A Fragilidade do novo “Cinema-Macho”

André Graciotti
Re visto
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9 min readJan 25, 2016

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Há alguns anos atrás, revi o primeiro Rambo — Programado para Matar (First Blood, 1989) e me surpreendi não só como o título em português e a fama que as sequências deixaram no imaginário popular são uma grande falácia (o primeiro é um excelente filme, ele não mata ninguém e, como se não bastasse, no final original — fiel ao livro e disponível no youtube — ele comete suicídio) mas parecia perfeitamente análogo aos heróis que predominaram no cinema de ação dos anos 2000, que parecia interessado no herói falho, frustrado e decadente. É curioso notar, entretanto, como esta década dos anos 2010 parece ter voltado aos heróis machos e brucutus; intelectualmente estúpidos mas fisicamente intimidadores — que tanto predominaram nas décadas de 80 e 90. Mas será que este resgate tem uma intenção nobre e criativa, tentando trazer um estilo de outrora para uma nova roupagem, traduzida para uma época com novos valores e contexto, ou tem apelo puramente nostálgico e não passam de produtos vazios que, passados o prazer de seu consumo, pouco ou nada sobra em retrospectiva?

Silverster Stallone, mais do que ninguém, já entendeu o apelo que a nostalgia ganhou na indústria cultural. Ignorou sua bizarra aparência e o seu sexagenário para trazer de volta seus personagens mais famosos. Fez um Rambo IV, um Rocky VI e, numa investida mais “ousada”, reuniu todos os grandes astros do cinema de ação das décadas passadas na série Os Mercenários.

Não assisti ao original, mas Os Mercenários 2 prometia uma sarcasmo e uma provável auto-indulgência que, vai entender, me interessou conferir. E de certa forma, não decepciona, principalmente pela leitura que ele permite, com um assumido discurso saudosista, vangloriando não apenas uma época, mas toda uma geração.

A começar pelo fato de que o mais jovem do time de mercenários, cheio de sonhos e planos de vida (ironicamente, o único que pretendia se aposentar), é justamente o que é morto, punido pela ingenuidade e inexperiência, e de uma forma bem…digamos, espalhafatosa.

Enquanto todos são peritos em brigas mano-a-mano e tiros de metralhadora a esmo, o jovem é (era) bom em tiros à distância e precisos — em headshots. É o próprio caráter tecnicista e ingênuo da nova geração, que tem tudo à disposição sem precisar “botar a mão na massa”. Como não poderia deixar de ser, no universo de Os Mercenários, isto não é o suficiente para se manter vivo e se tornar um homem de verdade. Os socos, chutes e tiros de metralhadora são os que garantem toda e qualquer “macheza”. Não há lugar para ataques furtivos, à distância, cautelosos ou minimamente planejados. A investida deve ser evidente, escancarada: Se querem derrubar um helicóptero, arremessam uma moto nele; se querem invadir uma mina, atiram o próprio avião dentro dela. É a glorificação da ignorância; a brutalidade em estado puro como o único método eficaz de prevalência.

Extase nostálgico nível 100

Não por acaso, vem do funeral do jovem a fala central (e ao mesmo tempo mais embaraçosa) de todo o filme. Stallone questiona para si, na mais profunda canastrice: “Porque aqueles que merecem e querem viver são os que morrem, e aqueles que não merecem viver continuam vivos?” (pausa para um rolling eyes…). É uma questão retórica, já que o filme nada mais é do que um encontro nostálgico de gerações — atores e público, daqueles que “continuam vivos” e caminham agora entre uma geração distante de seus valores. Para estes, a juventude atual está “morta”, condenada à vã insignificância, e tudo o que resta é o resgate de uma pureza perdida no passado. A lição de moral do filme, se é que ela existe, é o velho e óbvio “não se fazem mais filmes de ação como antigamente”.

