Buscando despropósitos: a sátironia em Machado de Assis e Ghost

Ensaio final apresentado na disciplina “Realismo e sua atualidade”, do Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília

Gabriel Franklin
(Re)Leituras
16 min readApr 18, 2022

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Você vai encher os vazios
com as suas peraltagens,
e algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos!

(“O menino que carregava água na peneira”, Manoel de Barros)

“San Girolamo scrivente”, Caravaggio (1606)

“A vida”, escreve Freud em O mal-estar na civilização, “tal como nos coube, é muito difícil para nós”, pois traz, em seu bojo, “demasiadas dores, decepções, tarefas insolúveis”. Para suportá-la, devemos lançar mão de meios paliativos que, segundo ele, seriam de três tipos: “poderosas diversões, que nos permitem fazer pouco de nossa miséria, gratificações substitutivas, que a diminuem, e substâncias inebriantes, que nos tornam insensíveis a ela.”

O que Freud parece querer nos mostrar nesse trecho é o caráter paradoxal da nossa relação com a realidade. Se, por um lado, diante da liquidez do mundo moderno, como diria Bauman, buscamos a todo custo fincar raízes firmes no terreno do real e, para isso, procuramos meios de, em linhas precisas, diferenciá-lo do imaginário; por outro, o real nos aterroriza a tal ponto, que nossa existência diária não passa de uma incessante tentativa, se não de transformação, ao menos de fuga.

A Arte (e com ela, obviamente, a Literatura), portanto, é uma das manifestações dessa relação paradoxal: na mesma medida em que a utilizamos para expressar o que é, também a usamos para fugir no que poderia ser. No entanto, mesmo fugindo, e os modos pelos quais se foge são tão diversos quantos são os indivíduos, parecemos não conseguir nos desprender do que nos rodeia. O real nos persegue em nossa perambulação, pois é no Império dos Sentidos que construímos nossos castelos feitos de nuvens. A fuga, no fim das contas, nos leva (apenas e sempre) de volta à própria realidade.

De maneira que, a rigor, toda arte é realista; todo artista está sempre em busca do real no imaginário. Na verdade, o que podemos afirmar é que existem realismos, tão variados quanto as formas de fugir e encontrar a realidade nos despropósitos do imaginário. Não sendo nossa intenção aqui enumerar todos os artifícios utilizados para essa busca, concentraremos nossas reflexões apenas em dois: a sátira e a ironia.

Fazendo uma rápida busca num dicionário online (a palavra do dia é Eremomela), temos três definições para a sátira: a primeira, mais específica à Literatura, dá conta de uma “poesia em que o autor mete a ridículo os vícios ou defeitos de uma época ou pessoa”; já na segunda, encontramos algo mais geral, pois fala-se de “um discurso, texto ou obra que critica pessoas, entidades, costumes, vícios e etc., em tom jocoso ou sarcástico”; por fim, a terceira é a mais ampla, porém a mais precisa de todas, quando parece concentrar os pontos mais importantes das outras em apenas duas palavras, “censura jocosa”.

O que podemos retirar da análise dessas três definições de sátira encontradas num simples dicionário, acessível a todes que as procurarem, são o conteúdo e a forma que compõem este modo peculiar de expressão: o conteúdo é o próprio questionamento da realidade; a forma é o riso que denota o absurdo do questionar. A sátira, portanto, relaciona-se a situações e/ou pessoas bem delimitadas no tempo e no espaço; sua origem está fincada firmemente no solo da realidade e da história, sendo pautada pela precisão. No entanto, sua construção e manifestação não se dão na realidade, mas no imaginário; é lá que a sátira ganha seus contornos característicos, é de lá que o (sor)riso nos vem aos lábios. De forma que, para se meter a ridículo, criticar sarcasticamente ou censurar jocosamente, ou seja, para se construir a sátira no âmbito do imaginário, precisa-se, antes de tudo, de um profundo conhecimento da realidade.

