Dostoiévski; ou, o Prometeu Pós-Moderno
Ensaio apresentado na disciplina “Fronteiras da Literatura”, do Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília
Para Bakhtin, Dostoiévski criou “uma espécie de novo modelo artístico do mundo”, diferenciando-se de tudo que havia à época, através de uma inovação na forma como era pensado e criado o romance, e dando origem ao chamado “romance polifônico”.
No romance polifônico, o autor assume “uma posição dialógica seriamente aplicada e concretizada até o fim, que afirma a autonomia, a liberdade interna, a falta de acabamento e de solução do herói”. Os personagens de Dostoiévski, portanto, configuram-se como sujeitos com pensamentos, ideias e desejos que vão além dos do autor. Tem convicções e tormentos próprios, nos fazendo crer que, de fato, existem além da cena em que os vemos.
É plenamente possível crer que, em Crime e Castigo, enquanto lê as palavras de sua mãe, Ródion Raskolnikov realmente está sentado em seu claustrofóbico cubículo e que sua irmã Dúnia, há quase 1.000 quilômetros de distância, também existe para além do que é dito sobre ela.
A análise da referida carta é muito interessante, pois Pulkhéria Raskolnikova, mãe de Ródion, toma as rédeas da narrativa por algumas páginas e, fazendo-o, apresenta exatamente as mesmas características que o autor de um romance polifônico. Com detalhes subjetivos que beiram a onisciência, Pulkhéria vai contando ao filho como os acontecimentos se desenrolaram em sua antiga cidade e vai tecendo fios narrativos que prendem a ambos os leitores, nós e Ródion.
Sua filha, os patrões para quem esta trabalhou e até o pretendente Lujin, passam todos a ser agora seus personagens e não mais do narrador anterior. Os conflitos interiores e as características psicológicas destes são todos compreendidos e descritos por ela.
Arriscamos afirmar que a carta é, tal qual o quarto de Raskolnikov, uma personagem do romance, dada sua importância no desenrolar dos fatos que ocorrerão adiante. Ao recebê-la da governanta Nastácia, Ródion diz que deseja “ficar a sós com aquela carta”, tornando-a única testemunha, além do quarto e de nós mesmos, da cena que se passa a seguir.
Até o recebimento da carta, Raskolnikov vinha sofrendo de dúvidas e incertezas quanto à sua situação financeira e mental. Mas, após lê-la, uma decisão é tomada, quase que por si só, como se fosse óbvia desde o início.
O capítulo seguinte marca justamente o impacto que a carta teve em Ródion e sua primeira parte é toda composta do que poderia se chamar de um monólogo interior, não fossem as várias falas que passam por sua mente, tão reais quanto se os falantes estivessem todos ali no apertado cubículo. Trata-se, portanto, de um diálogo interior.
Esse elemento, mesmo que apenas na cabeça do personagem, ainda é uma forte característica do dialogismo, uma vez que “o caráter essencialmente dialógico em Dostoiévski não se esgota, em hipótese alguma, nos diálogos externos composicionalmente expressos, levados a cabo pelas suas personagens. Romance polifônico é inteiramente dialógico.”
Portanto, Dostoiévski dá vida às suas criaturas do barro de sua mente, tal qual Prometeu, bem como lhes fornece o fogo da liberdade para ter pensamentos e sentimentos próprios. Essa liberdade “é um momento da idéia do autor. A palavra do herói é criada pelo autor, mas criada de tal modo que pode desenvolver até o fim a sua lógica interna e sua autonomia enquanto palavra do outro, enquanto palavra do próprio herói.”
No entanto, assim como no caso do titã para com os mortais, o que seria em teoria uma dádiva, mostra-se na prática uma maldição, tendo em vista os conflitos que atormentam praticamente todos os personagens que compõem suas obras.