Stallone consegue ir ainda além nas autorreferencias. Não apenas as falas tiram sarro dos memes que seus personagens clássicos se tornaram — com várias referências a Rambo, Exterminador do Futuro ou a impagável cena de Chuck Norris fazendo piada de si mesmo -, como todos os atores se tratam por suas nacionalidades verdadeiras, e acabam não interpretam um personagem, nem exatamente a si mesmos, mas algo intermediário. É uma representação do imaginário consensual do público — especialmente o masculino — que cresceu assistindo-os. Há um fato curioso que provavelmente poucos irão notar: Stallone tira sarro o tempo todo do personagem de Dolph Lundgren, por ser, além de um soldado, especialista em…química. Em determinado momento do filme, todos estão presos nos escombros de uma mina e o personagem de Lundgren tem a ideia de coletar elementos orgânicos prometendo que, ao combiná-los, causaria uma explosão que os tiraria dali. Mas claro que o experimento não funciona e eles são salvos pelo velho e delicado jeitinho da turma: um veiculo que chega destruindo tudo. Toda a sequência seria irrelevante se não fosse por um aspecto interessante: Dolph Lundgren é realmente graduado em engenharia química. É uma tiração de sarro assumida; um exercício de metalinguagem sem limites (e escrúpulos).

Com tantas boas sacadas articuladas através de um texto completamente idiota, acaba sendo uma pena que o filme desperdice a chance de abusar mais do humor e de seus clímaxes (a segunda e última aparição de Chuck Norris não tem o catarse nem o humor da primeira e a esperada luta final com Van Damme é decepcionante).

Cena do diálogo mais longo de The Raid

O ode à pancadaria como o cerne do orgulho e competitividade masculina também é a força motriz do indonésio The Raid: Redemption. Filme sensação em festivais e já com remake confirmado em hollywood, é outro filme-macho à moda antiga. Qualquer traço de enredo é suprido para ir direto ao ponto: porradas e mais porradas. Curiosamente, The Raid funciona muito bem como referência aos videogames (com conflitos episódicos e inimigos que surgem de todos as esquinas e cantos possíveis — e impossíveis) e aos antigos filmes de artes marciais (Jogo da Morte, com Bruce Lee, também explorava o conceito da progressão por andares de um prédio). As lutas impressionam pela rapidez e pelo realismo com que são coreografadas, com um senso de urgência e crueza através da câmera sagaz do ainda iniciante diretor Gareth Evans: em um momento a luta se passa em um cômodo, segundos depois ambos se jogam pela janela, rolam por uma escada de incêncio para voltar ao interior e passar a luta para o andar debaixo. Dinâmica de ação já exploradas por cineastas que alcançaram o mainstream em blockbusters modernos, como Paul Greengrass com a série Bourne, mas aqui vai muito mais além, num ritmo gradualmente brutal e empolgante, sem medo de durar o que for preciso (a luta final tem quase dez minutos).

Melhor, The Raid resgata a boa e velha excitação de coreografias de luta marcantes e um fim épico para os vilões. O público adulto masculino de hoje provavelmente cresceu com grande afeição das grandes coreografias de luta nos filmes de ação (todos certamente lembram até hoje o quão empolgante foi ver as voadoras finais de Van Damme no O Último Dragão Branco, por exemplo), e The Raid o faz com louvor, ainda que o processo até lá seja um tanto desnorteante. É tanta pancadaria ininterrupta, com cabeças na parede, cotoveladas nas costas e joelhadas na testa que em determinado momento é até difícil processar o que realmente está acontecendo e onde eles realmente estão. É de tirar o fôlego, no bom e no mau sentido. É excessivo e ao mesmo tempo necessário, até porque, quando tenta construir um mínimo de história ou relação humana, como a mulher grávida do protagonista e sua relação com um irmão, soa simplesmente raso e pueril.

“deixa que eu abro”

O que sobra em The Raid é o que falta em Dredd, que também investe numa corajosa e surpreendente premissa “enxuta”, indo direto ao ponto (aos tiros e porradas) — e, estruturalmente, é simplesmente idêntico a The Raid — mas acaba decepcionando onde aquele é tão bem sucedido: nas sequências de ação.