Aqui, propomos deixar a sátira de lado por um momento e passarmos à ironia. Esta, por sua vez, traz quatro definições no dicionário, mas que podem ser agrupadas em dois conjuntos: o da retórica e o da vida prática. No que se refere à retórica, a ironia seria uma “expressão ou gesto que dá a entender, em determinado contexto, o contrário ou algo mais do que parecem significar”. Já na vida prática, a ironia, o dicionário nos diz, é um “acontecimento ou resultado totalmente diferente do que eram as expectativas”.

Há também aqui, assim como na sátira, o afloramento de um (sor)riso, mas não pelos mesmos motivos. Se lá a crítica é jocosa porque precisamente aponta o absurdo do real, aqui o cômico vem da dubiedade de sua construção. Tanto na retórica, quanto na vida prática, a ironia se constrói a partir da contradição, do estranho. É na diferença que a essência da ironia se manifesta, é na ambiguidade que ela prospera. Mas, também como na sátira, a dúvida que é gerada com a ironia só é possível, só é plausível, porque traz como chave de comparação a realidade.

Retomando, então, o raciocínio deixado brevemente de lado, podemos refletir que sátira e ironia fazem parte da dinâmica paradoxal de fuga e encontro que temos com a realidade através do imaginário. Ambas partem da criação de relações com o real num espaço-tempo bem delimitado, para no imaginário buscarem suas formas particulares de expressão: a sátira através da certeza, a ironia através da incerteza.

No entanto, as peculiaridades que, à princípio, parecem separar sátira e ironia em polos opostos, na verdade podem ser combinadas no mesmo produto artístico, unindo forças para a construção de uma manifestação estética única dentro do que se conhece por realismo. Surge, assim, algo que poderíamos chamar de sátironia, e sobre o qual nos debruçaremos ao longo do restante deste ensaio crítico. Para tanto, usaremos como exemplos o livro Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, e as canções do grupo musical sueco Ghost.

O satírico Machado e o irônico Brás Cubas

Obra que inaugura a chamada “viravolta machadiana”, Memórias póstumas de Brás Cubas, publicada em 1881, insere-se num contexto estético muito bem estabelecido até então na literatura brasileira do século XIX, e desmantela-o de dentro para fora. É um desmantelo sutil, porém contundente, como não o poderia deixar de ser se o quisermos chamar de satirônico.

A consciência histórica machadiana é o que faz juz à sua caracterização de realista e contemporâneo, uma vez que o “realismo do romance é sobretudo histórico, é específico por necessidade”. Portanto, Machado, tal qual Rabelais em seu tempo, aproveita “a possibilidade de apresentar tudo o que pudesse ser chocante para as forças reacionárias da época sob uma meia-luz, entre o cômico e o sério, o que, em caso de necessidade, lhe tornaria mais fácil eximir-se de uma responsabilidade total”. Utilizando o romance, ele tenta “descobrir e construir, pela forma, a totalidade oculta da vida”, incorporando à sua escrita “todos os abismos e as fissuras inerentes à situação histórica”.

De maneira que, “sem faltar ao respeito”, em Memórias póstumas, Machado faz uso de estilos, estruturas e temáticas próprias do romantismo e do naturalismo para, “mergulhando a pena nas trevas do presente”, construir seu realismo satírônico e implodir as certezas sobre os seres humanos, suas relações sociais e instituições morais, tidas como sólidas e inquestionáveis por seus antecessores e contemporâneos. E tudo isso passa pela figura central da obra: o narrador.

Brás Cubas é um narrador que não pode dar lição de moral, pois lhe falta credibilidade (tanto por estar morto, quanto por, em vida, ter moral dúbia aos olhos que o observam do futuro). Por ser incapaz de apontar o certo ou o errado, por estar firmemente fincado em seu tempo, o que lhe resta é confundir quem o lê, forçando assim “o leitor a estabelecê-los e a ruminá-los por conta própria”. Em Memórias póstumas, portanto, assim como ocorre nos Ensaios, de Montaigne, o leitor vê-se forçado a “colaborar; é arrastado para dentro da movimentação do pensamento, mas a todo instante espera-se dele que se surpreenda, investigue e complete.”

