“Listen to my music”: arte, resistência e conexão em ‘2112’

Ensaio baseado em artigo publicado na Revista de Letras Juçara, da Universidade Estadual do Maranhão (https://tinyurl.com/23b83kxu)

Gabriel Franklin
(Re)Leituras
19 min readAug 2, 2021

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I don’t always listen to Rush
But when I do, so do my neighbors

Usuário anônimo no YouTube

Há exatos 45 anos do momento em que estas linhas são escritas, o grupo musical canadense Rush lançava seu quarto álbum de estúdio, intitulado 2112.

Momento chave nas carreiras e vidas de Geddy Lee, Alex Lifeson e Neil Peart, aquele abril de 1976 entrou para a história da música e da arte, por motivos que pretendemos apresentar ao longo deste ensaio.

2112 é composto por seis músicas, todas escritas pelo baterista Neil Peart, e distribuídas em dois lados.

O lado A inteiro é ocupado por apenas uma faixa, homônima do título do disco (para evitar confusão, no decorrer do texto, sempre que nos referirmos ao disco, usaremos a forma em itálico [2112] e, à faixa, deixaremos entre aspas simples [‘2112’]), em que, através de uma narrativa distópica, retrata-se o poder da arte e seu papel na construção da individualidade do ser humano.

Já o lado B traz outras cinco músicas, que apesar de fazerem parte do conceito geral proposto pelo grupo, não têm ligação direta com a história narrada na primeira metade do álbum.

Dividida em sete partes, que poderiam ser chamadas de atos, como em uma peça teatral, ou de capítulos, como em uma novela de ficção científica, ‘2112’ apresenta, em 20 minutos e 34 segundos, a jornada de um personagem anônimo que sofre em um futuro (não tão) distante.

O Herói, como ficou conhecido pelos fãs posteriormente, vive em uma sociedade dominada por uma casta de sacerdotes-filósofos que controla todas as esferas das vidas dos indivíduos, sob o pretexto de dar-lhes, em troca, segurança e satisfação.

Além das letras que compôs para a música, Peart também escreveu paratextos que foram incluídos no encarte do álbum, com o intuito de contextualizar o público e preencher as lacunas que unem as sete partes.

Dessa forma, foi construída uma narrativa meta-artística e multimídia, contendo uma profunda mensagem, acessível a quem escutasse, lesse e sentisse a obra.

Seja através da voz de Lee, da guitarra de Lifeson ou da escrita de Peart, a mensagem que conectou e cativou milhões de fãs neste quase meio século desde o primeiro acorde de ‘2112’ pode ser resumida em uma palavra: resistência.

Às acepções que essa resistência pode assumir dentro da referida faixa é sobre o que ora nos estenderemos, analisando cada uma de suas partes.

PS.: Aconselho fortemente a escutar cada parte da música antes de passar para o texto de análise!

I. Overture

Ao final de 1975, o trio canadense Rush já havia lançado três discos: Rush (1974), Fly by Night (1975) e Caress of Steel (1975). Apesar de o primeiro ter recebido tímidas críticas, o álbum seguinte teve recepção positiva e colocou o grupo em destaque na indústria fonográfica norte-americana. O principal motivo: a adição de Neil Peart.

Um homem de palavras, Peart não se destacou apenas pelo seu talento na percussão, mas também na escrita:

Enquanto muitos concordariam que Peart é um dos maiores bateristas de todos os tempos, ele também pode, com justiça, ser considerado um dos melhores ensaístas vivos da língua inglesa. Peart aprecia as palavras, em qualquer forma. Isto se mostra verdadeiro igualmente na sua escrita em livros e ensaios, nas suas letras, e até em suas entrevistas.

Logo que se juntou à banda, Peart assumiu a composição das letras das músicas e mudou “radicalmente a maneira como o grupo transmitia sua arte”, pois, segundo o historiador Bradley Birzer, especialista em cultura norte-americana, as letras do primeiro disco são “efêmeras” e “não significam quase nada”. Para ele, Peart elevou “o Rush para um outro nível de exploração e respeito intelectual.”

