Quase a mesma coisa: a tradução e o problema da equivalência original

Gabriel Franklin
(Re)Leituras
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7 min readJun 18, 2020

é importante perder a lucidez para não existir qualquer necessidade de se ser entendido

“o apocalipse dos trabalhadores”, Valter Hugo Mãe

Nas palavras de Umberto Eco, “[p]arece que não é fácil definir tradução.” E, se assim o mestre italiano diz, quem sou eu para discordar?

Brincadeiras à parte, a questão é realmente espinhosa.

Se você procurar em dicionários, vai encontrar variantes da mesma definição: atividade humana cujo fim é versar algo de uma língua para outra. No entanto, esse conceito encerra a noção de que a tradução procura mediar conflitos e realizar transposições apenas entre sistemas linguísticos.

Mas, aqui, encontramos um problema, e utilizo novamente as palavras do mestre para expô-lo:

Ora, se a tradução dissesse respeito às relações entre duas línguas, no sentido de dois sistemas semióticos, então o exemplo príncipe, insuperável e único de tradução satisfatória seria um dicionário bilingüe. Mas isso parece contradizer, no mínimo, o senso comum, que considera o dicionário um instrumento para traduzir, não uma tradução.

Dessa forma, a tradução ocorre não apenas entre sistemas, mas entre textos. E que textos seriam esses? Ora, todos eles. Cada ato de comunicação nosso é um texto, seja ele oral, escrito, pictórico. E cada vez que nos comunicamos, nós traduzimos, pois

[q]ualquer modelo de comunicação é ao mesmo tempo um modelo de tradução, de uma transferência vertical ou horizontal de significado. Duas épocas históricas, duas classes sociais, duas localidades não usam palavras e sintaxe para significar exatamente as mesmas coisas, para enviar sinais de valoração e inferência. Nem dois seres humanos. (Tradução livre)

Posso, portanto, resumir a questão considerando que a tradução tem duas acepções, ou ordens de significado: uma acepção em sentido estrito (que seria a já mencionada de volteios entre textos de localidades e/ou culturas diversas) e outra em sentido amplo (que lhe associaria à interpretação, e que seria intrínseco à própria comunicação humana).

Neste breve ensaio, quero me concentrar na tradução em sentido estrito, que, por mais que pareça mais concreta do que a acepção ampla, também traz suas complexidades e problemas. Um destes problemas é justamente o da equivalência original, que se resume em três perguntas que procurarei responder ao longo do ensaio.

Se o tradutor navega entre dois textos, ou entre duas culturas, tal qual um barqueiro, pergunta-se: deve ele algo ao texto de origem, ou apenas ao de destino? As palavras do texto traduzido são do autor ou do tradutor? E, finalmente, podemos realmente dizer que lemos algo tendo contato apenas com a tradução?

Castigo Divino

A tradução existe porque os homens falam línguas diferentes. Essa é uma afirmação óbvia, mas que, com a devida reflexão, pode levar a questionamentos de alta complexidade.

Um deles é: por que os seres humanos deveriam falar milhares de línguas diferentes e mutuamente incompreensíveis? Não seria melhor e mais lógico que todos falassem apenas uma língua para facilitar a comunicação, o comércio e tantos outros aspectos da vida cotidiana?

De fato, quando o mundo era jovem, os seres humanos primordiais, nômades, falavam apenas uma língua e viviam em harmonia e compreensão. Ao chegarem a uma determinada região e resolverem lá se estabelecer, uma torre começou a ser construída com o objetivo de chegar aos céus. Deus, ultrajado com a impertinência mortal, fez então com que a língua única se transformasse em várias e, ao derrubar a torre, espalhou os humanos pela terra sem conseguirem se entender.

De acordo com esse mito originário da Torre de Babel, que permeia as culturas ocidentais há mais de dois milênios, a tradução seria fruto de um castigo divino (o que inclusive criou grandes obstáculos aos tradutores durante a Idade Média).

Não quero aqui chegar a conclusões acerca de por que as várias línguas existem, mas sim reconhecer que, uma vez diante do fato de elas existirem, a tradução (castigo divino ou não) é um dos pilares da civilização, sobretudo da ocidental.

A Europa é um continente que nasceu traduzindo e respira tradução, “no sentido de que os grandes textos fundadores são traduções e só existem em tradução, enquanto as grandes traduções são primeiro as dos textos sagrados.”

Diferente de outras tradições culturais, mais centradas nelas mesmas, a Europa tem origem pluricultural. Indo de seu começo mediterrâneo à Idade Média, a Europa não deixou de traduzir, do sagrado ao profano, do latim às línguas vulgares, depois as línguas vernáculas entre si.

A tradução é, portanto, parte primordial da civilização, elemento integrante das superestruturas que compõem a sociedade globalizada em que vivemos.

No entanto, um entrave filosófico se põe em nosso caminho: o que é a tradução de fato? Pode ser ela considerada equivalente ao original?

Quase a mesma coisa

Como falei, a tradução é elemento fundamental no desenvolvimento da civilização, meio de contato entre as culturas. Mas, de forma concreta, qual sua essência? É uma ciência, uma arte?

Não sendo meu objetivo aqui entrar à fundo no mérito dessa questão, que tomaria muito tempo, me contento em afirmar que a tradução é um ato de linguagem, onde o tradutor atua como um intermediário entre o autor e o receptor de um texto (reforçando mais uma vez que tal texto não necessariamente é escrito).

