(Re)Desenhando o Real: trauma, fantasia e repetição em Peanuts
Ensaio final apresentado na disciplina “Estudos da Subjetividade”, do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura da Universidade de Brasília
Old man, take a look at my life,
I’m a lot like you
I need someone to love me
The whole day through“Old Man”, Neil Young
Quando morreu, em fevereiro de 2000, o cartunista norte-americano Charles Schulz, que sempre foi extremamente reservado, levou consigo as respostas para as inúmeras perguntas acerca de sua vida e sua obra: “Quem inspirou a criação de seus personagens?”, “Por que Charlie Brown é tão triste?”, “Como Snoopy deixou de ser apenas um simples cachorro?”.
O que nos resta, desde então, é um imenso quebra-cabeça, composto por 17.897 peças: as tirinhas diárias, escritas e desenhadas apenas por ele, que, em 50 anos de carreira, fizeram com que Schulz se tornasse uma das figuras mais queridas e lembradas do século XX.
Seu público não se limita às crianças (principais consumidores de histórias em quadrinhos), mas também é composto por adultos, tornando Peanuts uma obra de apelo universal.
A chave para decifrar esse enigma pode estar na primeira fase da vida de Schulz, escondida entre dois grandes acontecimentos ocorridos na mesma semana de 1943: a morte da mãe e a convocação para a Segunda Guerra Mundial.
O trauma
Nascido em 1922, período da recessão norte-americana no entre-guerras, Charles Monroe Schulz é fruto da união de duas colônias de imigrantes europeus que procuravam dar às novas gerações o que as anteriores não tiveram condições de lhes proporcionar. Os pais de Schulz, no entanto, apesar de extremamente unidos, não eram conhecidos por sua efusividade afetiva, seja com parentes ou com estranhos.
“Sparky”, como Schulz ficou sendo chamado após um tio lhe dar esse apelido em homenagem a uma tira de quadrinhos famosa à época, cresceu entre as barulhentas reuniões familiares no campo, onde disputava a atenção de sua mãe com os outros membros do clã norueguês, e a fria formalidade da vida na cidade, onde esforçava-se para ganhar o respeito do rigoroso pai alemão:
Schulz, portanto, cresceu em meio à insegurança de se fazer notar e amar por seus pais. Os poucos amigos que cultivou ao longo da infância aproximaram-se dele mais por seu espírito competitivo e aptidão para os esportes do que por seu carisma.
Até sair do ensino médio, ele nunca conseguiu abandonar seu apelido de infância ou sua extrema timidez para falar com as garotas. “Ele não conhecia nada sobre as artes do amor e nunca tinha tido uma namorada — apenas paixões platônicas, e nada mais do que encontros para tomar sorvete com as filhas de amigos da família. Sua mãe era a única mulher que importava.”
Quando Schulz estava na passagem da adolescência para a vida adulta, sua mãe foi acometida de grave câncer cervical, que a deixou acamada e com tremendas dores durante praticamente 5 anos, mas ele não soube de fato qual doença trazia tanto sofrimento à ela até bem perto do final.
Iludido com a promessa de melhora, Sparky não conseguiu perceber que, entre idas e vindas ao hospital e doses cada vez maiores de morfina, Dena Schulz ia se despedindo aos poucos de seu único filho, sem conseguir, no entanto, demonstrar expressamente o quanto o amava.
Na mesma época em que enfrentava a dolorosa perda da coisa que mais amava e precisava no mundo, Schulz viu-se frente a outro grande choque: a convocação para lutar na Segunda Guerra Mundial.
Apesar de sempre ter gostado de praticar esportes e, como dissemos, ter se destacado por sua competitividade, Schulz não se via como alguém que poderia sobreviver à guerra.
Ele estava, portanto, duplamente diante da morte e as consequências desses acontecimentos, que chamou de “dramáticos”, só seriam de fato sentidas muito depois:
Nesse sentido, Bokanowski define trauma como “a ação negativa e desorganizadora da ação traumática’’, e que este “ataca o processo de ligação pulsional, negativizando assim o conjunto de formações psíquicas”.
Martins, por sua vez, pensa o trauma como um problema, e traz a hipótese de que “alguns acontecimentos são responsáveis por promover uma passagem entre elementos do que se poderia chamar de campo não problemático do pensamento para um campo problemático”.
As duas concepções parecem aproximar-se, uma vez que fazem referência à noção freudiana, ainda que posteriormente abandonada, de sedução traumática, da qual resulta a formação “de um conceito fundamental para o discurso e a prática da psicanálise, a saber, o conceito de inconsciente”. (Martins, 2019, p. 4)
O trauma, portanto, age diretamente sobre o que o sujeito elabora a partir de um evento, um acontecimento. Por ser o trauma uma “‘ferida precoce’, um ‘ataque precoce’ ao ego”, a elaboração resultante deste processo tratará de modificar certos elementos para preservar as imagens narcísicas do sujeito.