Escrevendo na “melhor prosa da praça”, ou seja, com a linguagem própria de seu tempo, Brás Cubas dá vazão a reflexões sobre si mesmo e seus contemporâneos locais, mas também aos irmãos e irmãs de espécie humana, indo do particular ao universal na distância que separa um parágrafo do outro (e, às vezes, nem isso). No entanto, podem as “piruetas literárias” deste narrador irônico serem atribuídas também ao autor? Nos parece que a resposta só pode ser não.

Sobre a polifonia (para agradar aos discípulos de Bakhtin) encontrada na obra, tomemos como exemplo o Capítulo CXXIV, que, de tão curto, nos permite citá-lo na íntegra:

Que há entre a vida e a morte? Uma curta ponte. Não obstante, se eu não compusesse este capítulo, padeceria o leitor um forte abalo, assaz danoso ao efeito do livro. Saltar de um retrato a um epitáfio pode ser real e comum; o leitor, entretanto, não se refugia no livro, senão para escapar à vida. Não digo que este pensamento seja meu; digo que há nele uma dose de verdade, e que, ao menos, a forma é pinturesca. E repito: não é meu.

Se Brás Cubas nega veementemente sua autoria, de quem é, então, o pensamento que destacamos? Do espírito do tempo, que consideraria a Literatura uma mera fuga? De um possível/provável crítico, que consideraria o livro em questão uma literatura menor? De Machado, que estaria sendo citado por seu próprio narrador, e assim deixando clara sua separação daquele? Ou, até mesmo, do próprio Brás, que, apesar de o fazer por duas vezes, não é confiável a ponto de se ter sua negação considerada como verdadeira?

As respostas para essas perguntas talvez nunca se revelem a nós, mas podemos refletir que Machado, ao contrário de Brás, apesar das ressalvas de resguardo que apontamos, não parece ter dúvidas do que escreve. É sempre preciso, exato. Sua crítica é sutil por ser velada dentro de uma aparência de ambiguidade; seu impacto é contundente por ser explícita a comparação com o real. Quem dá as piruetas é Brás Cubas; Machado caminha a passos firmes e decididos.

E é justamente esse movimento de vai e vem, onde se constroem incertezas a partir de certezas, o que possibilita a caracterização do que chamamos de sátironia: o autor é satírico, por apoiar-se no conhecimento das certezas do real; mas o narrador é irônico, ao confundir (a si e aos leitores) com os despropósitos do imaginário. A junção dos dois é o que faz com que obras como Memórias póstumas façam parte dos cânones literários e culturais, seja devido àqueles que captam as sutilezas de suas críticas; seja devido aos outros, que apenas ficam no impacto da superfície estética de suas formas.

Um novo deus para um velho tempo

Exatos 100 anos separam a publicação de Memórias póstumas de Brás Cubas e o nascimento de Tobias Forge, na cidade de Linköping, no sul da Suécia; mas o embate de Tobias com seu tempo, assim como o de Machado com o dele, também foi pautado por um tímido início e uma viravolta satirônica.

Sufocado pela ultrareligiosidade de duas impactantes figuras, a madrasta e uma professora na escola, desde cedo Tobias experimentou a opressão exercida pela moral cristã e pelos costumes conservadores sobre sua vida e sua criatividade, não encontrando respiro nem mesmo ao ar livre, onde a imponente catedral que podia ser vista de qualquer ponto da cidade, a Linköpings domkyrka, uma das primeiras construídas no norte da Europa, dominava a tudo e a todos, física e espiritualmente.

Seu escape da conflituosa realidade moral católica foi (como poderia ser de esperar pelo início de nosso ensaio) através da arte, a começar pela sétima. Fascinado pelos clássicos filmes de horror da década de 1980, o jovem via ali uma forma de combate explícita ao “bem” que o cristianismo e seus adeptos pregavam, mas não praticavam; prometiam, mas não cumpriam.

