O vazio de Blimunda

Conferência apresentada durante o Colóquio Internacional “José Saramago e o espaço germanófono”, na Goethe Universität, em Frankfurt am Main.

Gabriel Franklin
(Re)Leituras
11 min readFeb 13, 2023

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“Repos dans les récoltes”, William-Adolphe Bouguereau (1865)

Tendo me desculpado, há pouco, pela falta de proficiência na língua alemã, arrisco-me, portanto, ao iniciar esta minha comunicação justamente utilizando-a. No entanto, o risco é baixo e calculado, como verão em instantes, já que se trata de apenas uma palavra: auge (ˈaʊ̯ɡə); palavra esta que, se não estou enganado, em português traduz-se como olho.

Curiosamente, se lermos novamente estas mesmas quatro letras, mas agora com a fonética da língua portuguesa, teremos, então, auge (ˈawʒɨ, como se diz em Portugal, ou ˈawʒi, como se diz na região do Brasil onde nasci), palavra que possui o significado de ápice ou topo.

A referida curiosidade está não somente no fato de o auge humano encontrar-se no seu auge topográfico, mas também na questão, por muitos levantada, de a fonte perceptiva que aquele representa, ou seja, a visão, ser considerada o ápice dos cinco sentidos.

No Novo Testamento, por exemplo, Mateus escreve: “Os olhos são a candeia do corpo. Se os teus olhos forem bons, todo o teu corpo será cheio de luz. Mas, se os teus olhos forem maus, todo o teu corpo será cheio de trevas. Portanto, se a luz que está dentro de ti são trevas, que tremendas trevas são!”

De forma que os olhos, as ditas janelas para a alma, são fonte de virtude, mas também de pecado. É por isso que, no Canto XIII da Divina Comédia, Dante, acompanhado de Virgílio, encontra, na segunda cornija do Purgatório, os outrora invejosos, agora cegos e atados uns aos outros à beira de uma encosta. É como castigo, então, que se tem, na cegueira, a ausência de luz, o exílio e a desconexão com o mundo.

No entanto, o nome que nos une aqui hoje, e cujo centenário celebramos há quase doze meses, nos mostrou que não é necessariamente a escuridão que devemos temer: o excesso de luz também pode ser nocivo, da brancura também pode-se vir a cegar.

Falo, obviamente, de José Saramago e seu Ensaio sobre a cegueira.

Nesse, que talvez seja o livro mais conhecido de Saramago, encontramos a mulher do médico, que recebeu essa denominação simplesmente por ter aparecido (para o autor e para nós, leitores) depois de seu marido, mas que, por uma questão de protagonismo, representação e importância (não necessariamente nessa ordem), há muito que merece levar outro nome, não o seu de fato, que este (como já foi dito em outro lugar, mas pela mesma voz) não conhecemos nem conheceremos; não o seu nome de fato, dizia eu, mas aquele através do qual a ela nos referimos e referiremos. Reformulo, portanto: nesse, que talvez seja o livro mais conhecido de Saramago, encontramos a mulher que vê, única a ter olhos sãos num manicômio repleto de cegos.

Curiosamente (e parece que as curiosidades estão sempre a nos espreitar quando falamos de Saramago); curiosamente, retomo, pode-se refletir que, no universo saramaguiano (e sim, há um universo saramaguiano), a mulher do médico não é a primeira mulher que vê; há outras várias que, vendo, descortinam o oculto das coisas, e que, falando, sustentam o mundo em sua órbita. Entre elas, está Blimunda Sete-Luas, do Memorial do Convento; é sobre ela que quero lhes falar, e sobre olhos, e sobre ápices. Mas antes, devo chamar outra voz para comigo dialogar; uma que fala alemão bem melhor que eu.

Byung Chul-Han, apesar de sul-coreano, fez toda sua carreira filosófica aqui, na Alemanha. Em seus escritos, Han fala das enfermidades fundamentais das quais padecemos, enquanto sociedade e enquanto mundo. “Cada época possui suas enfermidades fundamentais”, diz ele na Sociedade do cansaço; sendo assim, a enfermidade da nossa época, digo eu, parece ser a ansiedade.