No entanto, ainda que tenham garantido certo destaque, Fly by Night e Caress of Steel também geraram críticas e desconfiança quanto ao futuro da banda. Justamente por estarem produzindo algo diferente, cobrava-se do trio a capacidade de inserir-se no meio comercial dominado por gigantes, já à época, como Led Zeppelin, The Who e Pink Floyd:

O primeiro álbum, com o mesmo nome da banda, foi gravado pouco antes de eu entrar, e quando vendeu 125 mil cópias nos Estados Unidos, a gravadora o declarou “uma estreia promissora”. Quando o próximo, Fly by Night, vendeu 125 mil cópias, foi “uma sólida sequência”. Mas quando o terceiro álbum, Caress of Steel, vendeu 125 mil cópias, eles o chamaram de “um enfado”. Nós fomos compelidos a ser “mais comerciais”, escrever mais singles.

O grupo, portanto, viu-se numa encruzilhada: continuar produzindo sua arte de forma inovadora e independente, arriscando assim não agradar e ter seu contrato não renovado pela gravadora; ou aderir ao estilo mais comercial, que crítica e indústria fonográfica lhe exigiam, para garantir seu lugar entre os grandes.

A decisão tomada por Lee, Lifeson e Peart foi enfrentar o sistema, e “cair lutando, ao invés de tentar fazer o tipo de disco que eles [crítica e indústria] queriam que fizéssemos”.

Desse ato de resistência praticamente suicida nasceu 2112, cujo lado A dedica-se expressamente a demonstrar que a arte é um atributo do indivíduo e, como tal, é uma forma única de conexão deste com os outros.

A resistência em ‘2112’ já se percebe pelo simples fato de esta ser a faixa que abre o disco. O comum, à época, é que faixas mais longas e/ou dividas em várias partes ficassem legadas ao lado B, mais obscuro, deixando para o lado A as faixas mais comerciais, os chamados singles, que eram enviados às rádios para promoção dos discos.

O impacto artístico da firme decisão do trio em fazer as coisas do seu jeito e “cair lutando” percebe-se logo em sua introdução instrumental. Com 6 minutos de duração, compondo 30% de toda a música, a abertura de ‘2112’, “relembrando a Abertura 1812 [de Tchaikovsky]”, “dirige-se, implacável, rumo à vitória”, “numa luta do indivíduo contra o tirano”.

No entanto, seu caminho “rumo à vitória” é abruptamente interrompido pelas primeiras palavras que se ouvem no disco, proferidas por Geddy Lee praticamente em um sussurro:

And the meek shall inherit the earth.

II. Temples of Syrinx

Retomando o tema triunfal interrompido pela paráfrase bíblico-profética, a narrativa de fato começa com a apresentação dos Sacerdotes dos Templos de Syrinx, que, através de grandes computadores, dispostos em seus salões sagrados, detêm os dons da vida e os distribuem a todos igualmente, formando assim uma Irmandade dos Homens:

Look around this world we made
Equality
Our stock in trade
Come and join the Brotherhood
Of Man

No entanto, a proteção e a satisfação oferecidas pelos Sacerdotes, que “em seus poderes, lembram os mais rígidos governantes da República de Platão, e em suas vozes, soam como os fariseus em Jesus Christ Superstar, vêm com um preço:

We’ve taken care of everything
The words you read
The songs you sing
The pictures that give pleasure
To your eye

Sua dominação mostra-se não apenas sobre o que é produzido e consumido como arte, mas também sobre o que é pensado e sentido por todos que fazem parte da Irmandade:

One for all and all for one
Work together
Common sons
Never need to wonder
How or why

Através do primeiro paratexto escrito por Peart, incluso no encarte do álbum, sabe-se que estes templos são encontrados no centro de cada cidade da Federação, e que é de dentro deles que todas as facetas da vida mundana são reguladas e dirigidas.

Essa história que Peart começa a narrar assemelha-se em muitos pontos a duas novelas de ficção distópica escritas na primeira metade do século XX: Nós, de Yevgeny Zamyatin (escrita em 1920, mas somente publicada em 1954); e Anthem, de Ayn Rand (1938).