Tendo em vista essa definição, podemos dizer que o duplo acontecimento marcante no início da vida de Charles Schulz pode se caracterizar como um trauma, que teve profunda influência nos anos posteriores e, consequentemente, em sua obra.
A fantasia
Apesar de ter sido condecorado por bravura, o sargento de artilharia Schulz não voltou para casa ao fim da guerra sentindo-se um herói. Poupado dos piores combates por seu zelo e por sua capacidade de treinar novos recrutas, para sempre sentiria que não fez o bastante, ou que o que chegou a fazer não teve seu valor reconhecido devidamente:
A frustração de Schulz era a de que, mesmo com 22 anos e veterano de guerra, ele ainda se sentisse incapaz, uma criança. E, pior, uma criança sem mãe.
Muito depois, ele tentaria explicar sua incapacidade em “expressar frustrações e raiva” através de algo que chamou de “remoção das tampas”:
Se, por um lado, “a experiência traumática é aquela que não se representa ainda que deixe, inevitavelmente, marcas indeléveis na memória”, por outro, o indivíduo que viveu o “invivível” e que não consegue nomear o “inominável”, tende a procurar formas de narrar o “inenarrável”.
Isto se dá pela necessidade de contar ao outro o que parece impossível de se representar sozinho. Como se, materializando-se o trauma no “real” através da narrativa, o indivíduo pudesse acessá-lo no “inconsciente”, representando-o finalmente (ou ao menos tentando).
Como dissemos, Charles Schulz é fruto de uma época de transformações culturais e sociais, o mundo entre e pós guerras, onde as pessoas estavam aprendendo uma nova forma de se relacionar entre si e com o que consumiam cultural e economicamente.
Em meio a essas novas práticas e sentimentos, as histórias em quadrinhos (especificamente as tiras diárias de jornal) surgem nas primeiras décadas do século XX como um contraponto à literatura e ao teatro clássicos, aproximando-se muito da emergente onda do rádio:
Schulz foi captado pela magia e pelo potencial das narrativas em quadrinhos quando criança e, ao realizar seu próprio trabalho depois de voltar da guerra e começar a “remover sua tampa”, levou os sentimentos reprimidos e as lembranças dos acontecimentos inenarráveis à sua arte.
Ao analisar os ditos de Freud acerca das pulsões serem “‘(…) as verdadeiras forças motrizes por detrás dos progressos’”, fica-se com a impressão de certa forma contraditória, da geração do positivo através do negativo. Mas era exatamente essa a situação de Schulz, que se via diante do paradoxal “duplo aspecto que o trauma comporta: a impossibilidade e a necessidade de sua representação”. (Maldonado; Cardoso, 2009, p. 55)
No nível dos processos psíquicos, o trauma, enquanto “excesso sem representação que surpreende e invade um psiquismo despreparado”, gera uma “reação de (auto)destruição” alimentada pela pulsão de morte. No entanto, tal reação é “mais complexa que uma simples ação mortífera, pois revela o objetivo maior de sobrevivência global do psiquismo, como uma morte em favor da vida”. (Oliveira; Winograd; Fortes, 2016, p. 84–85)
Foi “nesse sentido que Lacan propôs a positivação da ideia de pulsão de morte, entendendo-a não como vontade de destruição direta em forma de agressividade — o que seria algo da ordem de seu efeito — , mas como vontade de novos começos, vontade de diferença, ‘vontade de criação a partir de nada, vontade de recomeçar’”. (Oliveira; Winograd; Fortes, 2016, p. 75)
O recomeço de Schulz foi através do que ele mais sabia fazer: a arte. Para tanto, utilizou-se de uma mescla das suas experiências traumáticas com as lembranças que tinha da infância, muitas vezes modificando-as ou até mesmo criando-as, uma vez que as “lembranças ficam, nesse caso, reduzidas à qualidade de impressões e estas são referidas apenas ao prazer ou ao desprazer da experiência vivida”. (Jorge, 2000, p. 56)
A fantasia, que surgiu da sua necessidade de narrar o inenarrável, alimentou os 50 anos de carreira que teria pela frente.
A repetição
Uma vez que o trauma é um excesso de energia não representada, uma “oposição ao princípio de constância”, o produto da desorganização psíquica que se estabelece é o recalque.
