Ensaio sobre os Ensaios

Gabriel Franklin
(Re)Leituras
Published in
3 min readJun 18, 2020

Essas palavras, que, provavelmente, tal como se apresentam, ninguém as haveria dito antes, essas palavras tiveram a sorte de não se perderem umas das outras, tiveram quem as juntasse, quem sabe se o mundo não seria um pouco mais decente se soubéssemos como reunir umas quantas palavras que andam por aí soltas

“Ensaio sobre a Lucidez”, José Saramago

Saramago não traz magia no nome à toa.

Saber de onde vem seus enredos é um dos grandes mistérios do universo. Como bom mágico que é, nunca revela seu segredo, mas deixa margem a alguns palpites.

Às vezes, me parece que eles vem da mente de uma criança, alguém que ainda não foi corrompido pelo mundo e perdeu a capacidade de imaginar o inimaginável. Noutras, creio estar diante das maquinações de um louco, que se deleita em virar o mundo de pernas para o ar apenas porque é capaz de fazê-lo.

E, no fim das contas, Saramago é os dois.

Esse infante desvairado confirma e faz jus ao preceito aristotélico de que, enquanto o historiador se ocupa do que foi, o poeta se ocupa do que poderia ter sido.

Saramago é, portanto, um arcano do “E se?”.

E se todos ficassem cegos? E se ninguém aparecesse para votar? E se um Estado paralelo fosse criado num manicômio? E se, da noite pro dia, não houvesse mais governo?

Eu e você provavelmente já pensamos em algum desses ou noutros absurdos. A diferença entre nós e Saramago é que ele não só pensa, como materializa os seus absurdos.

O que encontramos em seus livros, principalmente nos Ensaios (sobre a Cegueira e sobre a Lucidez), são exercícios de imaginação levados às últimas consequências. Através da justaposição de palavras, Saramago concretiza abstrações.

Diz-se que o bom fotógrafo, pintor ou desenhista é aquele que consegue transmitir uma história (ou nos fazer imaginá-la) através de uma simples imagem. Com Saramago, fazemos o caminho inverso.

Através de uma história, ele não só faz com que o que está dito seja, como também nos convence de que é possível. Com suas palavras, Saramago nos faz ver.

Chega a ser irônico que as imagens que vemos sejam as mesmas que os personagens não podem ver, pois estão cegos. A cegueira branca que acomete a população inteira de um país é um teste de empatia, à la Voight-Kampf, para saber se somos humanos mesmo. Na verdade, para saber o que é ser humano.

E, uma vez passados no teste, descoberta a resposta, como nos conduzimos novamente em sociedade? Algo de fato muda, nem que seja nosso modo de se (im)portar com os outros?

Mais uma vez, uma inversão aqui. As transformações que os personagens sofrem parecem não nos atingir por completo, pois, agora, a cegueira branca acomete a nós mesmos. Lemos a última página, fechamos o livro, passamos ao próximo e nos contentamos com as imagens que formamos através das palavras.

O intuito de Saramago nunca foi o de contar apenas uma história, mas de transformar os seres humanos. Os que ele retrata e os que o leem.

Seus personagens não tem nomes próprios, mas predicativos. De tal forma que eu e você podemos colocar os nomes que quisermos neles, até os nossos. Mas você seria capaz de ser a mulher do médico, ou eu de ser a rapariga dos óculos escuros? O cão das lágrimas, em sua pureza, sentiria minha dor e viria até mim? Se a resposta não for “sim”, é porque falhamos no teste.

Reparei agora que, pela primeira vez, usei um verbo no passado para me referir a Saramago. Mesmo 10 anos depois de sua partida, é como se ainda estivesse aqui, presente. E, de fato, está.

Em cada palavra escrita; em cada ponto final substituído por uma respiração; em cada nome não dito; em cada enredo de origem misteriosa.

Saramago vive.

E continua sua mágica tentativa de nos fazer humanos.

--

--

Gabriel Franklin
(Re)Leituras

Fingindo que estou, sonhando que vou, inventando que volto.