(Re)Desenhando o Real: trauma, fantasia e repetição em Peanuts

Ensaio final apresentado na disciplina “Estudos da Subjetividade”, do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura da Universidade de Brasília

Gabriel Franklin
(Re)Leituras
12 min readMay 31, 2021

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Old man, take a look at my life,
I’m a lot like you
I need someone to love me
The whole day through

“Old Man”, Neil Young

Quando morreu, em fevereiro de 2000, o cartunista norte-americano Charles Schulz, que sempre foi extremamente reservado, levou consigo as respostas para as inúmeras perguntas acerca de sua vida e sua obra: “Quem inspirou a criação de seus personagens?”, “Por que Charlie Brown é tão triste?”, “Como Snoopy deixou de ser apenas um simples cachorro?”.

O que nos resta, desde então, é um imenso quebra-cabeça, composto por 17.897 peças: as tirinhas diárias, escritas e desenhadas apenas por ele, que, em 50 anos de carreira, fizeram com que Schulz se tornasse uma das figuras mais queridas e lembradas do século XX.

Seu público não se limita às crianças (principais consumidores de histórias em quadrinhos), mas também é composto por adultos, tornando Peanuts uma obra de apelo universal.

A chave para decifrar esse enigma pode estar na primeira fase da vida de Schulz, escondida entre dois grandes acontecimentos ocorridos na mesma semana de 1943: a morte da mãe e a convocação para a Segunda Guerra Mundial.

O trauma

Nascido em 1922, período da recessão norte-americana no entre-guerras, Charles Monroe Schulz é fruto da união de duas colônias de imigrantes europeus que procuravam dar às novas gerações o que as anteriores não tiveram condições de lhes proporcionar. Os pais de Schulz, no entanto, apesar de extremamente unidos, não eram conhecidos por sua efusividade afetiva, seja com parentes ou com estranhos.

“Sparky”, como Schulz ficou sendo chamado após um tio lhe dar esse apelido em homenagem a uma tira de quadrinhos famosa à época, cresceu entre as barulhentas reuniões familiares no campo, onde disputava a atenção de sua mãe com os outros membros do clã norueguês, e a fria formalidade da vida na cidade, onde esforçava-se para ganhar o respeito do rigoroso pai alemão:

Em Wisconsin, ele aprendeu a temer a pobreza da qual sua mãe havia saído e à qual ele sentia que sua família poderia retroceder sem a presença lúcida e constante de seu pai trabalhador. (…) Do clã norueguês de sua mãe, ele aprendeu o humor cruel e o ímpeto; de seu pai alemão, o trabalho duro e as relações públicas.

Schulz, portanto, cresceu em meio à insegurança de se fazer notar e amar por seus pais. Os poucos amigos que cultivou ao longo da infância aproximaram-se dele mais por seu espírito competitivo e aptidão para os esportes do que por seu carisma.

Até sair do ensino médio, ele nunca conseguiu abandonar seu apelido de infância ou sua extrema timidez para falar com as garotas. “Ele não conhecia nada sobre as artes do amor e nunca tinha tido uma namorada — apenas paixões platônicas, e nada mais do que encontros para tomar sorvete com as filhas de amigos da família. Sua mãe era a única mulher que importava.”

Quando Schulz estava na passagem da adolescência para a vida adulta, sua mãe foi acometida de grave câncer cervical, que a deixou acamada e com tremendas dores durante praticamente 5 anos, mas ele não soube de fato qual doença trazia tanto sofrimento à ela até bem perto do final.

Iludido com a promessa de melhora, Sparky não conseguiu perceber que, entre idas e vindas ao hospital e doses cada vez maiores de morfina, Dena Schulz ia se despedindo aos poucos de seu único filho, sem conseguir, no entanto, demonstrar expressamente o quanto o amava.

Mais tarde, ele disse: “Nunca vou superar aquele episódio dramático enquanto viver”, e, de fato, ele não conseguiu, até o dia de sua morte. Foi, certamente, a pior noite de sua vida, a noite de “minha maior tragédia” — a qual ele, repetidamente, colocava nos termos de seu veemente sentimento de não realização por sua mãe “nunca ter tido a oportunidade de ver algo meu publicado”.

Na mesma época em que enfrentava a dolorosa perda da coisa que mais amava e precisava no mundo, Schulz viu-se frente a outro grande choque: a convocação para lutar na Segunda Guerra Mundial.

Apesar de sempre ter gostado de praticar esportes e, como dissemos, ter se destacado por sua competitividade, Schulz não se via como alguém que poderia sobreviver à guerra.