Desta forma, o recalque é “uma defesa contra o traumático que deixa as marcas da angústia como herança”. Angústia essa que possui duas origens: “uma consequente do momento traumático e outra como sinal que ameaça a repetição de um tal momento”. (Pisetta, 2008, p. 414)
Preso na eterna insegurança da infância, Schulz escolhe exatamente essa para ser a fase em que irá representar todos os seus personagens:
Freud entende que “as fobias têm a natureza de uma projeção devido ao fato de que substituem um perigo interno instintual por outro externo e perceptual” (Freud, 1926/1976, p.149, apud Pisetta, 2008, p. 412).
E, tendo-se em vista que do que é interno não se pode fugir, apenas do que é externo, esse processo de substituição se dá para que o sujeito possa afastar a ameaça que o trauma representa para o seu aparelho psíquico: “Sob a influência automática da compulsão à repetição, a angústia reengendra a repetição da situação experimentada, o que demonstra a inexistência de uma proteção completa ao retorno da situação traumática original e a falha do aparelho psíquico em dominar toda a quantidade de excitação” (Barbosa, 2008, p. 46).
Schulz, então, optou por substituir o perigo interno, do qual não poderia fugir, por uma repetição externa, à qual poderia controlar:
O magnetismo exercido pela repetição traumática na arte de Schulz, que alcançava leitores de todas as idades, deve-se, principalmente, ao fato de Schultz dar “às suas crianças insatisfações perenes, coisa que seria reservada apenas aos adultos”, e que, no fim das contas, eram insatisfações e questionamentos do próprio Schulz.
E mais,
Portanto, “[a] ansiedade é uma reação a uma situação de perigo. Ela é remediada pelo ego, que faz algo a fim de evitar essa situação ou para afastar-se dela… Seria mais verdadeiro dizer que se criam sintomas a fim de evitar uma situação de perigo cuja presença foi assinalada pela geração de ansiedade” (Freud, 1926/1976, p.152, apud Pisetta, 2008, p. 411).
Através de Charlie Brown e sua turma, por 50 anos Charles Schulz lembrou a todos os seus leitores “o que é ser vulnerável, ser pequeno e sozinho no meio do universo, ser humano — pequeno e grande ao mesmo tempo.”
“Que puxa!”
Como explicar que o criador de alguns dos personagens mais reconhecidos e queridos do século XX passou a vida toda achando que não era amado?
Sendo que, para seus milhões de fãs, ao longo de cinco décadas Charles Schulz foi como um vizinho sábio e gentil:
Vimos, ao longo deste ensaio, que a chave para explicar esse enigma pode encontrar-se nas situações traumáticas pelas quais Schulz passou no início de sua vida: a perda da mãe e a ida para a Segunda Guerra Mundial.
O impacto desses acontecimentos em um aparelho psíquico já frágil, devido a uma infância que, se não teve grandes privações materiais, não foi menos dotada de insegurança afetiva, foi decisivo para a formação de sua personalidade e do modo como se expressaria através de sua arte.
Schulz não só criou um novo mundo com personagens que, apesar de fictícios, carregavam muito (ou tudo) dele, mas também modificou suas próprias memórias de infância e adolescência, criando assim uma dupla fantasia, repetida ao longo do resto de sua vida.
Foi narrando o inenarrável, através da arte, que Schulz tentou transformar a pulsão de morte em pulsão de vida, recomeçando, ainda que repetindo uma mera fantasia.
Referências
Barbosa, A. C. A. (2008). A angústia como incidência clínica do irrepresentável da pulsão: desamparo, trauma e repetição. Reverso, 30(56), 41–59.
Bokanowski, T. (2005). Variações do conceito de traumatismo: traumatismo, traumático, trauma. Revista Brasileira de Psicanálise, 39(1), 27–38.
Jorge, M. A. C. (2000). Fundamentos da psicanálise de Freud à Lacan. Volume I. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
Maldonado, G., Cardoso, M. R. (2009). O trauma psíquico e o paradoxo das narrativas impossíveis, mas necessárias. Psicologia Clínica, 21(1), 45–57.
Martins, L. P. L. (2019). A Problemática do Trauma ou o Trauma como um Problema em Psicanálise. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 35, e35413.
Michaelis, D. (2015) Schulz & Peanuts: A biografia do criador do Snoopy. São Paulo: Seoman.
Oliveira, M. T., Winograd, M., Fortes, I. (2016). A pulsão de morte contra a pulsão de morte: a negatividade necessária. Psicologia Clínica, 28(2), 69–88.
Pisetta, M. A. A. M. (2008). Considerações sobre as teorias da angústia em Freud. Psicologia: ciência e profissão, 28(2), 404- 417.
Schulz, C. M. (2004–2016). The Complete Peanuts (26 volumes). Seattle: Fantagraphics Books.