Ao mesmo tempo, Tobias também mostrava grande inclinação para outra forma artística relacionada à resistência: a música. Rapidamente aprendeu a tocar todos os instrumentos a que tinha acesso nos programas de música da escola e da igreja que era obrigado a frequentar; mas foi somente depois de seu irmão, 13 anos mais velho, lhe apresentar o rock & roll (indo de Elvis até o heavy metal da década de 1990), que encontrou de fato o caminho para se libertar e expor seus pensamentos.

A partir daí, fundou inúmeros grupos musicais, mas que não conseguiram deslanchar num sucesso maior do que um tímido reconhecimento local; apenas em 2006 é que surgiria a ideia e a viravolta que interessa ao nosso estudo. Tobias, então com 25 anos e pai de duas meninas, percebeu que seu incômodo não estava ligado apenas à religião, mas a todo o opressivo sistema capitalista que se desenvolveu em torno dela ao longo dos séculos. Para ele, o mundo que a Igreja Católica ajudou a criar parecia mais o Inferno na Terra do que o Céu; e, já que era assim, então, por que não criar uma Igreja condizente com seu tempo? E qual o melhor modo de chegar até as pessoas senão através da arte?

Unindo suas duas paixões de adolescência, ele desenvolveu toda uma mitologia para compor o conceito do grupo musical que se formava em sua mente: o líder dessa Anti-Igreja, chamado Papa Emeritus, teria decidido que o terreno estava bem preparado para conquistar mais fiéis e que a criação de uma banda seria a forma perfeita de divulgar seus ideais. O próprio Papa Emeritus iria liderar o grupo, e seus integrantes, os Nameless Ghouls (Espíritos Anônimos), estariam sempre mascarados no palco, para preservarem suas identidades reais.

Assim nascia o Ghost, um grupo musical pensado para divulgar a Anti-Igreja, que seria, ao mesmo tempo, exatamente o contrário da Igreja Católica, (a começar pelo símbolo: uma cruz de ponta-cabeça), e exatamente igual a ela (nos vícios e nas contradições).

Em 2010 o Ghost lança seu primeiro disco, o Opus Eponymous, cuja capa traz o Papa Emeritus (que é o próprio Tobias, com pesada maquiagem e a indumentária papal) numa pose de dominação sobre a reprodução da Linköpings domkyrka. Neste e no seu próximo trabalho, o Infestissumam (2012), são estabelecidas as bases da Anti-Igreja; para tanto, utilizam-se de elementos e estruturas litúrgicas características do catolicismo (como arranjos com corais, órgãos de tubo e letras em latim) para fazer a pretendida conversão do sagrado para o profano. Um dos melhores exemplos dessa inversão está na música “Satan Prayer”, uma das primeiras divulgadas pelo grupo:

Believe in one God do we
Satan almighty
The uncreator of heaven and soil
And the invisible and the visible
And in his son begotten of father
By whom all things will be unmade
Who for man and his damnation
Incarnated rise up from hell
From sitteth on the left hand of his father
From thence he shall come to judge
Out of one substance with Satan
Whose kingdom shall haveth no end

Aqui, o que se percebe é uma clara sátira ao Credo Niceno-Constantinopolitano, assim chamado por ter sido instituído nos Concílios Ecumênicos de Niceia (325) e de Constantinopla (381), onde se estabelece a profissão de fé da Igreja Católica. Basta-nos comparar a letra da canção apresentada acima com a clássica tradução do teólogo suíço Philip Schaff, datada de 1877, e que acreditamos ter sido a versão utilizada por Tobias para sua composição:

We believe in one God, the Father Almighty, Maker of heaven and earth, and of all things visible and invisible. And in one Lord Jesus Christ, the begotten Son of God, begotten of the Father before all worlds, Light of Light, very God of very God, begotten, not made, being of one substance with the Father; by whom all things were made; who for us men, and for our salvation, came down from heaven, and was incarnate by the Holy Ghost of the Virgin Mary, and was made man; he was crucified for us under Pontius Pilate, and suffered, and was buried, and the third day he rose again, according to the Scriptures, and ascended into heaven, and sitteth on the right hand of the Father; from thence he shall come again, with glory, to judge the quick and the dead; whose kingdom shall have no end. And in the Holy Ghost, the Lord and Giver of life, who proceedeth from the Father, who with the Father and the Son together is worshiped and glorified, who spake by the prophets. In one holy catholic and apostolic Church; we acknowledge one baptism for the remission of sins; we look for the resurrection of the dead, and the life of the world to come. Amen.

