O cheiro do mar

Gabriel Franklin
(Re)Leituras
Published in
5 min readMar 14, 2023
“Whats in the box?”, Aleksey Vaynshteyn (2021)

Algum dia, em algum lugar, alguém deve escrever sobre o que realmente significa “voltar à casa”. Infelizmente, esse alguém não serei eu, pois, desde que aqui estou, e já faz algum tempo, não sei se voltei, bem como não sei se isso que se encontra às minhas costas é, de fato, uma casa.

Se, porventura, casa quiser dizer, simplesmente, refúgio, então, talvez, esta seja uma. Vim fugindo do mundo, tal qual o Des Esseintes de Huysmans: achei um buraco para me esconder de mim mesmo, ou, ao menos, do eu que sou quando estou lá, fora. Trouxe apenas meus livros, algumas roupas, os discos não, pois já os guardo todos no Spotify, e uma mala cheia de lembranças vazias, as mesmas que desejo esquecer.

Se, no entanto, casa for, necessariamente, sinônimo de lar, então, com certeza, esta não é uma. Um lar pressupõe um arredondado aconchego, e, aqui, transformei tudo em quinas e frio, mesmo na curva escaldante dos trópicos. Um lar é composto por mais de um, mesmo que esse um seja sozinho, e eu sou mais que sozinho, sou vazio. Um lar é feito de presentes, e eu, por mais que tente, consigo, no máximo, rimar, pois sou do time dos ausentes.

Nunca sou onde estou, sou sempre além, em palavras que não minhas, de preferência em uma língua que não me pariu, como essas que ora leio, cujo compasso é marcado pelo vai-e-vem da cadeira de balanço que fica na varanda:

Wysiadła na Raspail. Zostałem z ogromem rzeczy istniejących.

Tiro os olhos do livro para saborear melhor a rugosa tristeza das palavras e dou de cara com um outro par, de olhos, arregalados, de tristezas, escondidas. Ouço, então, uma voz, miúda, semioculta pelo muro baixo e pela timidez:

“Que diabo é isso, tio? É a língua do Cão?”

O riso se arranca de mim como um grito selvagem, vira uma gargalhada sem controle. Daí a pouco, estou sem ar, com os olhos lacrimejando; talvez as lágrimas aproveitem a oportunidade para se desprender, já que, no pranto, não há mais espaço para elas. Aos poucos, recupero o fôlego. Desacostumada com o esforço do sorriso, minha cara dói: a memória muscular, assim como não nos deixa, também não nos perdoa.

Os olhos no muro, encorajados, viram um rosto, de menino. A boca, de dentes ainda por quebrar, aparece.

“O tio achou bom, né? Mas, sério, o que é isso aí que o senhor tá falando?”

“É polonês, menino. Um poema de um sujeito chamado Miłosz.”

“De quem??”

“Míu-óch. Repete.”

O menino acerta de primeira. Depois, fica um tempo calado, como se pensando no que, inevitavelmente, viria a seguir, como se criando coragem pro pedido que, mesmo no futuro, dele e meu, já havia sido feito, por ele, e aceito, por mim. Finalmente, sobe no muro e pousa uma caixinha de papelão ao seu lado.

“O senhor pode falar mais em polonês, sabe, pra eu ouvir?”

Abro o livro e leio o que resta do poema:

Gąbka, która cierpi, bo nie może napełnić się wodą, rzeka, która cierpi, bo odbicia obłoków i drzew nie są obłokami i drzewami.

Termino eu, termina o poema, mas não termina o menino.

“O que o Míuóch tá dizendo aí, hein, tio?”

“Ele tá triste, menino. Porque encontrou uma moça num trem e ela desceu antes dele conseguir saber qualquer coisa sobre ela.”

“Ahh, era só isso? Que besta! Achei que tanta tristeza era por alguma coisa mais séria…”

“Você ainda é muito novo pra entender dessas coisas, menino. Às vezes, um encontro desses é tudo que a gente precisava e não sabia. E, quando ele vira desencontro, a gente fica igual o poeta: triste porque o mundo é sem graça, tendo que sempre voltar pro que nunca foi.”

“Ihh, o tio é poeta também? Parece que é triste igual! Sabe do que o senhor precisa? De um cachorro!”

“Que cachorro o que, menino? Deixa de conversa besta!”

“É sim! O tio precisa de um cachorro pra fazer companhia nessa casona aí! Tá resolvido: vou arrumar um cachorro pro tio, um cachorro preto. Aí o senhor chama ele de Míuóch!”

Minha única resposta é rir dessa força da natureza em forma de menino, que, enquanto fala, desce do muro e vem se aproximando, sempre com a caixa na mão.

“E essa caixa, menino, o que tem dentro dela?”

“Ah, é que aqui dentro eu tô levando o mar pro meu vô!”

“O mar?”

“É, tio, o mar. Aquele mundão de água que tem pra banda de lá, sabe? É que meu vô era pescador e agora não pode mais sair da cama. Aí, todo dia eu levo o mar pra ele.”

“E como é que um mundão de água vai caber dentro de uma caixinha dessas?”

“Ah, não precisa ser o mar todo… basta o cheiro.”

“O cheiro?”

“É, o cheiro do mar. Quer ver, tio?”

“Como é que eu vou ver um cheiro, menino?”

“Ah, tio. Deixa de ser besta. Ver é jeito de dizer. Quer ou não?”

E me estende a caixa. Antes que eu abra, no entanto, me interrompe, apressado:

“Só toma cuidado pra não deixar escapar tudo. Abre só um tiquinho!”

Seguindo o conselho do menino, levanto delicadamente uma pequena fresta da tampa de papelão. E sou invadido.

Sou invadido pelo cheiro de areia molhada na medida certa para se construir um castelo de nuvens; pelo cheiro do ardor de cloro no olho e pele de ressaca; pelo cheiro de refrigerante no copo de alumínio e de Tim Maia cantando; pelo cheiro de Fantástico e de segunda-feira que passou de amanhã a já já.

O que me invade não é um cheiro apenas: são todos os cheiros, a essência dos cheiros. O que me invade é a Memória, é o Tempo em si.

Fecho a caixa e, sem uma palavra, a devolvo ao menino. Este, sem saber o porquê das lágrimas que, finalmente, caem, livres, por um rosto cansado de as segurar, mas adivinhando que algo aconteceu, retrocede em direção ao muro.

“Já vou indo, tio. Depois eu volto com o Míuóch e o senhor lê mais da língua do Cão, que dizer, de polonês pra mim… Tchau!”

Leve como desceu, o menino sobe o muro baixo e desaparece, deixando para trás um sorriso de dentes todos, do tamanho da imensidão das coisas, e a certeza de que, algum dia, em algum lugar, alguém deve escrever que, para voltar à casa, é preciso, antes, sentir o cheiro do mar.

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Gabriel Franklin
(Re)Leituras

Fingindo que estou, sonhando que vou, inventando que volto.