago, centenária testemunha deste mundo doente. Com a paciência de quem não tem pressa, Saramago ouviu aqueles que, segundo ele, “do chão se levantaram e a ele não tornam, porque do chão só devemos querer o alimento e aceitar a sepultura, nunca a resignação.”

Assim nasceu a família Mau-Tempo, esta que, apesar da clara e profética diferença de apelidos, aproxima-se muito da Buendía de García Márquez: pois é de bons dias e de tempos maus que se faz um ano de vida; é de anos melhores e de piores vidas que se faz um século de solidão.

Mas há, ainda e sempre, a esperança; como no dia em que nasceu a sobrinha de António Mau-Tempo. Este, a caminho da casa da irmã, passa por um canteiro e, na falta de um presente para a pequena, colhe um malmequer. Com medo de suas grossas e calejadas mãos estragarem a delicada prenda, António a coloca entre os lábios e assim a carrega até seu destino. No entanto, pela seiva do Mau-Tempo que vai e pela alegria da Mau-Tempo que vem, a flor que chegou não foi a mesma que do chão foi levantada: não cabe mais chamar-se malmequer, trata-se agora de um bem-te-quero.

Saramago sabe que as palavras não são as coisas, mas sim as formas pelas quais chegamos a elas. Consciente de que os nomes são como pequenos focos de luz em meio à escuridão, da tela e do tempo, ele parece acreditar que, no mudar dos rótulos, começa-se lentamente o mudar dos conteúdos. E, assim, ao acreditarmos com ele, renasce a esperança.

Termino dizendo que a Literatura pode não ser a Vida; mas, sendo uma vida, é também a Vida. E, uma vez que encontremos palavras que nos revigorem, que nos preencham, que, finalmente, nos curem, numa Literatura como a de José Saramago, algo como mudar o mundo, que pareceria uma loucura ou uma utopia, pode parecer tão simples e natural como mudar o nome de uma flor.

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Gabriel Franklin
(Re)Leituras

Fingindo que estou, sonhando que vou, inventando que volto.