À primeira vista, o impacto que a simples substituição de Céu por Inferno, direita por esquerda, Deus por Satanás promove é considerável. Causa um estranhamento, um desconforto que, devido à fundação judaico-cristã sobre a qual a civilização ocidental se estruturou, faz toda a diferença. Mas, se analisarmos com calma, veremos que as temáticas abordadas se encaixam de maneira muito natural no contexto político-social da modernidade. Nesse aspecto e sob o prisma da tentativa de conversão para o novo credo, o Papa Emeritus parecia não precisar se esforçar muito; como dissemos, o terreno já estava bem preparado.

O que impressiona, portanto, nessa e em outras composições dos dois primeiros discos do Ghost, além da qualidade musical, é o fato de as inversões, dentro da proposta estética do grupo, manterem o cerne de dominação e o status quo pretendidos pela moral cristã conservadora, sendo esse precisamente o objetivo da Anti-Igreja imaginada por Tobias Forge. É nesse ponto que entra o realismo sátirônico: ao criar ironicamente um imaginário, o Ghost aponta satiricamente o real.

A recepção ao grupo, no entanto, não foi tão satisfatória quanto se esperava. Apesar do sucesso que encontrou nos movimentos underground europeus e norte-americanos (onde, de certa forma, se fez uma tentativa de análise mais profunda), o público mainstream parecia não estar preparado para o que Tobias Forge propunha. No Rock in Rio de 2013, por exemplo, o grupo se apresentou antes da famosa banda Metallica, e foi vaiado pela plateia.

Após esse e outros eventos desagradáveis, Tobias resolveu modificar a banda. A saída encontrada por ele foi tornar o ritmo das músicas mais pop, aumentar o nível de ironia das letras (tornando-as mais ambíguas) e dar uma nova cara ao grupo (literalmente). Ele já havia decidido que trocaria a identidade visual do Papa Emeritus a cada disco, mas a “crise” na Anti-Igreja, provocada pelo sucesso até então insatisfatório, mostrou-se a oportunidade perfeita para acrescentar algo mais à narrativa do grupo. Assim, não só a identidade visual foi modificada, como o Papa em si, e em seu terceiro disco, o Meliora (que significa algo melhor, em latim), lançado em 2015, foi apresentado o Papa Emeritus III, mais jovem e carismático que os dois anteriores.

No disco seguinte, Prequelle, de 2018, para intensificar o que parecia ter dado certo, os Papas foram substituídos por uma figura mais próxima do povo: um Cardeal. É sob a égide do Cardeal Copia, portanto, que o tempo é agora o objeto da análise dos arautos da Anti-Igreja: o tempo como repetição de iniquidades e opressão, e, por que não, de castigos. O eterno e o efêmero se confundem em canções que chegam a soar quase proféticas, como “Rats” que, falando da Peste Negra que assolou a Europa durante a Idade Média, de certa forma antecipou o que sofremos com a pandemia do Corona Vírus, apenas um ano depois do lançamento do álbum.

De fato, as mudanças deram resultado: finalmente a Anti-Igreja parecia estar chegando aos ouvidos e corações das pessoas. Com a maior ambiguidade nas letras e o som menos pesado (ainda que a voz de Tobias estivesse sempre entre o doce e o melódico), a estranheza dos primeiros discos parecia algo há muito esquecido; algumas músicas, como “Cirice” e “Dance Macabre”, passaram, inclusive, a tocar nas rádios e ganhar prêmios na indústria fonográfica norte-americana.