Medo, nós sempre tivemos; o que, inclusive, nos moveu a (tentar) entender o mundo em que vivemos. Mas a angústia que oprime, que paralisa e se espalha por todas as esferas de nossa vida, mostra-se como a realidade deste novo milênio, que ora caminha para a metade de sua segunda década.

No que poderíamos chamar de sua Trilogia da Sociedade (composta pela Sociedade do cansaço, Sociedade da transparência e Sociedade paliativa), mas também em outras publicações (como Agonia do eros, A salvação do belo, e Favor fechar os olhos), Han aponta as características desse mundo pós-moderno que nos envolve e nos contamina, que passou da repressão para a depressão.

É um mundo pautado pelo desempenho, onde se substituiu a condenada exploração do outro, pela não menos eficaz exploração de si mesmo; onde a aparência de liberdade proporcionada pela romantização do empreendedorismo e da livre iniciativa neoliberais, na verdade mostra-se tão (ou mais) sufocante quanto a situação proletária do início da Revolução Industrial.

É, também, um mundo pautado pela aparência, onde se substituiu o interior pelo exterior; onde o like é o bem mais valioso que se pode ter, e que se torna a aspiração última de toda uma geração que não sabe mais ouvir os próprios pensamentos (se é que os têm). Num piscar de olhos, passa-se de um perfil no Instagram para um vídeo do TikTok, e, nesse processo, utiliza-se o outro como mero comparativo, e não como meio de constituição do ser.

É, por fim, um mundo pautado pela superficialidade, onde se substituiu o negativo pelo positivo, o áspero pelo liso, o árduo pelo prazeroso; onde se busca a satisfação dos desejos de maneira rápida e fácil, pornográfica, que não deixa espaço para o mistério e a sedutora cadência do erótico. O diferente é agora sinônimo de perigoso; e onde o desconhecido não atrai mais a curiosidade, resta simplesmente o medo do incerto.

Triplamente envoltos, então, pelo cansaço, pela transparência e pelo paliativo, habitamos algo que tomei a liberdade de nomear soci(ansi)edade: um ambiente onde somos atormentados pelas banalidades da própria vida, em um perene estado de urgência. É por causa dela que desaprendemos a estar sozinhos, longe dos holofotes do outro; e, uma vez que a solidão é condição para a vida, desaprendemos, portanto, a viver:

A alma humana necessita naturalmente de esferas onde possa estar junto de si mesma, sem o olhar do outro. Pertence a ela uma permeabilidade. Uma total “iluminação” iria carbonizar a alma e provocar nela uma espécie de burnout psíquico. Só a máquina é transparente; a espontaneidade — a capacidade de fazer acontecer — e a liberdade, que perfazem como tal a vida, não admitem transparência.

Várias são as relações que se podem estabelecer entre o pensamento de Byung-Chul Han e a escrita de José Saramago. Este é, inclusive, o ponto central da tese que venho desenvolvendo na Universidade de Brasília. No entanto, como em meu corpus de pesquisa (que se compõe de apenas quatro obras saramaguianas) não consta o Memorial do Convento, aproveito esta oportunidade para partilhar convosco minhas impressões acerca deste romance. Darei três exemplos, cada um identificado com uma parcela do pensamento de Han.

Comecemos, então, pelas relações de trabalho e poder. Em vários de seus livros, sobretudo em Sociedade do cansaço, Han nos fala do processo de despersonalização pelo qual vamos passando em nossa perambulação através do mundo neoliberal; processo esse que possui dois níveis: o primeiro diz respeito à impossibilidade de identificação material do poder político e da dominação capitalista, no sentido de que, ainda que diante de figuras autoritárias e impositivas, na sociedade do cansaço, o real poder está diluído e oculto, a real dominação parte do próprio dominado. Já o segundo nível, diz respeito à perda, por parte do sujeito, da própria identidade, e, assim, da própria humanidade; na sociedade do cansaço, homens e mulheres, cada vez mais cedo, perdem o nome e, ganhando um número em seu lugar, passam de pessoas a máquinas, o que se encontra longe de ser um avanço, já que, segundo Han, “Apesar de todo o seu desempenho computacional, o computador é burro, na medida em que lhe falta a capacidade para hesitar.”