É compreensível o entusiasmo dos fãs (do personagem, dos quadrinhos original ou simplesmente aqueles que odeiam o filme de 1995 com Stallone) em ver um filme baseado numa HQ com uma pegada tão low-budget, simplista e quase “B”, o que justifica a boa aceitação do filme. Intenções louváveis, sim, mas é inevitavelmente decepcionante a falta da busca por uma excitação maior, por uma mis-en-scene que traga algum planejamento e elaboração visual. Nem mesmo quando o Juíz Dredd confronta outros juízes como ele, não há um mínimo de inspiração e um senso de coreografia ou vibração.

Vale notar que a posição da mulher em Dredd, mesmo que aparente ser a verdadeira protagonista, não difere muito do lugar machista clássico dos outros dois filmes: o do mero suporte masculino ou de vítima. A novata que acompanha o Juíz tem poderes psíquicos (sensibilidade feminina?), enquanto Dredd é apenas razão e força, e que — mais uma vez — é o que garante o sucesso da empreitada. Enquanto ela pode entrar na mente dos criminosos (que sempre a ameaçam com o apelo sexual) ela não é capaz de evitar que cometa erros, na lógica do filme, graves: perder a arma e deixar ser capturada. Já Dredd, quando está em apuros, conta com toda a força bruta possível. Se a munição parece estar chegando ao fim, ele não elabora um plano para escapar da situação, mas usa logo a única bala que resta: a que explode a cabeça do oponente. O outro personagem feminino importante é a grande vilã do filme, mas que não passa de uma grande caricatura masculinizada e, por isso, nem é preciso dizer, é mais macho que todo mundo.

Sexismos à parte, Dredd tem o grande mérito de trazer frescor às produções baseadas em quadrinhos, indo no sentido contrário às tendências das grandes produções, mas não deixa de ser decepcionante ver uma grande premissa enfraquecida pela carência de boas ideias para desenvolvê-las (e exibí-las).

Voltando à questão do primeiro parágrafo, todos os três filmes tem qualidades e conseguem com eficiência resgatar uma época esquecida, vangloriar o machismo heróico, entreter toda uma platéia masculina e podem, talvez, com alguma sorte, até mesmo influenciar produções futuras do gênero. Mas é inevitável a sensação de que ainda falta algo, uma vontade de dizer “algo mais”, algum propósito ou discurso por trás do sangue e da pancadaria toda. O diretor de Os Mercenários 2, Simon West, por exemplo, entende bem do assunto “pancadaria”, mas pela sua filmografia (que inclui Con Air e Tomb Raider), ele parece investir no “duvidoso” no mesmo grau.

Não.

O novo-velho “cinema-macho”, mesmo com tanta robustez, parece, por enquanto, sucumbir à sua própria fragilidade: a falta de alguma substância, uma vontade maior de perdurar. Não se trata de uma suposta “profundidade”, mas de um propósito maior que não se limite à simples homenagem e ao deleite da nostalgia. Ainda estão longe do cinema de ação com o vigor e a grandiosidade épica de um John Mctiernan (Duro de Matar, Predador, O 13º Guerreiro) ou do recém-falecido Tony Scott (Top Gun, Dias de Trovão, Deja Vu); a sutileza sempre existencial e satírica de Paul Verhoeven (Robocop, Tropas Estelares, O Homem sem Sombra); e mais distantes ainda das temáticas complexas de um Nicolas Winding Refn (Drive, Bronson, Vanhalla Rising), que explora sempre a brutalidade da figura do macho-herói com propriedade e estilo tão singulares, ou mesmo Kathryn Bigelow (Caçadores de Emoção, Guerra ao Terror), que investiga o macho de moral corrompida pelo vício ao ofício — e que, curiosamente, parece entender do universo masculino melhor do que muito marmanjo.

O bom “cinema-macho” de ação ainda parece ser para poucos realizadores, contrariando a simplicidade que aparenta. Pode até ser que o lugar desses novos filmes, que Mercenários 2, The Raid e Dredd representam, seja também o da recordação, em remakes, homenagens ou referências daqui a algum tempo, ainda que, por enquanto, o esquecimento imediato seja seu lugar mais provável. ■

PS update: Que fique claro, a mesma crítica não vale para The Raid 2, que é simplesmente um dos filmes de ação mais AWESOME de todos os tempos.

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