Ambas retratam sociedades onde não existe individualidade e tudo é decidido por outras forças que não a dos próprios sujeitos. Até porque não há sujeitos: a coletividade, através da padronização, passou a ser uma unidade. O mundo, de vertical, passou a ser plano.

Claras críticas ao regime estabelecido após a Revolução Russa de 1917, que ambos os autores vivenciaram, as duas novelas, bem como outras ficções distópicas que as seguiram (1984, de George Orwell, e Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, são exemplos clássicos), tiveram grande influência sobre a comunidade artística ocidental, principalmente em sua defesa da individualidade do sujeito.

No entanto, quando 2112 foi lançado, a crítica apegou-se apenas ao livro de Rand como principal influência de Peart ao escrever sua própria novela em formato musical, o que gerou grandes controvérsias com relação ao disco e ao grupo como um todo, devido à propensão ultraconservadora e egoísta do pensamento da autora russo-americana.

A questão é que os artistas “usaram e ainda estão usando a ‘cultura comum’ que os rodeia. (…) [Eles] misturam essa cultura comum com suas próprias ideias mais ou menos idiossincráticas e, então, alimentam novamente a mesma cultura.”

Apesar de ter sido, de fato, influenciada por Rand, esta não foi a única inspiração para a escrita de Peart, que sempre foi um ávido leitor, indo de T.S. Eliot a Friedrich Nietzsche, e, assim como seus parceiros de banda, admitidamente uma esponja para tudo que consumia:

Nosso progresso sempre foi sincero — não de um jeito arrogante, mas para nosso próprio prazer. Nós sempre incorporamos a música de pessoas que gostávamos, então isso nos fez estilisticamente esquizoides.

O que parece ter mais influência sobre a composição de ‘2112’ é um profundo entendimento do tempo presente que os envolvia: em 1976, duzentos anos depois da Declaração de Independência dos Estados Unidos, os norte-americanos ainda pareciam à procura da verdadeira liberdade; os artistas, como era o caso do Rush, se não eram oprimidos pela sua visão progressista das coisas, eram compelidos a moldarem-se dentro de um ideal de consumo.

O mundo descrito acima, no qual se espelha a música que estamos analisando, não parece estar tão distante assim do qual vivemos hoje:

Vivemos em tempos sombrios, no qual grandes formas de extermínio se produzem diante dos nossos olhos, sejam elas locais, nacionais ou internacionais; contudo, somos indiferentes a esses fatos, pois estamos sempre a olhar os acontecimentos com o distanciamento que a televisão e a internet produzem e nos impõem. Não nos envolvemos; vivemos a desrealidade que a profusão de imagens nos proporciona. Trocamos de assunto com grande simplicidade de gestos e facilidade de direcionamento e redirecionamento da nossa atenção passamos da notícia de um evento trágico a uma frivolidade midiática, sem a menor cerimônia. Somos capazes de nos emocionar com clichês familiares sobre a realeza britânica, mas não somos levados à reflexão sobre a violência produzida pelo terror, ou sobre o desespero de milhares de refugiados ao redor do mundo, produzidos pelo horror geopolítico gerado no seio da governança das nações desenvolvidas do Ocidente.

Como todos os tempos são obscuros para quem neles habita, um fardo da condição humana, mas também uma consequência de ser parte do substrato da análise, para Giorgio Agamben, o indivíduo contemporâneo “é, justamente, aquele que sabe ver essa obscuridade” e que “não coincide perfeitamente com [seu tempo], nem está adequado às suas pretensões”. Justamente por conta desse “deslocamento e desse anacronismo”, o contemporâneo é “capaz, mais do que os outros, de perceber e apreender o seu tempo” e assim “escrever mergulhando a pena nas trevas do presente.”

De tal forma que Birzer afirma não acreditar que “outra figura do último meio século tenha entendido tão bem a minha geração quanto Peart”.

Portanto, a decisão do Rush de resistir ao molde que lhe era imposto e produzir a arte da forma que melhor transmitia seus ideais e sentimentos tornou-se um marco por lhes caracterizar como indivíduos eminentemente contemporâneos, que fincaram seus pés firmemente no chão de seu tempo, cada vez mais plano e líquido, nos dizeres de Pascal Gielen e Zygmunt Bauman, para conseguirem enxergar mais longe e assim vislumbrar o futuro.