Com essa afirmação, adentramos um dos grandes problemas da teoria da tradução: o da equivalência original.

Se a tradução enquanto ato de linguagem é efetuada pelo tradutor, logo, isso significa dizer que as palavras que lemos em uma tradução são as do tradutor e não as do autor.

Dessa forma,

“[e]m nenhum caso, mesmo quando é excelente, uma tradução pode passar, fazer-se passar pelo original. Ela tem sua própria historicidade. De uma maneira anódina, diz-se que se lê, por exemplo, a Bíblia, em francês. Não, você não lê a Bíblia, você lê uma tradução.”

Os textos originais, portanto, só podem ser acessados nas línguas em que foram idealizados e elaborados. O tradutor (na maioria das vezes) é que tem acesso ao original; o leitor, apenas à tradução.

No entanto, é de se considerar que “a imensa maioria dos homens só tem acesso a tudo que foi dito e escrito pela tradução, salvo para aquilo que é pensado na língua, grande ou pequena, na qual se nasceu, e algumas outras línguas que se pode conhecer.”

Usando mais uma vez a analogia do tradutor como um barqueiro, o passageiro (receptor) só tem acesso a determinadas localidades (textos) por causa do transporte feito (tradução). Se dessa forma não fosse, as pessoas ficariam sempre no mesmo lugar (língua materna) ou conheceriam pouquíssimos lugares novos (línguas possíveis de se aprender).

A questão é que estamos diante de dois fatos: o primeiro de que não podemos conhecer o texto original, a não ser que tenhamos contato com ele na língua em que foi elaborado; e o segundo, de que a maioria dos textos que conhecemos é por meio de tradução e, ainda assim, quando perguntados se conhecemos tal obra, respondemos afirmativamente, mesmo que tenhamos lido apenas a tradução.

Então, como conciliar estas duas realidades?

A tradução como negociação

É possível conciliar a realidade de que o original não pode ser alcançado com a de que o senso comum nos diz que a tradução equivale ao original, através de uma negociação, “um processo com base no qual se renuncia a alguma coisa para obter outra — e no fim as partes em jogo deveriam experimentar uma sensação de razoável e recíproca satisfação à luz do áureo princípio de que não se pode ter tudo.”

As partes dessa negociação são muitas, embora, às vezes, desprovidas de iniciativa:

de um lado, o texto fonte, com seus direitos autônomos, algumas vezes a figura do autor empírico — ainda vivo — com suas eventuais pretensões de controle, e toda a cultura em que o texto foi gerado; do outro, o texto de chegada e a cultura em que se insere, com o sistema expectativas de seus prováveis leitores e por vezes até da indústria editorial, que prevê critérios diversos de tradução conforme o destino do texto de chegada.

O tradutor coloca-se aqui não como um mero barqueiro, que irá fazer o transporte passivo de uma língua para outra, mas como negociador ativo entre todas estas partes reais ou virtuais, num processo onde nem sempre é previsto o assentimento explícito das referidas partes.

O leitor espera, em geral, que a tradução possa lhe dizer da melhor forma possível o que estava escrito no original, e irá “considerar trapaça o corte de trechos ou de capítulos inteiros”, ficará “certamente irritado com erros evidentes de tradução” e “escandalizado se descobrir que o tradutor fez um personagem dizer ou fazer (por imperícia ou por deliberada censura) o contrário do que dizia ou fazia.”

No entanto, como em toda negociação, teremos perdas e compensações, no sentido de que às vezes o tradutor se verá obrigado a “‘cortar’ algumas das consequências que o termo original implicava” ou que irá utilizar a língua de chegada para variar o original (ainda que a regra devesse ser não enriquecer o texto).

A preocupação do tradutor deve ser garantir a equivalência funcional entre o texto original e o traduzido, de forma que o leitor possa (como de fato o faz pelo senso comum) afirmar, quando perguntado, que conhece o original mesmo tendo lido a tradução.

Um caminho sem volta

O estudo da tradução é um estudo da linguagem, uma vez que a tradução está presente dentro das línguas (sentido amplo) e entre as línguas (sentido estrito). Dentro dessa concepção, tendo sido o caminho da tradução o “escolhido” pela humanidade, ele tornou-se inevitável.

O fato de que milhares de línguas estão sendo ou foram faladas e escritas pelos seres humanos apenas enfatiza o eterno enigma da individualidade humana, que deságua sempre na afirmação de que dois indivíduos não podem ser exatamente iguais. Nem dois textos.

Se, numa perspectiva intertextual, temos que nenhum texto pode ser considerado original, sendo fruto de vários outros textos que lhe precederam; numa perspectiva linguística da teoria da tradução, o texto na língua de chegada não poderá nunca chegar ao texto da língua de partida.

A tarefa do tradutor, portanto, é garantir que o novo texto alcance uma equivalência de sentido, de forma que o leitor da tradução possa ter uma experiência semelhante (ou o mais próximo possível) à do leitor da obra original.

Se a tradução é inevitável, também o é a negociação, levando-se em conta que “negocia-se o significado que a tradução deve expressar porque se negocia sempre, na vida cotidiana, o significado que devemos atribuir às expressões que usamos.”

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Gabriel Franklin
(Re)Leituras

Fingindo que estou, sonhando que vou, inventando que volto.