Breves reflexões sobre a alteridade prática

Ensaio apresentado na disciplina “Fronteiras da Literatura”, do Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília.

Gabriel Franklin
(Re)Leituras
3 min readSep 13, 2020

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O dialogismo bakhtiniano refere-se à relação do ser com o outro. Nele, ressalta-se entre outros elementos o “fato de um mesmo enunciado, de um mesmo locutor, conter em si não só a minha palavra, mas também a palavra do outro”. Desta forma, o ser só é possível devido ao contato com o outro.

Corroborando a construção bakhtiniana acerca do dialogismo, mas chamando-o de intersubjetividade, Merleau-Ponty nos fala que o

mundo fenomenológico é não o ser puro, mas o sentido que transparece na intersecção de minhas experiências, e na intersecção de minhas experiências com aquelas do outro, pela engrenagem de umas nas outras; ele é portanto inseparável da subjetividade e da intersubjetividade que formam sua unidade pela retomada de minhas experiências passadas em minhas experiências presentes, da experiência do outro na minha. (Grifos nossos)

No entanto, podemos perceber em nossas relações cotidianas que essa dinâmica não é harmoniosa. O ser a todo instante deseja moldar o outro, capturá-lo, ainda que de forma inconsciente, ainda que de maneira ética. O pensamento da alteridade, no sentido do contato do ser com algo fora de si, mostra-se mais como um conflito do que como uma síntese. O outro de fato serve como elemento constitutivo do ser, mas este é sempre o paradigma daquele, uma vez que o ser, através dos sentidos, é a medida de si mesmo.

A pulsão do ser em dominar o outro materializa-se na rejeição ao diferente. O que deveria servir para ressaltar o dialogismo e a singularidade, de fato dá origem a uma necessidade de monologizar. O que eu sinto/penso/faço é o correto/ético, enquanto que o que o outro sente/pensa/faz, se divergente, é errado/anti-ético. O juízo que se faz do outro é sempre cruel; o que se faz de si mesmo, puritano. E mais, uma ação/decisão diferente da minha é uma afronta pessoal aos meus valores.

O outro então assume conotação pejorativa. É o diferente, o estranho, o incompreensível.

No caso em questão, nosso ponto fica claramente exposto. Os manifestantes que se aglomeraram às portas do hospital no Recife não consideravam como seus semelhantes a menina, grávida com pouco mais de uma década, e o médico, profissional dedicado há pelos menos três. Viam-nos sim como monstros que estavam a conspurcar valores sagrados. Falavam de Vida, mas pensando na vida.

Se considerassem de fato o valor Absoluto, a Vida, veriam que a situação exigia um embate ético entre dois Absolutos: o da menina e o do feto (talvez até outra menina). E, no embate entre Absolutos, um deve ser relativizado. Entre o risco de se perder um dos dois, escolhe-se o com mais potencial, o já constituído; no caso, a menina. No entanto, como os manifestantes não a consideravam um ser, mas um outro (aqui no sentido pejorativo que mencionamos acima), a situação que se lhes mostrava era a de um Absoluto versus um relativo.

Utilizou-se o argumento de deixar o “ciclo da vida” seguir seu curso natural. A morte de uma criança, no entanto, não faz parte desse ciclo. É antinatural. É incompreensível. Não é só um universo que desaparece. É a negação do amanhã, do depois. É a interrupção do futuro que foi, mas não chegou a ser. É como se todos os “quando eu crescer”, os “e se”, os “imagina só”, os “vamo brincar de”, os “mas eu quero”, os “por que o céu é azul” se juntassem numa dor só, que não tem nome. Aliás, tem nome sim. Só não se sabe qual é. Porque até ela, a dor, se envergonha de ainda existir quando uma criança não existe mais.

E, de fato, uma criança não existe mais ali. A realização do procedimento poupou a Vida da menina, mas tomou a sua vida. Ela terá que começar outra agora, com novo nome, em novo lugar, a todo momento querendo transformar o ser em outro. Um que possa dessa vez ser aceito como criança e não como monstro.

Portanto, o ser, ao tentar transformar a todo instante o diálogo em monólogo, esquece-se de que precisa do outro para se completar e não apenas para se reforçar. Na práxis a alteridade subverte-se: ao invés de aproximar o ser e o outro, os afasta.

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Gabriel Franklin
(Re)Leituras

Fingindo que estou, sonhando que vou, inventando que volto.