No Memorial do Convento não há Trumps, Bolsonaros ou Putins, mas há el-Rei e há a Igreja, e entre esses dois, não se sabe qual tem mais e maior poder — à ordem que desce, só se obedece; também não há computadores e aparatos eletrônicos na Mafra do século XVIII, mas há a perda de nomes e sua substituição pelo que a força dos braços pode carregar, pelo que a destreza das mãos pode produzir. No mundo que José Saramago retrata não há ainda neoliberalismo, mas já há, sim, uma sociedade do cansaço.

Não à toa, assim escreve:

tudo quanto é nome de homem vai aqui, tudo quanto é vida também, sobretudo se atribulada, principalmente se miserável, já que não podemos falar-lhes das vidas, por tantas serem, ao menos deixemos os nomes escritos, é essa a nossa obrigação, só para isso escrevemos, torná-los imortais, pois aí ficam, se de nós depende, Alcino, Brás, Cristóvão, Daniel, Egas, Firmino, Geraldo, Horácio, Isidro, Juvino, Luís, Marcolino, Nicanor, Onofre, Paulo, Quitério, Rufino, Sebastião, Tadeu, Ubaldo, Valério, Xavier, Zacarias, uma letra de cada um para ficarem todos representados, porventura nem todos estes nomes serão os próprios do tempo e do lugar, menos ainda da gente, mas, enquanto não se acabar quem trabalhe, não se acabarão os trabalhos, e alguns destes estarão no futuro de alguns daqueles, à espera de quem vier a ter o nome e a profissão.

Esse cansaço não se esgota nas relações de poder e produção, passando também para as relações (im)pessoais, sobretudo as amorosas. Em Agonia do eros, Han aborda o esgotamento sentimental que a soci(ansi)edade nos impõe. Diz ele:

O Eros se aplica, em sentido enfático, ao outro, que não pode ser abarcado pelo regime do eu. No inferno do igual, que iguala cada vez mais a sociedade atual, não mais nos encontramos, portanto, com a experiência erótica, que pressupõe a transcendência, a radical singularidade do outro. O terror da imanência, que transforma tudo em objeto de consumo, destrói a cupidez erótica. O outro que eu desejo e que me fascina é sem-lugar; ele se retrai à linguagem do igual. O desaparecimento do outro é um sinal da sociedade que vai se tornando cada vez mais narcisista; a sociedade, esgotada a partir de si, não consegue se libertar para o outro. É uma sociedade sem eros.

Nesse sentido, a relação que se estabelece entre Baltasar Mateus e Blimunda de Jesus, desde o início, foge da lógica do fugaz. Ao dizerem, um ao lado do outro, seus nomes, o Sete-Sóis que já o era e a Sete-Luas que viria a ser entregam-se um ao outro como a si mesmos. Não importa que ele tenha perdido a mão esquerda na guerra; não importa que ela seja filha de uma degredada para Angola; ambos se amam por serem quem são, iguais por serem diferentes. Se apoiam, esses dois; se salvam, esses dois; comprovam, esses dois, empiricamente, o que Han teorizou quando escreveu: “Para poder pensar, é preciso antes ter sido um amigo, um amante”. O Eros, de fato, vence a depressão.

A prova maior do amor da Sete-Luas e do Sete-Sóis é o que nos leva ao terceiro e último exemplo. Blimunda, como devem saber, possui a especial habilidade de, quando em jejum matinal, ver o interior das coisas. Ao revelar a Baltasar tal prodígio, mas que carrega um quê de maldição, Blimunda lhe faz uma promessa: a Lua jamais olhará o Sol por dentro. Faz isso por amor, mas também por medo, pois não é fácil ver o interior das coisas: vê-se doenças, vê-se segredos, vê-se maldades.

Blimunda come o pão que deixa ao lado da cama para que possa voltar a olhar e não a ver excessivamente, para que possa perceber o contorno das coisas como a luz as revela e não como a escuridão as esconde. Claro que sua habilidade mostra-se de extrema importância para o projeto da Passarola, uma vez que esta, para voar, precisava usar a vontade dos homens e das mulheres como combustível, algo que somente a mulher dos olhos excessivos conseguia ver.

