Entre uma mentira e outra: a composição da memória na autoficção de Julián Fuks

Ensaio baseado em comunicação apresentada no V Congresso Internacional de Pesquisa em Letras no Contexto Latino-Americano e XIV Seminário Nacional de Literatura, História e Memória

Gabriel Franklin
(Re)Leituras
12 min readMar 19, 2021

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Tell me where’s your hiding place
I’m worried I’ll forget your face
And I’ve asked everyone
I’m beginning to think I imagined you all along

“Cornerstone”, Arctic Monkeys

É interessante o termo autoficção.

A primeira palavra que o compõe é de fácil compreensão: quer dizer a si mesmo. Já a segunda, no entanto, torna-se o grande problema. Ficção pode ser interpretada de muitas maneiras. Pode-se dizer que é contar histórias, inventar ou até mentir. Mas, independente da acepção escolhida, a ficção parece estar sempre do lado oposto da realidade, da verdade.

Portanto, autoficção poderia ser entendida como contar inverdades sobre si mesmo. À primeira vista, é um conceito que soa estranho. Mas, com um pouco de paciência, chega-se a que esse, de fato, parece ser o único meio de se contar inverdades: incluindo-se nelas. O ser, como medida do próprio ser, no fim das contas, só pode falar de si mesmo, ainda que fale do outro. A arte (assim como a filosofia), portanto, surge como meio de dar vazão ao individualismo do eu, tentando chegar ao individualismo do outro.

Com seus dois últimos trabalhos, A Resistência (2015) e A Ocupação (2019), o paulista Julián Fuks insere-se perfeitamente na vertente autoficcional da chamada “literatura brasileira contemporânea”, mas destaca-se sobremaneira pela forma como conta suas “inverdades”. Assumindo que sua capacidade sensorial de lembrar-se é limitada, Fuks admite utilizar da ficção para preencher as lacunas de seus relatos. E mais: questiona-se a todo momento acerca da validade de tal processo, que chamarei de composição da memória.

De tal forma que, ao assumir esse processo de composição da memória dentro de sua narrativa, Fuks cria uma forma de fazer seu leitor refletir sobre a sua própria relação com o passado e com seus sentidos.

Quanto do que recordamos é realmente nosso? Quantas de nossas lembranças não são, na realidade, de outros? E mais, quantas não são simplesmente criadas?

Império dos Sentidos

O questionamento acerca do porquê escrevemos talvez seja um dos mais (in)frutíferos da teoria literária. A resposta que acaba sempre salvando todas as possibilidades é: depende do referencial.

Se olharmos do ponto de vista do escritor, talvez a definição de Roland Barthes de que escrever é verbo intransitivo nos aquiete por um momento. Mas algo, de fato, move o escritor a macular páginas em branco, ainda que seu ato em si não precise de explicação ou complemento verbal.

Da mesma forma, nós, enquanto leitores, somos movidos em direção à escrita, procurando algo, querendo chegar a algum lugar. E o lugar a que chegamos através da escrita (e da leitura), veja só, também depende do referencial.

O lugar para onde estamos indo neste exato momento (eu que escrevo e você que lê) não é o mesmo para onde fui ontem enquanto lia Barthes falando sobre uma foto de sua falecida mãe. Não só por nossos objetivos serem diferentes, mas também por sermos pessoas diferentes (eu, ele e você).

Afinal, escrever “é constituir um ponto de vista, pelo qual estabeleço um eixo de referência da minha condição humana”. É da nossa própria condição humana reconhecer a pluralidade, “de tal modo que ninguém jamais é igual a qualquer outra pessoa que já viveu, que vive ou que viverá”.

Mas há algo que nos une (e nos afasta, contraditoriamente), ainda que plurais. Humanos que somos, estamos condicionados e aprisionados aos nossos sentidos. Numa releitura do sofisma protagórico, podemos arriscar dizer que os sentidos do Homem são a medida de todas as coisas:

Eu não sou um “ser vivo” ou mesmo um “homem” ou mesmo “uma consciência”, com todos os caracteres que a zoologia, a anatomia social ou a psicologia indutiva reconhecem a esses produtos da natureza ou da história — eu sou a fonte absoluta; minha experiência não provém de meus antecedentes, de meu ambiente físico e social, ela caminha em direção a eles e os sustenta, pois sou eu quem faz ser para mim (e portanto ser no único sentido que a palavra possa ter para mim) essa tradição que escolho retomar, ou este horizonte cuja distância em relação a mim desmoronaria, visto que ela não lhe pertence como uma propriedade, se eu não estivesse lá para percorrê-la com o olhar.

Portanto, na literatura, assim como em qualquer forma de expressão, empreendemos uma jornada pelo Império dos Sentidos.

