Dostoiévski; ou, o Prometeu Pós-Moderno

Ensaio apresentado na disciplina “Fronteiras da Literatura”, do Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília

Gabriel Franklin
(Re)Leituras
5 min readSep 25, 2020

--

“Prometeu, inventor da humanidade”, Mike Azevedo (2019)

Para Bakhtin, Dostoiévski criou “uma espécie de novo modelo artístico do mundo”, diferenciando-se de tudo que havia à época, através de uma inovação na forma como era pensado e criado o romance, e dando origem ao chamado “romance polifônico”.

Nele, “todos os elementos de sua estrutura são determinados pela tarefa de construir um mundo polifônico e um herói cuja voz se estrutura do mesmo modo como se estrutura a voz do autor do romance.”

A multiplicidade de vozes e consciências independentes e imiscíveis e a autêntica polifonia de vozes plenivalentes constituem, de fato, a peculiaridade fundamental dos romances de Dostoiévski. (…) Dentro do plano artístico de Dostoiévski, suas personagens principais são, em realidade, não apenas objetos do discurso do autor, mas os próprios sujeitos desse discurso diretamente significante.

No romance polifônico, o autor assume “uma posição dialógica seriamente aplicada e concretizada até o fim, que afirma a autonomia, a liberdade interna, a falta de acabamento e de solução do herói”. Os personagens de Dostoiévski, portanto, configuram-se como sujeitos com pensamentos, ideias e desejos que vão além dos do autor. Tem convicções e tormentos próprios, nos fazendo crer que, de fato, existem além da cena em que os vemos.

É plenamente possível crer que, em Crime e Castigo, enquanto lê as palavras de sua mãe, Ródion Raskolnikov realmente está sentado em seu claustrofóbico cubículo e que sua irmã Dúnia, há quase 1.000 quilômetros de distância, também existe para além do que é dito sobre ela.

A consequência do tratamento dialógico recebido pelo herói é que a palavra do autor se constitui como palavra sobre alguém presente, que escuta e responde, que participa como agente do discurso, e não como simples objeto do mundo do autor. A palavra do autor é dialogicamente orientada para o herói, é discurso sobre o discurso: ele não fala do herói, mas com o herói. Há, portanto, uma relativa autonomia dos heróis no limite da ideia artística, na medida em que a consciência do criador está presente de forma ativa, dialógica, participante do construto das vozes, da polifonia.

A análise da referida carta é muito interessante, pois Pulkhéria Raskolnikova, mãe de Ródion, toma as rédeas da narrativa por algumas páginas e, fazendo-o, apresenta exatamente as mesmas características que o autor de um romance polifônico. Com detalhes subjetivos que beiram a onisciência, Pulkhéria vai contando ao filho como os acontecimentos se desenrolaram em sua antiga cidade e vai tecendo fios narrativos que prendem a ambos os leitores, nós e Ródion.

Em seguida, sem passar pela casa de ninguém, veio diretamente da catedral à nossa casa, contou-nos tudo, chorou amargamente e em completo arrependimento abraçou e implorou a Dúnia que a perdoasse. Na mesma manhã, sem qualquer perda de tempo, foi da nossa casa a todas as outras na cidade e em toda parte referiu-se a Dúnia com as expressões mais lisonjeiras e, em lágrimas, restaurou a inocência e a nobreza dos sentimentos e do comportamento dela. Além do mais, mostrou a todos e leu em voz alta a carta escrita por Dúnia ao senhor Svidrigáilov e deixou inclusive que a copiassem (o que já me parece desnecessário).

Sua filha, os patrões para quem esta trabalhou e até o pretendente Lujin, passam todos a ser agora seus personagens e não mais do narrador anterior. Os conflitos interiores e as características psicológicas destes são todos compreendidos e descritos por ela.

Antes de tomar a decisão Dúnietchka não pregou olho a noite inteira e, supondo que eu já dormisse, levantou-se e passou a noite toda andando de uma canto a outro do quarto; por último ajoelhou-se e ficou muito tempo rezando com ardor diante do ícone, e de manhã me anunciou que havia tomado a decisão.

Arriscamos afirmar que a carta é, tal qual o quarto de Raskolnikov, uma personagem do romance, dada sua importância no desenrolar dos fatos que ocorrerão adiante. Ao recebê-la da governanta Nastácia, Ródion diz que deseja “ficar a sós com aquela carta”, tornando-a única testemunha, além do quarto e de nós mesmos, da cena que se passa a seguir.

Até o recebimento da carta, Raskolnikov vinha sofrendo de dúvidas e incertezas quanto à sua situação financeira e mental. Mas, após lê-la, uma decisão é tomada, quase que por si só, como se fosse óbvia desde o início.

Aliás essas questões todas não eram novas, nem repentinas, mas antigas, remotas, nevrálgicas. Fazia muito que elas haviam começado a atormentá-lo e lhe tinham atormentado o coração. Há muito tempo essa melancolia de hoje surgira nele, crescera, acumulara-se e ultimamente amadurecera e se concentrara, assumindo a forma de uma pergunta terrível, absurda e fantástica, que lhe atormentara o coração e a mente, exigindo irresistivelmente uma solução. Agora a carta da mãe o aturdia de repente como um trovão. Estava claro que não era hora de tomar-se de melancolia, de ficar sofrendo passivamente só de pensar que as questões não tinham solução, mas de fazer alguma coisa sem falta e já, o mais rápido possível. Precisava decidir-se a qualquer custo, fosse lá pelo que fosse, ou…

O capítulo seguinte marca justamente o impacto que a carta teve em Ródion e sua primeira parte é toda composta do que poderia se chamar de um monólogo interior, não fossem as várias falas que passam por sua mente, tão reais quanto se os falantes estivessem todos ali no apertado cubículo. Trata-se, portanto, de um diálogo interior.

‘Caro, Dúnietchka, custa caro essa pureza!’ E depois, se não aguentar, vai se arrepender? Tanta dor, tanta tristeza, tantas maldições, tantas lágrimas ocultadas de todos, e tanto porque a senhora não é Marfa Pietróvna, não é? E da mamãe, o que vai ser então? Porque já agora ela não anda tranquila, está atormentada; e quando chegar a ver tudo com clareza? E de mim?… Sim, o que a senhora pensou mesmo a meu respeito? Não quero o seu sacrifício, Dúnietchka, não quero, mamãe! Isso não vai acontecer enquanto eu estiver vivo, não vai acontecer, não vai! Não aceito!’

Esse elemento, mesmo que apenas na cabeça do personagem, ainda é uma forte característica do dialogismo, uma vez que “o caráter essencialmente dialógico em Dostoiévski não se esgota, em hipótese alguma, nos diálogos externos composicionalmente expressos, levados a cabo pelas suas personagens. Romance polifônico é inteiramente dialógico.”

Portanto, Dostoiévski dá vida às suas criaturas do barro de sua mente, tal qual Prometeu, bem como lhes fornece o fogo da liberdade para ter pensamentos e sentimentos próprios. Essa liberdade “é um momento da idéia do autor. A palavra do herói é criada pelo autor, mas criada de tal modo que pode desenvolver até o fim a sua lógica interna e sua autonomia enquanto palavra do outro, enquanto palavra do próprio herói.”

No entanto, assim como no caso do titã para com os mortais, o que seria em teoria uma dádiva, mostra-se na prática uma maldição, tendo em vista os conflitos que atormentam praticamente todos os personagens que compõem suas obras.

--

--

Gabriel Franklin
(Re)Leituras

Fingindo que estou, sonhando que vou, inventando que volto.