III. Discovery

Seguindo a história, é então apresentado o seu protagonista anônimo, que, inclusive, é o narrador dos paratextos.

Em uma pequena sala há muito perdida, dentro de uma caverna encoberta por uma cachoeira, o Herói descobre um objeto que lhe é completamente estranho, mas que, pela descrição que faz, é de fácil identificação para o leitor/ouvinte: uma guitarra.

Ao experimentar as cordas do instrumento e produzir seus primeiros acordes, que podem ser ouvidos pelo público através da guitarra de Lifeson, o Herói percebe que pode criar sua própria música, e que esta é diferente da produzida pelos Sacerdotes:

See how it sings like a sad heart
And joyously screams out its pain
Sounds that build high like a mountain
Or notes that fall gently, like rain

No Anthem, de Ayn Rand, o protagonista também faz uma descoberta no subsolo, mas, ao invés de encontrar a arte, Equality 7–2521 se depara com a ciência, através de livros e equipamentos que o permitem (re)descobrir a luz elétrica. Essa dualidade arte/ciência merece destaque, pois

Albert Einstein certa vez escreveu que arte e ciência são duas das maiores formas de fugir da realidade já criadas pelos humanos. De certo modo, ele estava correto: a grande arte e a grande ciência envolvem um salto de imaginação para um mundo que é diferente do presente. O resto da sociedade vê essas novas ideias como fantasias sem relevância para a realidade do momento. E eles estão corretos. Mas a grande questão da arte e da ciência é ir além do que nós consideramos real agora e criar uma nova realidade. O que torna criativa uma nova ideia é que, uma vez que nós a vemos, cedo ou tarde reconhecemos que, por mais estranha que pareça, ela é verdadeira.

Como vimos acima, e veremos adiante, o processo de estranhamento por parte da sociedade frente ao novo trazido pelo indivíduo criativo, descrito por Csikszentmihalyi e percebido na narrativa do Herói, é exatamente o que ocorria com a banda depois do lançamento de seus três primeiros discos e que, percebido por Peart, foi inserido em sua composição.

Outro ponto por vezes ignorado por quem compara ‘2112’ e Anthem é que, enquanto Equality pretende, num primeiro momento, esconder de todos sua descoberta e mantê-la apenas para si, a primeira reação do Herói é compartilhar sua maravilha com as outras pessoas:

I can’t wait to share this new wonder
The people will all see its light
Let them all make their own music
The Priests praise my name on this night

Novamente com o psicólogo húngaro-americano, é interessante notar que “indivíduos criativos alternam entre imaginação e fantasia, de um lado, e um firme senso de realidade, do outro. Ambos são necessários para se libertar do presente sem perder o contato com o passado.”

Essa libertação do presente, esse afastamento, se dá pelo que já citamos com Agamben: a necessidade de o contemporâneo ver o seu tempo de forma mais ampla. No entanto, como veremos adiante, o artista tem também a necessidade de retornar e compartilhar sua visão com aqueles que não conseguiram ter o mesmo vislumbre.

O tipo de criação que temos chamado de arte desde a idade moderna depende, em grande medida, da possibilidade de tomar uma posição crítica em sua própria sociedade e cultura. Somente quando os indivíduos criativos podem ver seu próprio mundo do alto por um instante, ‘permanecer à margem do rio’ na metáfora de Sloterdijk (2011), é que eles podem, de fato, fazer a diferença em suas culturas.

A urgência do Herói em, não só criar sua própria arte, mas permitir que os outros também possam fazê-lo, é um duplo ato de resistência à opressão do sistema que o domina: manifesta sua individualidade, ao mesmo tempo em que o reconhece inserido num grupo que progride com as virtudes e qualidades, mas também com as diferenças, de seus membros.

Há ainda, então, no Herói um senso de coletividade; enquanto que em Equality, há apenas o egoísmo e a necessidade de autopromoção.