O Paraíso são os outros

É bastante atraente a ideia de escrita enquanto viagem ou encontro, “uma aproximação densa e silenciosa entre duas pessoas num terreno a que nenhuma outra voz consegue chegar”, na medida em que se inclui a figura do outro na questão.

Por mais que minhas experiências sejam o meio pelo qual percebo o “mundo fenomenológico”, este não é composto apenas por mim, mas também pela “intersecção de minhas experiências, e na intersecção de minhas experiências com aquelas do outro, pela engrenagem de umas nas outras”.

Preciso do outro para completar minha experiência, para me completar. E, com esse intuito,

devo identificar-me ou me projetar neste outro ser humano, ver seu mundo axiologicamente de dentro dele, como ele vê esse mundo; devo me colocar em seu lugar, e então, depois de voltar ao meu próprio lugar, “preencher” seu horizonte por meio desse excesso de visão que se abre fora dele, do meu próprio lugar fora dele. Devo emoldurá-lo, criar um ambiente que o finalize, a partir do meu excedente de visão, saber, desejo e sentimento.

São inúmeras as formas pelas quais se dá essa intersecção, esse encontro, mas a literatura, enquanto representante do meio escrito do signo, mostra-se uma das mais essenciais, uma vez que

o signo, social em todas as suas instâncias, vive não na cabeça do falante, nem na cabeça do ouvinte, mas na fronteira entre eles; toda palavra é inelutavelmente dupla e todo significado é inelutavelmente social; o mais secreto pensamento do mais solitário dos seres na mais isolada das ilhas do mundo só se consubstancia em significado no pano de fundo do significado dos outros; tudo que se pensa, tudo que se diz, dirige-se a alguém, antes mesmo que haja alguém diante de nós — em suma, sem um outro não há palavra.

De tal forma que é “inescapável: escrevemos [e lemos] porque queremos chegar aos outros”, como se na profusão de suas palavras pudéssemos abrandar a escassez das nossas.

O pacto autoficcional

Ao consumirmos uma ficção, sabemos que estamos diante de inverdades, ainda que plausíveis (as impossibilidades são legadas à fantasia ou à ficção científica, que tem o seu público específico).

É como se firmássemos um acordo prévio, um pacto ficcional: suspendemos nossa descrença sobre o que o autor vai contar e este, por sua vez, faz o seu melhor para criar uma narrativa que nos envolva e nos carregue para outros lugares. É precisamente por causa desse acordo que é possível falar de gênero ficcional.

Mas e a autoficção, tão em uso nas últimas décadas de nossa literatura, onde fica nessa questão?

O acordo aqui é um pouco modificado: o fato de trazer o termo auto em sua denominação (como já vimos o que significa) faz com que se adicione um elemento na equação. Novamente, sabemos que estamos diante de inverdades, visto que estamos no campo da ficção, mas esse auto agora torna também presente as verdades. A dúvida gerada, a curiosidade desperta sobre o que pode ser verdade no que lemos, talvez seja o que mais nos instiga a consumir autoficções.

No entanto, essa mistura entre “realidade e ficção não é uma condição estrita à autoficção e se encontra em romances históricos e romances autobiográficos, por exemplo. A diferença essencial está em como isso é feito”.

Nas obras autoficcionais o pacto é “contraditório, pois rompe com o princípio de veracidade (pacto autobiográfico), sem aderir integralmente ao princípio de invenção (pacto romanesco/ficcional). Mesclam-se os dois, resultando no contrato de leitura, marcado pela ambiguidade, em uma narrativa intersticial”.

Portanto, essa ambiguidade “criada textualmente na cabeça do leitor é característica fundamental de uma autoficção. Há um jogo de ambiguidade referencial (é ou não é o autor?) e de fatos (é verdade ou não? Aconteceu mesmo ou foi inventado?) estabelecido intencionalmente pelo autor”.

O próprio autor nos fala o que é verdade e o que é mentira no que está contando; ele mesmo admite que constrói a sua narrativa inventando memórias. Mais do que isso, ele se questiona, enquanto narrador, sobre o que está a contar.

O lugar para onde nos levam as autoficções é talhado pela incerteza.

“Vejo ou invento?”

É nesse contexto autoficcional que encontramos as duas obras mais recentes do paulista Julián Fuks. Em A Resistência (2015) e A Ocupação (2019), com “escombros imateriais” edificados “sobre alicerces subterrâneos tremendamente instáveis”, Fuks fala de si, mas também dos outros.

Esses escombros imateriais a que se refere são justamente o ponto que mais chama a atenção em sua narrativa, pois despertam a ambiguidade do pacto autoficcional não apenas em nós (leitores), mas também nele (autor/personagem).

