Um rio chamado Quixote

Ensaio apresentado na disciplina “Fronteiras da Literatura”, do Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília.

Gabriel Franklin
(Re)Leituras
2 min readSep 21, 2020

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O enunciado, enquanto objeto de reflexão filosófico-científica, passa por diversas conceituações e estruturas, modificando-se de acordo com o olhar de quem se debruça sobre ele.

Saussure, por exemplo, pensou-o em relação à língua. Para este, antes do enunciado, a língua não passa de uma possibilidade; depois, manifesta-se como materialização do discurso de um locutor. Falar de um locutor, portanto, demanda pensar também em um ouvinte; razão pela qual se diz que, para Saussure, o enunciado é uma representação simbólica do mundo através da língua.

Para Bakhtin, o enunciado vai além da simples representação simbólica. Na verdade, o enunciado é força criadora. Ele de fato produz efeitos materiais, mas não apenas de manifestação de discurso, como afirma Saussure, mas de efetiva modificação do mundo, seja de quem profere, seja de quem o recebe.

Essa atividade dialógica entre emissor e receptor (que ora chamaremos autor e leitor), tem “três movimentos: o ponto de vista do texto dado [pelo autor]; o movimento para trás — os contextos passados [do autor e do leitor]; e o movimento para frente — a antecipação [do leitor] (e começo de um contexto futuro).”

É nesse contexto que devemos analisar a hercúlea tarefa de Pierre Menard ao tentar “reescrever” os capítulos 9, 22 e 38 do Dom Quixote usando as exatas palavras de Cervantes. O que poderia parecer, à princípio, uma proposta absurda, após o estudo da perspectiva bakhtiniana de enunciado, mostra-se como plenamente possível e até, diríamos, necessária.

A necessidade da reescritura é justificada pelo próprio Menard, quando este afirma, em carta ao narrador, que o Quixote “foi antes de tudo um livro agradável; agora é ocasião para brindes patrióticos, de soberba gramatical, de obscenas edições de luxo.”

As palavras de fato não são posse. Elas são instrumentos de modificação e construção de estados no mundo. Nos utilizamos das palavras, mas não as possuímos; assim como respiramos, mas não nos apropriamos do ar. Uma vez que nos servem o propósito, devolvemo-los, as palavras e o ar, ao mundo. Uma mesma palavra dita por autores diferentes, terá efeitos diferentes. Uma mesma palavra dita pelo mesmo autor, mas em momentos diversos, também terá efeitos diversos.

Se, como nos ensina Heráclito, não podemos nos banhar duas vezes no mesmo rio, também não podemos ler (ou escrever) duas vezes o mesmo texto. Desta forma, as palavras de Menard, ainda que exatamente semelhantes às de Cervantes, jamais poderão ser consideradas as mesmas, pois os três movimentos da atividade dialógica citados acima as diferenciam. Nos dizeres do narrador do conto, “[o] texto de Cervantes e o de Menard são verbalmente idênticos, mas o segundo é quase infinitamente mais rico.”

O Quixote já é outro rio.

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Gabriel Franklin
(Re)Leituras

Fingindo que estou, sonhando que vou, inventando que volto.