As modificações pelas quais passou o grupo, no entanto, não atingiram a temática crítica e sua abordagem sátirônica. Pelo contrário; elas apenas se intensificaram. Como podemos perceber no tique taque do relógio que inicia “Deus in Absentia”, última música do Meliora, continuam muito vivas a melancolia referente ao passado, a angústia do tempo presente e a desesperança quanto ao futuro:

In this your time of need
You’re turning to the light
You had just begun to explore the dark
In the urban night
The world is on fire
And you are here to stay and burn with me
Our funeral pyre
And we are here to revel forevermore
You’re so goddamn frail
Failing for a change
You just had to know all about the world
But you will never know
’Cause no one ever told you how

Pela letra, podemos intuir que o Papa Emeritus III parece estar parafraseado o próprio Tinhoso, ao se aproximar de alguém em seus momentos finais. Mas, se olharmos pela perspectiva de quem a escreveu de fato, perceberemos que a canção se dirige a todos nós, que estamos ardendo juntos nessa vida moderna de incertezas e angústias, de perene desilusão com um mundo líquido no qual ninguém nos ensinou a navegar. A música, no fim das contas, trata da extrema unção do nosso tempo.

Da mesma forma, quando o Cardeal Copia (agora consagrado Papa Emeritus IV) entoa a canção “Twenties”, do disco Impera (lançado em março de 2022), ele está falando ironicamente do período antes da Segunda Guerra Mundial, onde os impérios modernos ascendiam; mas as palavras de Tobias Forge empreendem uma sátira que poderia perfeitamente se aplicar ao século anterior, de Machado, onde os velhos impérios caíam; ou ao seguinte, o nosso, onde novamente os impérios parecem querer ressurgir.

Como um autêntico contemporâneo, ou seja, alguém que “não coincide perfeitamente com [seu tempo], nem está adequado às suas pretensões”, mas que, justamente por isso, é “capaz, mais do que os outros, de perceber e [apreendê-lo]”, Tobias Forge viu a obscuridade da vida moderna como combustível e impulso para uma atividade estética renovadora, uma poética do estado de urgência: algo que não só entretêm no âmbito do imaginário, mas que, conversando com passado e futuro, também causa impacto suficiente para levar à reflexão sobre a realidade.

Buscando despropósitos

Nossa tarefa, ao longo deste ensaio, nos parece semelhante à do bibliômano do Capítulo LXXII de Memórias póstumas:

Olhai: daqui a setenta anos, um sujeito magro, amarelo, grisalho, que não ama nenhuma outra cousa além dos livros, inclina-se sobre a página anterior, a ver se lhe descobre o despropósito; lê, relê, treslê, desengonça as palavras, saca uma sílaba, depois outra, mais outra e as restantes, examina-as por dentro e por fora, por todos os lados, contra a luz, espaneja-as, esfrega-as no joelho, lava-as, e nada; não acha o despropósito.

Assim como ele, que, por não encontrar o despropósito desejado, se contenta meramente em ter um exemplar pretensamente único, acreditamos ter, se não encontrado o que pretendíamos, ao menos esbarrado em algo digno de nota: a sátironia. Na melhor das hipóteses, conseguimos conectar a sátira à ironia, a reflexão machadiana sobre a condição humana às angústias da modernidade líquida transformadas em música por Tobias Forge, a ideia fixa e a sede de nomeada de Brás Cubas à sucessão de Papas Emeritus em busca do poder e da dominação.

Na pior, avançamos mais um pouco na tentativa de conciliar real e imaginário, nessa grande construção chamada realismo. Dizemos tentativa, pois o buraco que carregamos dentro de nós parece nunca poder ser preenchido; mas, mesmo sabendo disso, continuamos buscando o despropósito. Seja num romance ou numa canção, continuamos tentando dar vazão a uma insatisfação perene, a um anseio por algo que não conseguimos definir muito bem; continuamos, para usar a expressão de Freud, tentando remendar o furo. É o que nos resta.

Num mundo onde nos vemos cada vez mais impotentes política e socialmente, de fato, é o que parece nos restar.

Vivendo o imaginário, transformamos o real.

Transformando a imaginação, vivemos a realidade.

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Gabriel Franklin
(Re)Leituras

Fingindo que estou, sonhando que vou, inventando que volto.