IV. Presentation

Após decidir compartilhar sua descoberta, o Herói apresenta-se aos Sacerdotes, acreditando que a mera demonstração desse milagre ancestral seria suficiente para convencê-los de sua utilidade:

Listen to my music
And hear what it can do
There’s something here as strong as life
I know that it will reach you

No momento em que, através da voz de Lee, o Herói faz o apelo aos Sacerdotes, uma mensagem é passada também a todos que escutam o disco: há algo na arte que é tão forte e importante quanto a própria vida, e com o devido cuidado e a adequada disposição, esse algo pode chegar a qualquer um que decida lhe ouvir e sentir.

Em sua autobiografia literária, Cristovão Tezza assevera que é “inescapável: escrevemos porque queremos chegar aos outros”. Tomando a liberdade de expandir essa afirmação, temos que a arte, de forma geral, pode ser resumida como uma tentativa de se chegar ao outro.

Não há arte sem o outro, pois “uma cultura só é viável quando é baseada em sentidos compartilhados”. Em contrapartida, há o outro sem a arte; só que esse é um outro mais triste, já que a arte é também uma forma de se viver melhor.

A arte e, portanto, também a música, mostra-se uma ponte que liga os indivíduos: de um lado o(s) que produz(em), de outro o(s) que consome(m). A conexão estabelecida pela arte é o que faz esse algo mencionado pelo Herói tão forte quanto a própria vida, já que o ser humano, ainda que um sujeito individual, completa-se pelo contato com o outro.

Nesse sentido:

Hoje é comum se falar em encontrar uma “identidade”, significando uma identidade autocriada, individual. Mas a criatividade individual e o sucesso, até mesmo para aqueles sortudos que os alcançam, raramente são suficientes. Apesar (ou por causa) do seu interesse próprio, os humanos fazem muito do que fazem para outras pessoas — para aprovação ou admiração delas, ou para receber coisas boas em troca. É bom lembrar que nós também evoluímos para fazer coisas com outras pessoas, para o ganho e o bem comum.

Ponto central de todo o álbum, o apelo para que as pessoas ouçam sua música é tanto o marco de virada na história do Herói, quanto da própria banda em sua encruzilhada.

No entanto, as esperanças, do Herói e da banda, de apresentar sua descoberta e transformá-la em algo belo e útil ao mundo, sofrem sério golpe com a resposta que encontram em quem julga sua arte, manifestada na estridente voz de Lee:

Yes, we know
It’s nothing new
It’s just a waste of time
We have no need for ancient ways
Our world is doing fine

Another toy
That helped destroy
The elder race of man
Forget about your silly whim
It doesn’t fit the plan

Em choque pela recepção de sua descoberta, o Herói ainda tenta convencer os Sacerdotes de que a beleza que sai do instrumento descoberto é útil e com ela muito se poderia conquistar, repetindo seu apelo para que ouçam sua música. A resposta dos Sacerdotes, por sua vez, é definitiva:

Don’t annoy us further
We have our work to do.
Just think about the average
What use have they for you?

Na negativa veemente por parte do poder dominante sobre a arte, pode-se perceber a tendência neoliberal que começava a se mostrar no Ocidente à época em que Peart compôs ‘2112’, e que hoje parece ter se estabelecido de vez.

Nessa perspectiva, dois termos são dignos de comentários: desperdício de tempo e comuns. Ambos são normalmente utilizados no jargão neoliberal para se referir à arte, por vezes junto com outro, também mencionado por Peart na letra: utilidade.

A arte que foge dos padrões da cultura de massa, ou seja, aquela que sai do molde proposto pelo sistema para o consumo da população dominada, é tida como inútil e, portanto, um desperdício do tempo de quem a produz e de quem a consome.

Pascal Gielen aponta que, no mundo neoliberal, plano e úmido, o artista acaba se vendo obrigado a exercer seu trabalho criativo ou intelectual no tempo livre, como hobby, uma vez que seu tempo formal deve ser usado para uma atividade dita útil, geralmente a serviço da mesma indústria que o julga deslocado e que cultiva apenas uma lu-criatividade: “Qualquer coisa que não possa ser mensurada, como o tempo necessário para desenvolver uma ideia criativa (…), é relegada ao tempo livre.”