Ele estava, portanto, duplamente diante da morte e as consequências desses acontecimentos, que chamou de “dramáticos”, só seriam de fato sentidas muito depois:

Quando pediam que falasse sobre sua vida, ele nunca começava pelo início, com seu nascimento em 26 de novembro de 1922, mas sempre com a morte de sua mãe em 1º de março de 1943, sua própria partida para a guerra e a impiedosa velocidade de tudo aquilo: na mesma semana, Dena Halverson Schulz havia falecido na segunda-feira, sido enterrada na sexta e, no sábado, o exército o levou embora.

Nesse sentido, Bokanowski define trauma como “a ação negativa e desorganizadora da ação traumática’’, e que este “ataca o processo de ligação pulsional, negativizando assim o conjunto de formações psíquicas”.

Martins, por sua vez, pensa o trauma como um problema, e traz a hipótese de que “alguns acontecimentos são responsáveis por promover uma passagem entre elementos do que se poderia chamar de campo não problemático do pensamento para um campo problemático”.

As duas concepções parecem aproximar-se, uma vez que fazem referência à noção freudiana, ainda que posteriormente abandonada, de sedução traumática, da qual resulta a formação “de um conceito fundamental para o discurso e a prática da psicanálise, a saber, o conceito de inconsciente”. (Martins, 2019, p. 4)

O trauma, portanto, age diretamente sobre o que o sujeito elabora a partir de um evento, um acontecimento. Por ser o trauma uma “‘ferida precoce’, um ‘ataque precoce’ ao ego”, a elaboração resultante deste processo tratará de modificar certos elementos para preservar as imagens narcísicas do sujeito.

Tendo em vista essa definição, podemos dizer que o duplo acontecimento marcante no início da vida de Charles Schulz pode se caracterizar como um trauma, que teve profunda influência nos anos posteriores e, consequentemente, em sua obra.

A fantasia

Apesar de ter sido condecorado por bravura, o sargento de artilharia Schulz não voltou para casa ao fim da guerra sentindo-se um herói. Poupado dos piores combates por seu zelo e por sua capacidade de treinar novos recrutas, para sempre sentiria que não fez o bastante, ou que o que chegou a fazer não teve seu valor reconhecido devidamente:

O exército e a guerra tinham cavado uma trincheira que o dividiria desde então: de um lado, o garoto hipersensível e vulnerável que somente a guerra pôde ter consertado; do outro, o homem forte e satisfeito que fora brevemente, mas que poderia ser de novo. Por muitos anos, ele andaria de pernas abertas entre essa linha, fazendo valer os direitos de um ou de outro lado.

A frustração de Schulz era a de que, mesmo com 22 anos e veterano de guerra, ele ainda se sentisse incapaz, uma criança. E, pior, uma criança sem mãe.

Muito depois, ele tentaria explicar sua incapacidade em “expressar frustrações e raiva” através de algo que chamou de “remoção das tampas”:

Somos quase totalmente o que vamos ser no início de nossas vidas. Nossas personalidades e características estão estabelecidas, geralmente quando temos 5 ou 6 anos de idade, mas as tampas estão postas. Somos como bules fervendo no fogão e, quando somos pequenos, os adultos mantêm as tampas colocadas. Quando crianças, não podemos nos expressar do modo como gostaríamos, mas, à medida que crescemos, as tampas pulam para fora e as particularidades ficam à mostra…

Se, por um lado, “a experiência traumática é aquela que não se representa ainda que deixe, inevitavelmente, marcas indeléveis na memória”, por outro, o indivíduo que viveu o “invivível” e que não consegue nomear o “inominável”, tende a procurar formas de narrar o “inenarrável”.

Isto se dá pela necessidade de contar ao outro o que parece impossível de se representar sozinho. Como se, materializando-se o trauma no “real” através da narrativa, o indivíduo pudesse acessá-lo no “inconsciente”, representando-o finalmente (ou ao menos tentando).

Como dissemos, Charles Schulz é fruto de uma época de transformações culturais e sociais, o mundo entre e pós guerras, onde as pessoas estavam aprendendo uma nova forma de se relacionar entre si e com o que consumiam cultural e economicamente.

Em meio a essas novas práticas e sentimentos, as histórias em quadrinhos (especificamente as tiras diárias de jornal) surgem nas primeiras décadas do século XX como um contraponto à literatura e ao teatro clássicos, aproximando-se muito da emergente onda do rádio:

O relacionamento do leitor de jornais diários com seu personagem favorito provou-se único no mundo pensante dos frequentadores de teatros e leitores de romances. O fã de uma tira via seus ídolos não como atores limitados a um mundo fictício que se encerrava quando a edição da manhã embrulhava o lixo, mas como parceiros no andamento de sua própria vida. E, ao contrário das figuras principais de algumas leituras clássicas, aqui estavam presenças novas todos os dias, com a moda e as frases do momento.