A todo instante, Fuks parece conversar consigo mesmo, ora duvidando da possibilidade de lembrar-se (“Essa história poderia ser muito diferente se dela eu me lembrasse”), ora tendo certeza de sua incapacidade (“Não, isso é ficção, e nem sequer das mais convincentes”).

Essa luta interna que trava com sua própria memória reflete-se no texto, por vezes deixando-o perdido (“Agora não sei mais por onde ir. Agora paraliso diante das letras e não sei quais escolher”), para depois se encontrar (“Acho que não consegui me perder, que em cada palavra que atribuí aos outros encontrei uma palavra minha, em cada casa alheia vasculhei a minha, em cada rosto reconheci o meu rosto, por vício, por teimosia”).

A assunção da falibilidade das lembranças e o reconhecimento de que “[p]ode ser finito nosso acervo de imagens mentais” levam a que faça-se necessária a utilização de algo para uni-las ou complementá-las:

Do constrangimento de alguns velhos dias a lembrança é vívida, quase palpável, talhada de imagens nítidas demais, inequívocas demais, para que delas eu possa desconfiar. Paradoxalmente, parece mais difícil contá-las, se devo sustentar a concretude de alguns fatos pontuais, se apenas sobre seus sentidos me resta especular.

Os retalhos de lembrança são unidos por uma linha de ficção, e a colcha resultante dessa costura causa um grande impacto (novamente, em nós e nele):

Sei que escrevo meu fracasso. Não sei bem o que escrevo. Vacilo entre um apego incompreensível à realidade — ou aos esparsos despojos de mundo que costumamos chamar de realidade — e uma inexorável disposição fabular, um truque alternativo, a vontade de forjar sentidos que a vida se recusa a dar. Nem com esse duplo artifício alcanço o que pensava desejar.

A composição da memória

Assim como encontramos narrativas na literatura, também as encontramos dentro de nós mesmos e, por que não, nos outros. A memória é uma narrativa que utilizamos com inúmeros intuitos, mas que produzimos sem perceber.

Por estarmos fadados à limitação de nossos sentidos, temos a tendência a crer que a memória é fruto da nossas experiências sensoriais, que comumente chamamos de lembranças. Ocorre que, como vimos, nosso acervo sensorial é limitado e sofre com a ação do tempo. Lacunas são formadas e para preenchê-las recorremos à ficção, que “por si só, apara as arestas do caos, põe nele uma moldura e desenha os limites do mundo”.

Memórias, portanto, são tanto reminiscências quanto criações.

Destaco, agora, duas passagens de A Resistência, em que Fuks nos descreve esse processo onde, à partir de “um repertório extenso de cenas falsas”, que ele jamais poderia ter presenciado pois aconteceram antes de seu nascimento, compõe-se uma imagem, uma memória.

Inicialmente, destaco a passagem em que há a recriação do primeiro contato dos pais de Fuks com seu irmão mais velho, que é adotado:

Ao fundo, atravessando a voz da parteira e os ruídos estáticos da ligação, podia-se ouvir uma criança que chorava, sua estridência cortando a manhã. Que minha mãe se lembre desse detalhe sempre me enterneceu, como se aquele choro fosse a primeira conversa entre eles, um diálogo entre o pranto e o silêncio, como se assim se rompesse o espaço e se adiantasse o instante em que ela o estreitaria em seu peito.
Quanto ao instante em que ela o estreitou em seu peito, prefiro não invadir sua intimidade, prefiro não adivinhar se ali desfalecia em sorriso toda a tensão do caminho, toda a ansiedade acumulada no tempo. Por ora deixo essa mulher e o menino recém-nascido. Se os deixar, confio, talvez ela se torne sua mãe, e a mulher que seria minha mãe, talvez ele se torne seu filho, e o menino que seria meu irmão. Esqueço também o homem que assomou um tanto tímido e, valendo-se apenas das mãos, envolveu a pequenez que era o menino, aquele frágil corpo em construção. Esse não será pai ainda, subsumido na estranheza que escondia com discrição, no sutil embotamento que só confessará algumas décadas depois.
Deixo a família ali, em vagarosa composição.

A segunda passagem é referente a uma foto que Fuks encontra em um velho apartamento. Nessa foto estão sua mãe e seu irmão:

Não vejo seus olhos na foto, seus olhos estão cobertos pelos cabelos. É com o sorriso, então, que ela o contempla, que ela contempla o centro do losango desenhado por seus ombros e cotovelos, que ela contempla o meu irmão, aquele ser que não sou eu.
Meu irmão, no entanto, não a contempla. Vira o pescoço para trás num esforço considerável, evadindo com seu olhar os olhos ou o sorriso dela. Os olhos dele eu vejo: surpreendem de tão atentos. Me pergunto o que tentará observar, o que procura por cima de seus próprios ombros, para longe do abraço em losango em que sua mãe o encerra. (…)
São perguntas vãs, eu sei, perguntas inconsequentes que a foto impõe ou sugere. É porque a foto cala que eu me obrigo a dizê-la, que eu insisto em traduzir sua retórica, em captar sua tortuosa sentença. Só quando deixo de vê-los, só quando fecho o álbum e o enterro na estante tão alto quanto alcançam meus dedos, é que enfim chego a entender quanto mentem as fotos com seu silêncio.

