Um menino chamado José

Comunicação apresentada durante o Congresso “Pelos Mares da Língua Portuguesa”, realizado na Universidade de Aveiro

Gabriel Franklin
(Re)Leituras
4 min readMay 5, 2022

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O ano de 1922 foi emblemático aqui, aí e alhures. No mundo, iniciou-se a utilização da insulina para o tratamento da diabetes; houve a prisão de Gandhi por sua resistência pacífica; era encenada a primeira peça de Bertold Brecht, Tambores na Noite. No Brasil, comemorou-se o centenário da Independência; houve a realização da Semana de Arte Moderna, em São Paulo; era fundado o Partido Comunista Brasileiro. Em Portugal, certamente houve vários acontecimentos importantes, e peço desculpas pela minha ignorância sobre a maioria deles. No entanto, de um posso falar, se não com propriedade, ao menos com muito carinho: o nascimento, em Azinhaga do Ribatejo, de um menino chamado José.

Os pais, seu José e dona Maria, ficaram orgulhosos, claro, de seu segundo rebento, sem desconfiar que seria o único que veriam crescer. No entanto, outra Mãe também se alegrou naquele 16 de novembro: a Língua Portuguesa, que via nascer um de seus mais queridos filhos.

O menino chamado José cresceu procurando pelas coisas que teimavam em se esconder de si. Viu, olhou e reparou; tentou, errou e tentou de novo; leu, leu muito, por vezes recluso, por vezes à vista de todos. Inteirou-se não apenas de sua origem biológica, mas também da herança histórica e social que trazia consigo. Aprendeu ofícios e artes, assumindo várias profissões: serralheiro, escrivão, jornalista, tradutor; mas foi na engenharia que realmente encontrou sua vocação. José nasceu para transformar o nada em tudo, para converter o abstrato em concreto, para dar leveza ao muito pesado. José, enfim, nasceu para ser engenheiro de palavras.

Um primo seu, de nome Italo, amado filho da Língua Italiana, certa vez escreveu sobre a busca incessante e meticulosa pelas coisas ocultas e pelo oculto das coisas, sobre a perseguição do algo que escapa à expressão. Ao dizer que somente através do justo emprego da linguagem, ou seja, do delicado e preciso manejo dos nomes (tanto os conhecidos, como os escondidos), algo que resolveu chamar de Exatidão, é que seria possível se aproximar do que a vida comunica sem a utilização de palavras; mal sabia ele que estava se referindo justamente ao que fazia, e faria ainda por muito tempo, o primo português.

José demorou para encontrar seu jeito de escrever sobre e para o mundo; e, quando finalmente o achou, já a meio do caminho, foi chamado por muitos de fantasioso, e de pedante por outros tantos (que às vezes eram os mesmos de antes). Diziam que José escrevia de luvas, como se não quisesse se misturar ou se comprometer com as coisas que dizia pelas mãos; como se, nos volteios que dava, não quisesse mostrar sua cara, ou cara nenhuma.

Estavam todos enganados. Não sobre a parte da fantasia, ou sobre a dos volteios; mas sobre o que aquela e estes significavam. José utilizava-se de despautérios para construir seus enredos, não por não querer representar o real como ele é, mas para realçá-lo lá onde não se consegue chegar. José dava piruetas e cambalhotas com as frases, não por não saber ser direto, mas por não desejar sê-lo. José escrevia de luvas por perceber que a tarefa de lidar com as palavras requer o mais delicado dos toques, a mais sutil das decisões, requer proteção (das mãos e das palavras).

Em suas mãos enluvadas, a nudez forte, que antes era da verdade, ora tornava-se atributo da fantasia; e esta, que dantes cobria-se com um manto diáfano, cedia-o então à descoberta verdade. José, portanto, escrevia não para se excluir da eterna procissão de angustiados chamada vós, mas para se incluir no esperançoso cortejo chamado nós.

A Exatidão de que falou o primo Italo pertence a José, porque José pertence à Exatidão. Sua engenharia de palavras manifesta-se na resinosa mistura de prosa e poesia, que lhe é tão característica, e de onde provém o cimento que unirá, na arquitetura de frases que parecem não ter fim, as pequenas e simples palavras que se justapõem, umas depois das outras, para formar uma grande e maior construção. No canteiro de obras da página em branco, as palavras-tijolo escolhidas pelo engenheiro José não podem ser substituídas por outras, sob risco de tudo vir a desmoronar.

Se é verdade que nos filhos se vê muito dos pais, e, por óbvio, também das mães, em cada linha que escreveu, em cada sinal de pontuação que substituiu por um respiro, em cada conjunção que suprimiu sem medo, em cada preposição que escondeu por trás de um nome, em cada artigo que não colocou por serem as coisas muitas, José, como se tivesse sido escolhido a dedo para isso, parece ter mostrado as pequenas grandes partes ocultas de sua Mãe, não a que lhe deu à luz, mas a que estava lá quando da luz se despediu.

Vocês podem estranhar essa intimidade com que me refiro a José, assim, pelo primeiro nome. São coisas de irmão, sabe? Sim, pois José e eu somos irmãos; temos a mesma Mãe, que, além de nós dois, tem milhões de outros filhos e filhas: Luís, Fernando, Lídia, Valter, João, Clarice, Aline, Emílio, Paulina, Ndalu; tantos e tantas, conhecidos e desconhecidas, que seria preciso bem mais tempo e papel do que tenho aqui para conta-los e dizê-las todas.

Hoje, 5 de maio, vim aqui para falar de um filho que se torna centenário e acabo homenageando uma mãe que já perdeu a conta de quantos Dias teve, internacionais ou não. Sendo assim, viva sempre a Língua Portuguesa: mãe minha, mãe vossa, mãe nossa! E viva também aquele que os outros aprenderam a chamar de Saramago, o que escreve de luvas; mas que, para nós, seus irmãos e irmãs, será sempre José, o engenheiro de palavras.

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Gabriel Franklin
(Re)Leituras

Fingindo que estou, sonhando que vou, inventando que volto.