Schulz foi captado pela magia e pelo potencial das narrativas em quadrinhos quando criança e, ao realizar seu próprio trabalho depois de voltar da guerra e começar a “remover sua tampa”, levou os sentimentos reprimidos e as lembranças dos acontecimentos inenarráveis à sua arte.

Ao analisar os ditos de Freud acerca das pulsões serem “‘(…) as verdadeiras forças motrizes por detrás dos progressos’”, fica-se com a impressão de certa forma contraditória, da geração do positivo através do negativo. Mas era exatamente essa a situação de Schulz, que se via diante do paradoxal “duplo aspecto que o trauma comporta: a impossibilidade e a necessidade de sua representação”. (Maldonado; Cardoso, 2009, p. 55)

No nível dos processos psíquicos, o trauma, enquanto “excesso sem representação que surpreende e invade um psiquismo despreparado”, gera uma “reação de (auto)destruição” alimentada pela pulsão de morte. No entanto, tal reação é “mais complexa que uma simples ação mortífera, pois revela o objetivo maior de sobrevivência global do psiquismo, como uma morte em favor da vida”. (Oliveira; Winograd; Fortes, 2016, p. 84–85)

Foi “nesse sentido que Lacan propôs a positivação da ideia de pulsão de morte, entendendo-a não como vontade de destruição direta em forma de agressividade — o que seria algo da ordem de seu efeito — , mas como vontade de novos começos, vontade de diferença, ‘vontade de criação a partir de nada, vontade de recomeçar’”. (Oliveira; Winograd; Fortes, 2016, p. 75)

O recomeço de Schulz foi através do que ele mais sabia fazer: a arte. Para tanto, utilizou-se de uma mescla das suas experiências traumáticas com as lembranças que tinha da infância, muitas vezes modificando-as ou até mesmo criando-as, uma vez que as “lembranças ficam, nesse caso, reduzidas à qualidade de impressões e estas são referidas apenas ao prazer ou ao desprazer da experiência vivida”. (Jorge, 2000, p. 56)

A fantasia, que surgiu da sua necessidade de narrar o inenarrável, alimentou os 50 anos de carreira que teria pela frente.

A repetição

Uma vez que o trauma é um excesso de energia não representada, uma “oposição ao princípio de constância”, o produto da desorganização psíquica que se estabelece é o recalque.

Desta forma, o recalque é “uma defesa contra o traumático que deixa as marcas da angústia como herança”. Angústia essa que possui duas origens: “uma consequente do momento traumático e outra como sinal que ameaça a repetição de um tal momento”. (Pisetta, 2008, p. 414)

Preso na eterna insegurança da infância, Schulz escolhe exatamente essa para ser a fase em que irá representar todos os seus personagens:

Posteriormente, também seria 6 anos a idade que Charles Schulz daria a Charlie Brown em seu primeiro despertar para as decepções da vida — uma perda de orgulho tão extrema que até mesmo a Charlie Brown parece desnaturado sustentar tamanho estrago “quando ele tem apenas 6 anos de idade”.

Freud entende que “as fobias têm a natureza de uma projeção devido ao fato de que substituem um perigo interno instintual por outro externo e perceptual” (Freud, 1926/1976, p.149, apud Pisetta, 2008, p. 412).

E, tendo-se em vista que do que é interno não se pode fugir, apenas do que é externo, esse processo de substituição se dá para que o sujeito possa afastar a ameaça que o trauma representa para o seu aparelho psíquico: “Sob a influência automática da compulsão à repetição, a angústia reengendra a repetição da situação experimentada, o que demonstra a inexistência de uma proteção completa ao retorno da situação traumática original e a falha do aparelho psíquico em dominar toda a quantidade de excitação” (Barbosa, 2008, p. 46).

Schulz, então, optou por substituir o perigo interno, do qual não poderia fugir, por uma repetição externa, à qual poderia controlar:

Ele desenhou cada uma das 17.897 tiras — todas sem assistentes. Ainda mais importante: ele nunca usou ideias de ninguém. Cada episódio de Peanuts era dele e dele apenas, iluminando o mundo e, ao mesmo tempo, permitindo — na verdade, dando poder — ao cartunista, de se manter separado dele por uma parede. Para fazer o que fez, ele tinha de estar sozinho, somente a cargo de seu universo modesto mas completo. Uma pessoa mais gregária e mais equilibrada não poderia ter criado o continuamente sofredor mas perseverante Charlie Brown, a brigona e frequentemente malvada Lucy, o filosófico Linus, a sapeca Patty Pimentinha, o decidido Schroeder, e o grandioso e absorto Snoopy. ‘Uma pessoa normal não conseguiria fazer isso’.