Nessas duas passagens, as deduções que Fuks utiliza para preencher as lacunas de experiências que não foram suas lhe colocam, portanto, no âmbito da História barthesiana:

Para mim, a História é isso, o tempo em que minha mãe viveu antes de mim (aliás, é essa época que mais me interessa, historicamente). Nenhuma anamnese jamais poderá me fazer entrever esse tempo a partir de mim mesmo (é a definição da anamnese) — ao passo que, contemplando uma foto em que ela me estreita, criança, junto dela, posso despertar em mim a doçura enrugada do crepe da China e o perfume do pó-de-arroz.

Fica assim demonstrado, portanto, o “[c]urioso registro de uma memória a se montar, de uma existência longínqua a se converter em narrativa numa sequência artificiosa de imagens; curiosa noção de que haveria algo de memorável na própria constituição da memória”, que resolvi chamar de composição da memória: criamos memórias através de elementos das nossas experiências (lembranças sensoriais) e da interseção dessas experiências com as do outro (lembranças afetivas), juntando-as e modificando-as para compor algo que nos faça sentido de alguma forma.

Esta é uma tarefa similar à do fotógrafo, que compõe a foto em sua mente, juntando diversos elementos, para depois executá-la de fato.

O silêncio das imagens

Quando falamos que a tarefa de compor memórias é similar à de compor uma fotografia, estamos nos referindo a como o “que a Fotografia reproduz ao infinito só ocorreu uma vez: ela repete mecanicamente o que nunca mais poderá repetir-se existencialmente”, assim também o faz a memória.

Para Barthes,

uma foto pode ser objeto de três práticas (ou de três emoções, ou de três intenções): fazer, suportar, olhar. O Operator é o Fotógrafo. O Spectator somos todos nós, que compulsamos, nos jornais, nos livros, nos álbuns, nos arquivos, coleções de fotos. E aquele ou aquela que é fotografado, o alvo, o referente, espécie de pequeno simulacro, de eídolon emitido pelo objeto, que de bom grado eu chamaria de Spectrum da Fotografia, porque essa palavra mantém, através de sua raiz, uma relação com o ‘espetáculo’ e a ele acrescenta essa coisa um pouco terrível que há em toda fotografia: o retorno do morto.

Seguindo com nossa analogia, somos, portanto, ao mesmo tempo Operator, Spectator e Spectrum de nossas memórias. Escolhemos as lembranças, nossas e do outro, que iremos utilizar e as enredamos com elementos criados para melhor revivermos aquele momento que nunca poderá se repetir a não ser dentro de nós mesmos.

Outra lição de Barthes sobre a fotografia é a de que “[s]eja o que for que ela dê a ver e qualquer que seja a maneira, uma foto é sempre invisível: não é ela que vemos”.

Novamente, podemos associar fotos e memórias, na medida em que ambas são silenciosas. Quem fala numa foto não é ela, e sim o fotógrafo que a compõe, assim como quem fala numa memória somos nós mesmos, que ajudamos a criá-la.

Nessa perspectiva, reconhecer a existência e identificar a origem de tais vozes torna-se uma importante tarefa na análise acerca de nossas experiências com a arte e com o ser.

Entre uma mentira e outra

Durante este ensaio, propus analisar as duas obras mais recentes do paulista Julián Fuks, associando sua construção narrativa aos nossos processos internos de reflexão acerca de nós mesmos.

Utilizando conceitos e conhecimentos da semiótica, da fenomenologia e da teoria literária, procurei construir o argumento de que a ficção, associada às lembranças, faz parte da construção das memórias.

Ao expor o processo de composição da memória dentro de sua narrativa, ainda que assim não o denomine, Fuks acaba criando uma forma de fazer com que nós, leitores, reflitamos sobre nossa própria relação com o passado e com nossos sentidos.

Com suas mentiras, algumas assumidas (“Entre uma mentira e outra se desloca o drama desta narrativa”) e outras percebidas (“Você não mente como costumam mentir os escritores, e no entanto a mentira se constrói de qualquer forma”), Fuks faz com que nos perguntemos sobre as nossas.

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Gabriel Franklin
(Re)Leituras

Fingindo que estou, sonhando que vou, inventando que volto.