O sol já se pôs em Fortaleza

Gabriel Franklin
(Re)Leituras
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3 min readDec 15, 2020

Maybe tomorrow honey
Somewhere down the line
I’ll wake up older
So much older mama
I’ll wake up older
And I’ll just stop all my trying

“Blues Run the Game”, Jackson C. Frank

Esse ano foi muito interessante, para não dizer muito louco.

Iniciei-o querendo ser muitas coisas: pesquisador, aluno, amado e amante. Termino-o não sabendo se consegui ser sequer um desses predicados.

No caminho, porém, fui muitas coisas que não planejava.

Fui contemporâneo, procurando pontos escuros na extrema luminosidade do meu tempo e focos de luz na assombrosa escuridão do futuro. Fui também mau, com u mesmo, ao preferir fechar-me em mim, blindando-me do caos que se instalou do lado de lá da porta. Fui até subversivo, praticando o nada (que eu nem sabia que era o nada), onde se esperava o algo (que eu nem imaginava que era algo).

A jornada que tinha como objetivo expandir meu pensamento enquanto membro de uma coletividade, acabou proporcionando um resgate da minha individualidade. No processo de construção desse algo que me tornei, mudei de opinião várias vezes, sobre mim e sobre os outros. Ouvi mais do que falei, aprendi bem mais do que ensinei. Perdi minhas palavras e as reencontrei.

Foi também um resgate da minha autoestima, enquanto pesquisador, produtor e consumidor de arte. Com as lições de quem já trilhou o mesmo caminho, e o junto perambular de quem ainda também se arrasta pela mesma estrada, pousei em estranhas paragens. Pulando do conceito de arte para sua utilidade, passando pelo belo e pelo eficaz, voltando às origens do que é de fato se comunicar.

Hoje completo 33 anos, a chamada idade de Cristo. Cristo esse que sempre me assombrou por suas palavras. Não as que disse, mas as que chegaram até mim. Entre as duas, as ditas e as recebidas, um abismo de dois mil anos se formou. E é esse abismo, ainda que fosse de meros segundos, que me atormenta até hoje: a distância entre o que falo e o que entendem.

Isso me lembra de uma passagem de A Jangada de Pedra, onde Saramago resume bem minha angústia:

“mas não tem importância, claridade e obscuridade são a mesma sombra e a mesma luz, o escuro é claro, o claro é escuro, e quanto a ser alguém capaz de dizer de facto e exactamente o que sente ou pensa, imploro-te que não acredites, não é porque não se queira, é porque não se pode. Então porque é que as pessoas falam tanto, É só o que podemos fazer, falar, ou nem sequer falar, tudo são experimentos e tentativas”.

Em breve, chegarei aos 40 e depois aos 50, ainda experimentando, ainda tentando. Passarei então John Lennon, outro cabeludo que teve suas tentativas interrompidas antes do tempo e cujas palavras tanto me marcaram, ainda que também apenas reproduzidas. Em um de seus experimentos, ele diz que a vida é o que acontece enquanto estamos ocupados fazendo planos.

Dito isto, 2020 parece ter sido um grande aviso para que eu viva intensamente os momentos, que, afinal de contas, são também a vida.

Perdi minhas palavras, como disse antes, enquanto decidia o que fazer com elas. Quando as reencontrei, não foi mais em mim, nem nos caderninhos que deixei espalhados por aí, mas nas vozes dos que vem comigo, ainda que distantes. Elas estavam também nos silêncios dos que pouco se manifestaram, mas muito disseram; pois se falar é aprender duas vezes, ouvir é aprender a falar.

Termino esse ano sendo menos do que fui e do que tive, mas isso me faz ser e ter mais do que era e tinha. Ainda me sinto inho, mas não tenho mais a pretensão de ser ão. Encontrei palavras, mas não tenho mais a pretensão de que sejam apenas minhas, apesar de usar aqui a primeira pessoa (como me ensinaram) e mostrar minha cara (como praticamente me exigiram).

Olho para dentro e o que vejo é cada um de vocês, que vivem em mim, agora e enquanto me sobrar fôlego.

Restam-me, portanto, muitas esperanças, mas apenas uma ou outra certeza.

Uma delas é a de que, toda terça-feira, ao se aproximar o ocaso, onde quer que eu esteja, através de minhas palavras lembrarei de suas vozes e de seus silêncios, pensando que o sol já se pôs em Fortaleza.

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Gabriel Franklin
(Re)Leituras

Fingindo que estou, sonhando que vou, inventando que volto.