O magnetismo exercido pela repetição traumática na arte de Schulz, que alcançava leitores de todas as idades, deve-se, principalmente, ao fato de Schultz dar “às suas crianças insatisfações perenes, coisa que seria reservada apenas aos adultos”, e que, no fim das contas, eram insatisfações e questionamentos do próprio Schulz.

E mais,

[o]s leitores se reconhecem no “coitado, cara de lua, mal-amado, incompreendido” Charlie Brown — em sua dignidade em face de temporadas inteiras de derrotas nos jogos de bola, sua paciência e estoicismo diante dos insultos — porque ele está sempre disposto a admitir que simplesmente o fato de continuar sendo Charlie Brown já é um processo exaustivo e doloroso.

Portanto, “[a] ansiedade é uma reação a uma situação de perigo. Ela é remediada pelo ego, que faz algo a fim de evitar essa situação ou para afastar-se dela… Seria mais verdadeiro dizer que se criam sintomas a fim de evitar uma situação de perigo cuja presença foi assinalada pela geração de ansiedade” (Freud, 1926/1976, p.152, apud Pisetta, 2008, p. 411).

Através de Charlie Brown e sua turma, por 50 anos Charles Schulz lembrou a todos os seus leitores “o que é ser vulnerável, ser pequeno e sozinho no meio do universo, ser humano — pequeno e grande ao mesmo tempo.”

“Que puxa!”

Como explicar que o criador de alguns dos personagens mais reconhecidos e queridos do século XX passou a vida toda achando que não era amado?

Sendo que, para seus milhões de fãs, ao longo de cinco décadas Charles Schulz foi como um vizinho sábio e gentil:

“Pessoas em todos os lugares sentiam como se tivessem crescido com ele, sido curadas por ele na infância, confortadas na adolescência e acalmadas na vida adulta. Indivíduos completamente desconhecidos o consideravam da família.”

Vimos, ao longo deste ensaio, que a chave para explicar esse enigma pode encontrar-se nas situações traumáticas pelas quais Schulz passou no início de sua vida: a perda da mãe e a ida para a Segunda Guerra Mundial.

O impacto desses acontecimentos em um aparelho psíquico já frágil, devido a uma infância que, se não teve grandes privações materiais, não foi menos dotada de insegurança afetiva, foi decisivo para a formação de sua personalidade e do modo como se expressaria através de sua arte.

Schulz não só criou um novo mundo com personagens que, apesar de fictícios, carregavam muito (ou tudo) dele, mas também modificou suas próprias memórias de infância e adolescência, criando assim uma dupla fantasia, repetida ao longo do resto de sua vida.

Foi narrando o inenarrável, através da arte, que Schulz tentou transformar a pulsão de morte em pulsão de vida, recomeçando, ainda que repetindo uma mera fantasia.

Referências

Barbosa, A. C. A. (2008). A angústia como incidência clínica do irrepresentável da pulsão: desamparo, trauma e repetição. Reverso, 30(56), 41–59.

Bokanowski, T. (2005). Variações do conceito de traumatismo: traumatismo, traumático, trauma. Revista Brasileira de Psicanálise, 39(1), 27–38.

Jorge, M. A. C. (2000). Fundamentos da psicanálise de Freud à Lacan. Volume I. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

Maldonado, G., Cardoso, M. R. (2009). O trauma psíquico e o paradoxo das narrativas impossíveis, mas necessárias. Psicologia Clínica, 21(1), 45–57.

Martins, L. P. L. (2019). A Problemática do Trauma ou o Trauma como um Problema em Psicanálise. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 35, e35413.

Michaelis, D. (2015) Schulz & Peanuts: A biografia do criador do Snoopy. São Paulo: Seoman.

Oliveira, M. T., Winograd, M., Fortes, I. (2016). A pulsão de morte contra a pulsão de morte: a negatividade necessária. Psicologia Clínica, 28(2), 69–88.

Pisetta, M. A. A. M. (2008). Considerações sobre as teorias da angústia em Freud. Psicologia: ciência e profissão, 28(2), 404- 417.

Schulz, C. M. (2004–2016). The Complete Peanuts (26 volumes). Seattle: Fantagraphics Books.

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Gabriel Franklin
(Re)Leituras

Fingindo que estou, sonhando que vou, inventando que volto.