A noção de utilidade e/ou praticidade da arte é estendida para a sua possibilidade de consumo, onde surge a criação da figura do homem-médio ou comum: “[o] populismo, o neoliberalismo e o neonacionalismo cultivam uma forma específica de barbárie — aquela do ‘comum’, antielitista, anti-intelectual, da pessoa que odeia a arte.”

A arte que o comum consome é a massificada, enlatada e mastigada pela indústria, que diverte e aliena mais do que instrui e faz sentir:

As agências de rádio e teledifusão nacionais — incluindo estações comerciais — realmente geram, afinal, quadros de referência cultural compartilhados. Elas definem qual é a cultura compartilhada, qual tipo de criatividade é permitido, e moldam nossa memória coletiva, no processo de definição de um sentimento compartilhado de solidariedade. Em outras palavras, a busca neoliberal pelo denominador comum do nível médio e a tendência neonacional pela homogeneização cultural (em nível nacional) reforçam uma à outra perfeitamente.

Portanto, a recusa dos Sacerdotes dos Templos de Syrinx em utilizar a descoberta artística do Herói, assemelha-se à pressão e à crítica sofridas pelo Rush, provenientes da indústria fonográfica de sua época. Aquela, num mundo distópico; estas, num mundo proto-neoliberal.

V. Oracle: The Dream

De volta ao seu esconderijo na caverna, o Herói, decepcionado com o golpe sofrido pelo não reconhecimento da importância de sua arte, cai num profundo sono, vívido e alucinatório.

No sonho, que mais parece uma visão oracular, ele vislumbra o mundo como era antes do surgimento da Federação e dos Templos, e como, talvez, ainda o seja em algum outro lugar, fora do alcance da Irmandade dos Homens:

I see the works of gifted hands
Grace this strange and wondrous land
I see the hand of man arise
With hungry mind and open eyes

Mais do que vislumbrar a vida que poderia ter e não tem, o Herói começa a nutrir certa esperança num retorno desse tempo, que traria liberdade e salvação das amarras que o prendem:

They left the planet long ago
The elder race still learn and grow
Their power grows with purpose strong
To claim the home where they belong
Home to tear the Temples down
Home to change

Essa espécie de interlúdio na narrativa parece servir para mostrar o conflito que se instala no espírito do Herói: de um lado, a esperança da mudança, que traz força e resistência; do outro, a opressão real do sistema, que traz letargia e medo.

Diante desse conflito, surge uma interessante questão sobre a criação artística: o que move um artista?

A imaginação como fuga ou compensação, como prêmio de prazer, é exercitada por todos os seres humanos. Alguns, entretanto, exteriorizam sua imaginação, inscrevem-se em objetos expostos à percepção de outras pessoas. Esse é o modo artístico de exercer a imaginação e compensar o que falta no mundo. (…) Inventar um outro mundo mais pleno ou evidenciar as lacunas desse em que vivemos são duas maneiras de reclamar da falta.

A arte é uma das formas que o indivíduo criativo encontra para tentar modificar uma realidade que já não lhe satisfaz. A questão é que, para apontar as falhas e mazelas ou criar suas correções e modificações, a própria realidade é usada como ponto de partida para a viagem em que embarcarão o próprio autor e o outro, pois a realidade é tudo que se tem.

“Minha arte, se posso dizer assim, nasceu como construção de objetos que imitavam diretamente o mundo real, que, nesse simulacro, podia ser controlado”. Essas palavras, que bem poderiam ser de Peart, mas que na verdade são de Cristovão Tezza, descrevem bem o combustível para a (cri)atividade artística: cria-se para ter controle sobre uma falta que não se pode preencher na realidade.

Portanto, no sonho oracular do Herói identificam-se as duas opções que o artista tem frente a homogeneização do mundo plano: resistir através da arte, utilizando a opressão como combustível; ou sucumbir através da letargia, entregando-se.

O Rush, como vimos até aqui, resistiu. Já o Herói, como veremos agora, sucumbiu.