No entanto, a tarefa de Blimunda não era simples: não só devia ser capaz de aguentar os horrores que muitas vezes via, como também o vazio que carregava em si toda vez que empreendia a tarefa de caçar vontades. Não era apenas o vazio do jejum, pois o jejum que lhe conferia o poder da penetração profunda era apenas o matinal, ou seja, quando estava com fome de alimento, mas também de vida, uma vez que o sono é quase uma morte. Tanto que, nos dias em que não iria caçar vontades, ao comer o pão, Blimunda logo olhava em volta, se alimentando também do mundo: o amado ao lado, as poucas coisas que possuía. A mulher dos olhos excessivos, então, se preenchia, de matéria e de espírito; já não estava transparente; estava, de fato, viva.

Faço agora um pequeno parêntese, para depois retomar e fazer meu fechamento. Em seu mais recente livro, chamado As doenças do Brasil, o escritor português Valter Hugo Mãe narra a história do povo abaeté que, apesar de fictício, em tupi-guarani significa “homem verdadeiro”. A sociedade abaeté se divide em três estamentos: as femininas (que são, obviamente, as mulheres), os guerreiros (que são todos os homens, pois todo homem deve guerrear), e, finalmente, os transparentes (que são as crianças). Os transparentes tem esse nome pois não possuem segredos ou pensamentos próprios; ainda estão a acumular palavras da língua abaeté para, só depois de um rito de passagem, poderem juntar suas vozes ao coro e assim entoar junto aos opacos, ou seja, os adultos.

Fiz esse parêntese para dizer que me parece ser essa a chave de leitura para o vazio de Blimunda e, por conseguinte, para o nosso vazio, sobre o qual Byung-Chul Han tanto nos alerta, a ponto de dizer que “estamos por demais mortos para viver, e por demais vivos para morrer”.

Parecemos ser infantes percorrendo um mundo de adultos (os quais não sabemos muito bem quem sejam), sempre deslumbrando-nos com nossos novos brinquedos, buscando prazer da forma mais simples e eficiente, sem preocuparmo-nos com forma ou conteúdo. Somos transparentes porque o nosso vazio vê apenas o vazio do outro. As palavras e as coisas não nos preenchem; assim como fazemos com o ar, devolvemo-las ao mundo tão logo atingem nosso interior. É preciso retê-las; é preciso preencher nosso interior; é preciso ter, ao lado da cama, um naco de pão, ou um livro de José Saramago.

Pois, com suas palavras, Saramago não apenas ilumina o exterior das coisas, mas também inunda o interior de nós mesmos. Num mundo onde o “consumo voraz das imagens torna impossível fechar os olhos”, como diz Han na Salvação do belo, a escrita de Saramago me parece fazer o mesmo que Franz Kafka pretendia com a sua: cria histórias que, diante da fadiga infinita do mundo, são maneiras de fechar os olhos, ou, como o próprio Saramago escreve no Ensaio sobre a cegueira, uma maneira de virá-los “para dentro, mais, mais, mais, até poderem alcançar e observar o interior do próprio cérebro, ali onde a diferença entre o ver e o não ver é invisível à simples vista.”

Ao beber Saramago olhamos não apenas para fora, em direção às luzes que nos cegam; mas, sobretudo, para dentro, voltando-nos para nós mesmos, nos descobrindo enquanto seres humanos. Nesse sentido, seus escritos são testes de empatia (nos moldes do Voight-Kampff que encontramos no Blade Runner, de Philip K. Dick) para saber se continuamos ainda humanos, se já não nos tornamos as máquinas capazes de transparência de que Byung-Chul Han nos fala (e que citei no início desta comunicação); mas também, são testes para sabermos se já nos tornamos opacos, se não continuamos ainda as crianças abaeté que não tem permissão de possuir segredos e pensamentos próprios.

Termino, como não poderia deixar de ser, citando Saramago. Diz ele no Memorial do Convento: “Tudo no mundo está dando respostas, o que demora é o tempo das perguntas”.

Vamos, então, ao tempo das perguntas.

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Gabriel Franklin
(Re)Leituras

Fingindo que estou, sonhando que vou, inventando que volto.