Entre cães e gatos

Gabriel Franklin
(Re)Leituras
Published in
6 min readSep 8, 2020

Num rompante, acordo.

Desorientado, sem ter completa a transição do sonho para a realidade, tento me concentrar sucessivamente na miríade de sentidos que então me assola: o corpo preguento de suor por causa do calor infernal de setembro; a claridade cegante do sol, já alto no céu azul e sem nuvens; o cheiro de feijão sendo cozido no bar da esquina, que mesmo aqui do quinto andar ainda é claramente perceptível; o gosto de sola de sapato na boca depois de um sono de 14 horas; e, por fim, o som.

Penso agora que, de fato, foi o som que me despertou. Tinha um tom familiar, mas, ao mesmo tempo, parecia deslocado de alguma forma. Como um parente há muito distante que torna ao lar apenas para descobrir que o ali já não lhe pertence. No tempo que levei para formular esses confusos pensamentos, eis o som novamente. Pauso. E, da mesma forma abrupta com que fui acordado, vem a iluminação. Consigo identificar o som. É a campainha.

Agora faz sentido o porquê de me parecer tão familiar. Criado em casa, cresci acostumado ao som da campainha, sendo este, inclusive, uma agradável interrupção na monotonia de quem ainda levava a vida sem correr contra o tempo. Geralmente era o anúncio de um evento extraordinário, como uma entrega dos correios ou uma visita não frequente. Os de casa ou tinham a chave ou sabiam que bastava um toque nos postigos da porta vazada para que esta lhe fosse aberta.

Mas, desde que troquei de cidade, já não moro em casa. Passei a perambular por apartamentos, empoleirado na selva de pedra. A campainha continuou lá, mas agora com outra conotação. Se antes a emoção que despertava era a da surpresa, agora era a do alívio. Em apartamentos, as campainhas só tocam para anunciar que o entregador, previamente liberado pelo interfone, enfim chegou. Tanto que, ao ouvir uma campainha tocar, salivamos, tal qual os cães de Pavlov. A campainha virou nossa sineta.

Em tempos de isolamento, no entanto, a campainha perdeu sua utilidade. Nem lembro mais a última vez que ouvi uma soar. Não há porquê. Ninguém se visita mais e, na selva de pedra, nossa sineta agora é o interfone, exceção sonora num mundo de silêncios. Por isso meu espanto ao ouvir a campainha tocar no apartamento ao lado. E persiste.

Estou nesse prédio há pouco menos de um mês, desde que, com o rabo entre as pernas, tornei à cidade que uma vez abandonei fugindo, ou fugi abandonando, não sei mais ao certo. A questão é que não conheço meus vizinhos de quinto andar, mas sei que no apartamento de onde ecoam os blim-bloms mora uma senhora idosa com dois gatos. Tenho essa certeza por ouvir suas vozes, a da senhora e a dos gatos, quando conversam na varanda, que é colada à minha. Os gatos, inclusive, tem um excelente senso de humor. Sim, talvez eu esteja ficando louco, mas isso não vem ao caso.

Lembro então do mau cheiro que começou na terça, dois dias atrás, e um arrepio me desce pela espinha. Desesperado, tento recordar a última vez que ouvi barulhos através das finas paredes que nos separam. Foi no sábado. E foram apenas os gatos, com um miado insistente que no dia interpretei como de fome, mas que agora penso que foi de alerta.

Juntando esses elementos, chego à conclusão que essa campainha só pode significar uma coisa. Como disse, não estou acostumado a todas as nuances dos apartamentos, apenas condicionado por conveniência. Nunca passei por uma experiência como essa, de ter a morte morando ao lado. Mas será a morte a única explicação? Tão habituados ficamos a ouvir certos sons que passamos a não percebê-los todo tempo. É muito provável que tenha havido barulhos aqui ao lado depois de sábado e eu simplesmente não os ouvi por estar fazendo algum outro nada no momento. Aliás, um som que não é ouvido por ninguém, ainda é um som? Sim, claro. Como assim, “Claro”? O emissor ouve o próprio som e por isso o concretiza no mundo. Hmm, mas e se o emissor não tiver ouvidos, ou for surdo?

A campainha toca mais uma vez e me livra de minha resposta indecorosa a mim mesmo.

