Breves reflexões sobre a alteridade prática
Ensaio apresentado na disciplina “Fronteiras da Literatura”, do Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília.
O dialogismo bakhtiniano refere-se à relação do ser com o outro. Nele, ressalta-se entre outros elementos o “fato de um mesmo enunciado, de um mesmo locutor, conter em si não só a minha palavra, mas também a palavra do outro”. Desta forma, o ser só é possível devido ao contato com o outro.
Corroborando a construção bakhtiniana acerca do dialogismo, mas chamando-o de intersubjetividade, Merleau-Ponty nos fala que o
No entanto, podemos perceber em nossas relações cotidianas que essa dinâmica não é harmoniosa. O ser a todo instante deseja moldar o outro, capturá-lo, ainda que de forma inconsciente, ainda que de maneira ética. O pensamento da alteridade, no sentido do contato do ser com algo fora de si, mostra-se mais como um conflito do que como uma síntese. O outro de fato serve como elemento constitutivo do ser, mas este é sempre o paradigma daquele, uma vez que o ser, através dos sentidos, é a medida de si mesmo.
A pulsão do ser em dominar o outro materializa-se na rejeição ao diferente. O que deveria servir para ressaltar o dialogismo e a singularidade, de fato dá origem a uma necessidade de monologizar. O que eu sinto/penso/faço é o correto/ético, enquanto que o que o outro sente/pensa/faz, se divergente, é errado/anti-ético. O juízo que se faz do outro é sempre cruel; o que se faz de si mesmo, puritano. E mais, uma ação/decisão diferente da minha é uma afronta pessoal aos meus valores.
O outro então assume conotação pejorativa. É o diferente, o estranho, o incompreensível.
No caso em questão, nosso ponto fica claramente exposto. Os manifestantes que se aglomeraram às portas do hospital no Recife não consideravam como seus semelhantes a menina, grávida com pouco mais de uma década, e o médico, profissional dedicado há pelos menos três. Viam-nos sim como monstros que estavam a conspurcar valores sagrados. Falavam de Vida, mas pensando na vida.
Se considerassem de fato o valor Absoluto, a Vida, veriam que a situação exigia um embate ético entre dois Absolutos: o da menina e o do feto (talvez até outra menina). E, no embate entre Absolutos, um deve ser relativizado. Entre o risco de se perder um dos dois, escolhe-se o com mais potencial, o já constituído; no caso, a menina. No entanto, como os manifestantes não a consideravam um ser, mas um outro (aqui no sentido pejorativo que mencionamos acima), a situação que se lhes mostrava era a de um Absoluto versus um relativo.
Utilizou-se o argumento de deixar o “ciclo da vida” seguir seu curso natural. A morte de uma criança, no entanto, não faz parte desse ciclo. É antinatural. É incompreensível. Não é só um universo que desaparece. É a negação do amanhã, do depois. É a interrupção do futuro que foi, mas não chegou a ser. É como se todos os “quando eu crescer”, os “e se”, os “imagina só”, os “vamo brincar de”, os “mas eu quero”, os “por que o céu é azul” se juntassem numa dor só, que não tem nome. Aliás, tem nome sim. Só não se sabe qual é. Porque até ela, a dor, se envergonha de ainda existir quando uma criança não existe mais.
E, de fato, uma criança não existe mais ali. A realização do procedimento poupou a Vida da menina, mas tomou a sua vida. Ela terá que começar outra agora, com novo nome, em novo lugar, a todo momento querendo transformar o ser em outro. Um que possa dessa vez ser aceito como criança e não como monstro.
Portanto, o ser, ao tentar transformar a todo instante o diálogo em monólogo, esquece-se de que precisa do outro para se completar e não apenas para se reforçar. Na práxis a alteridade subverte-se: ao invés de aproximar o ser e o outro, os afasta.