VI. Soliloquy

Sem sair da caverna há vários dias, e ainda sob efeito do sonho que teve, o Herói deixa-se tomar pelo desespero de não poder habitar o mundo que vislumbrou:

The sleep is still in my eyes
The dream is still in my head
I heave a sigh, and sadly smile
And lie a while in bed

I wish that it might come to pass
Not fade like all my dreams
Just think of what my life might be
In a world like I have seen

Mas o desespero é também o de não poder dar vazão à sua frustração através da atividade milagrosa que descobriu, uma vez que os Sacerdotes tomaram seu instrumento e o destruíram.

Se a luta do Herói era contra o sistema, que não o deixava ser criativo e ajudar as pessoas da forma como ele agora sabia que podia, essa era a mesma luta de Lee, Lifeson e Peart, que se viam sendo impelidos a um molde que não os interessava e que não os caberia.

A diferença entre criadores e criatura é que aqueles ainda tinham meios de resistir, pelo menos uma última vez, através da arte; já a este não restou outra opção a não ser desistir:

I don’t think I can carry on
This cold and empty life
My spirits are low, in the depths of despair
My lifeblood
Spills over…

A morte do Herói, que lembra o fim do estoico Cato após lutar contra a ascensão de Júlio César em Roma, simboliza o fim que poderia ser o do próprio Rush: “uma vitória ao negar à sociedade o controle sobre o seu destino”. No entanto, em meio a uma guerra não declarada (a Guerra Fria), outras lutadas, mas perdidas (Guerras da Coreia e do Vietnã), e escândalos políticos (Watergate), a parcela jovem da sociedade norte-americana, maiores consumidores da música do trio, identificou-se prontamente com o Herói e sua jornada.

Parafraseando novamente Cristovão Tezza, quando este se refere à literatura como “uma aproximação densa e silenciosa entre duas pessoas num terreno a que nenhuma outra voz consegue chegar”, podemos dizer que a música do Herói e, consequentemente, do Rush, é uma aproximação densa e barulhenta entre as pessoas num terreno a que outras vozes até podem chegar, mas não do mesmo jeito e com a mesma intensidade.

O Herói teve seu trágico fim; mas a história, do disco e do Rush, não.

VII. The Grand Finale

Com a morte do protagonista, ‘2112’ chega à sua última parte em uma espécie de retomada da marcha triunfal que o iniciou. Sons potentes, que novamente simulam uma batalha, levam ao retorno daqueles por quem o Herói não acreditava ser possível esperar, os algozes da Federação, que em profunda voz anunciam:

Attention all Planets of the Solar Federation,
we have assumed control!

Em ‘2112’, Neil Peart parece, de fato, ter profetizado o que aconteceria após o lançamento do disco: um ato de resistência que, através da arte, venceu a batalha contra o sistema. O álbum não só foi um sucesso entre o público e a crítica, como também influenciou a forma como a música seria composta e produzida a partir de então, tanto pelo próprio Rush, quanto por outros grupos que compartilhavam seu estilo.

Como, “[r]egularmente, o caminho da ficção é escolhido para apontar desvios problemáticos na realidade”, Peart utilizou-se de uma narrativa distópica, meta-artística e multimídia, inspirando-se nas inquietações que o acometiam e nos problemas que identificava em seu tempo, para deixar uma mensagem a quem o lesse ou ouvisse, numa tentativa de verticalizar e solidificar um mundo plano e líquido.

O artista, através de narrativas que, às vezes, “nos mostram um mundo ainda mais terrível do que esse, já tão insatisfatório, que nos cerca”, proporciona uma experiência onde “lê-se ainda mais claramente a insatisfação causada pela falta. Acentuar o que está mal, torná-lo perceptível e generalizado até o insuportável, é ainda sugerir, indiretamente, o que deveria ser e não é”.

Seja para mostrar como é de fato, seja para imaginar como deveria ser, o mundo é sempre usado como base de comparação na arte. Nela, resistimos ou fugimos do mundo. Mas, também nela, o encontramos, refletido no outro e ecoando em nós mesmos.

Se, portanto, a arte é sinônimo de resistência, também o é de conexão.

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Gabriel Franklin
(Re)Leituras

Fingindo que estou, sonhando que vou, inventando que volto.