Teimoso que sou, ou apenas impertinente, volto às elucubrações. A campainha traz, portanto, tal qual seu parente, o sino de igreja, um prenúncio de vida ou morte. Na verdade, de vida e morte. Porque, neste momento, minha vizinha e seus companheiros felinos estão vivos e mortos ao mesmo tempo. As duas possibilidades coexistem, como no experimento de Schrödinger. E a abertura da caixa será aqui a abertura, ou o arrombamento, da porta.

No silêncio que se faz depois do último toque e da funesta/divina constatação, ouço algo novo. Mas isso, eu sei, é só na minha cabeça, pois não há igrejas aqui perto. Tão logo os sinos param de dobrar, uma voz toma seu lugar, potente e acalentadora ao mesmo tempo.

Beyond the horizon of the place we lived when we were young, in a world of magnets and miracles.

Sou transportado para outra quinta-feira, seis meses atrás. Naquela, diferente desta, fui eu o gato de Schrödinger. No carro, à caminho do café, estava atrasado e adiantado ao mesmo tempo. E por ser dois ao invés de um, não sabia qual me era preferível. Se chegasse antes, poderia fazer uma pose inteligente. Se chegasse depois, poderia atribuir a compromissos de ordem maior e parecer importante.

Our thoughts strayed constantly and without boundary. The ringing of the division bell had begun.

Cheguei ao café e me tornei novamente um só. O experimento acabara. Estava adiantado. Não vendo mesas disponíveis, mandei uma mensagem informando que ia aguardar uma vagar. A resposta me tornou outro. “Já estou aqui, perto da porta”. Estava atrasado.

Along the Long Road and on down the Causeway, do they still meet there by the Cut?

Desnorteado pela súbita mudança de identidade, nem me ative ao plano bolado no carro e nos dias anteriores. Apelei para o que sempre faço: humor autodepreciativo. Funcionou, ao menos. Ela riu. Não apenas sorriu. Gargalhou mesmo. Foi um som que não fazia parte de nenhum experimento de física quântica. Não carregava qualquer dualidade. Era uno, único e indivisível. Era… Não, isso vou guardar só para mim.

There was a ragged band that followed in our footsteps, running before times took our dreams away.

O que me dói neste segundo é conseguir lembrar dos sons e das sensações, mas as imagens começarem a se perder. Sei que seu perfume era sutil, mas a cor de seus olhos me foge. Ainda sinto o gosto do suco de laranja com mamão, mas suas mãos dobrando o invólucro de papel pardo em que vieram os talheres começam a desaparecer. Ao ouvir a voz de David Gilmour sou levado ao exato instante em que percebi que High Hopes tocava no café, mas os passos dela em direção ao carro vão se distanciando para acabar num momento que aos poucos não irá se repetir nem na minha mente.

Leaving the myriad small creatures trying to tie us to the ground, to a life consumed by slow decay.

Deitado em minha rede, de onde ainda não me despreguei desde o começo dessa loucura desencadeada por sons, sou acometido por uma vontade irresistível de saber. Saber o que sou, o que sinto, o que penso, o que escondo. Saber o que é real, o que é certo, o que é único. Dentro de mim, a senhora e os gatos estão vivos e mortos. Mas, ali do lado, eles são um só. Tenho que saber!

Levanto de um pulo. Ensurdecido pelas batidas do meu coração, e com um pouco de vertigem por ter levantado de uma vez, mal percebo todo o processo de correr até a porta, virar a chave, depois a maçaneta e, finalmente, sair para o corredor. Meu apartamento é o penúltimo deste andar, então facilmente consigo ver a porta de onde a campainha soava. Basta olhar para a esquerda. É o que faço.

Vejo uma pessoa usando um jaleco branco impecável. A ausência de cor é tamanha que me pergunto como isso pode ter sido fabricado por mãos humanas. Depois, pensando com mais calma, vou chegar à conclusão de que o extraordinário não estava na peça, mas sim em mim, que estava acostumado a só ver tudo em cinza. Mas, agora, continuo estupefato. Ao me dar conta do que o jaleco deve significar, novo arrepio me corre pela espinha. É a morte, então.

Já me consolando por antecipação e me preparando para tornar ao poleiro em que me escondo, escuto, vindo da porta que eu temia encarar um segundo antes, um som que bem poderia ser comparado às trombetas sopradas pelos anjos: uma fechadura sendo destrancada pelo lado de dentro.

--

--

Gabriel Franklin
(Re)Leituras

Fingindo que estou, sonhando que vou, inventando que volto.