SAÚDE MENTAL

A covid chegou à cabeça

Uma das consequências do embate ao coronavírus foram os impactos mentais, o que se refletiu no aumento de 17% no consumo de medicamentos controlados no Brasil segundo dados do Conselho Nacional de Farmácias

Ângelo M. Rockenbach
Realidades Invisíveis

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Reprodução: Pexels / Pixabay

“Eu tava perdido em muitas coisas. Eu não conseguia focar meu pensamento em olhar pra frente. Eu ficava muito inseguro. E aí vai crise, vem crise, meus pais, meus amigos falaram: ‘bah, sozinho tu não vai sair dessa’. Foi muito mais um incentivo dos outros, mas partiu de mim. Quando eu pensei ‘não dá mais’, eu fui procurar ajuda mesmo.”

Assim como Bruno*, 18 anos, morador de Teutônia, no Rio Grande do Sul, milhões de brasileiros tiveram implicações na sua saúde mental a partir da pandemia do coronavírus. Uma pesquisa realizada pelo Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), realizada entre março e abril de 2020 em 23 estados brasileiros, constatou aumento de 80% dos diagnósticos de ansiedade, enquanto os casos de depressão dobraram. Já um estudo da Universidade de São Paulo (USP), divulgado em fevereiro, concluiu, após cruzamento de dados de 11 países, que o Brasil é o líder em ocorrências de ansiedade (63% da população apresenta sintomas) e depressão (59%) na quarentena.

“É uma angústia muito grande quando tu não sabe mais o que fazer da vida”. -Bruno*

Mestrando em Psiquiatria e Ciências do Comportamento na Universidade Federal do rio Grande do Sul (UFRGS) e médico psiquiatra residente em Psiquiatria da Infância e Adolescência na Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), Daniel Arenas entende o fenômeno como resultado de alguns fatores. “A preocupação consigo, com o vírus, com os familiares, a preocupação com a questão econômica, muita gente perdeu o emprego, muita gente teve que mudar as formas de trabalho, e acho que tudo isso acaba contribuindo bastante para as pessoas adoecerem.”

No caso de Bruno, o término de seu namoro, o ingresso no curso de Ciências Contábeis na Universidade do Vale do Taquari (Univates) em EAD, a tensão pelo alistamento militar, a sua entrada no mercado de trabalho e o seu histórico de déficit de atenção e hiperatividade foram fatores que o levaram a ter sintomas de ansiedade e depressão. Bruno conta que, logo que foram decretadas medidas de isolamento, ficou um mês e meio sem sair de casa. Acostumado a sair com os amigos, o estudante afirma que o nervosismo se tornou recorrente em seu cotidiano: “Me sentia meio nervoso com relação a tudo. Ficava realmente muito ansioso, porque parecia que as coisas não se resolviam, e aí é uma angústia muito grande quando tu não sabe mais o que fazer da vida”.

Bruno é um dos milhares de brasileiros que iniciaram tratamento medicamentoso na pandemia. Um levantamento do Conselho Nacional de Farmácias mostra que quase 100 milhões de caixas de medicamentos controlados foram vendidas em 2020 no Brasil, o que revela aumento de 17% na comparação com 2019. Os dados de comercialização do Rivotril, ansiolítico de tarja preta, comprovam aumento de 22%, saltando de 4,6 milhões no bimestre de março e abril de 2019 para 5,6 milhões de caixas nos mesmos meses de 2020 segundo o Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos. Os dados da Associação Brasileira das Indústrias de Medicamentos Genéricos mostraram que a venda de antidepressivos genéricos teve aumento de 27% de janeiro a setembro, em comparação ao mesmo período de 2019.

Esse crescimento é deflagrado há anos. Um estudo revelado em janeiro de 2020 pela Funcional Health Tech revelou que, de 2014 a 2018, o consumo de antidepressivos cresceu 23% no Brasil. “Comparando esse aumento que já vinha se tendo antes, deu um impulso, realmente parece que a pandemia foi um catalisador importante”, diz o psiquiatra Daniel, que ainda alerta: “Inclusive tem até alguns setores se preocupando com a questão de que talvez pra frente vá faltar profissionais para atender a demanda”.

Produtividade

Daniel acredita que um dos fatores preponderantes do fenômeno foi a adesão ao home office, que intensificou a dupla jornada, em que os limites entre as atividades domésticas e laborais foram borrados: “O mercado continua cobrando a mesma produtividade, senão mais. Não existe pausa no home office. Às vezes tu não tá mais no teu horário de trabalho e aquela demanda continua chegando”. O psiquiatra destaca que 2020 bateu recorde de pedidos de afastamento de trabalho no Instituto Nacional do seguro Social (INSS) por transtornos mentais. Foram 576,6 mil afastamentos segundo a Secretaria Especial de Previdência e Trabalho.

A queda da produtividade do trabalhador devido à exaustão mental é nítida. “Ficar na frente do computador estudando ali assim é muito difícil pra mim. É uma coisa que eu não rendo, não aprendo tanto quanto o presencial”, diz Bruno. O estudante de Ciências Contábeis fala sobre a dificuldade em pegar um ritmo produtivo em seu trabalho na empresa da família: “Eu tava trabalhando há um mês, tava pegando o jeito, e tivemos que parar. Eu perdi todo o ritmo e agora eu tô recuperando”.

Reprodução: Pexels / Ketut Subiyanto

Crises

“Eu me sentia muito inferior às pessoas, ficava pensando que não era suficiente.”- Bruno*.

Bruno sofre com mudanças de humor repentinas. Em questão de minutos, sua cabeça é inundada por sensações ruins e nervosismo. É uma crise de ansiedade pedindo passagem. O jovem explica o que sente nas crises: “A minha cabeça, ela acelera, ela acelera muito, não entendo mais o que eu tô pensando. Só começa a vir um monte de nome, cena, fala… Aí começa tudo a embolar, e aí eu travo. Eu, literalmente, travo. Não consigo falar, não consigo me mexer. Só fico na minha até passar. E nesses momentos eu acabo sendo muito…como eu posso dizer?… meio grosseiro. Eu meio que não penso no que eu tô falando. Eu tô só soltando”.

Bruno conta que tremia e chorava muito nesses momentos. “Vinha um sentimento ruim, um aperto no peito. E era uma sensação de estar perdido, não saber pra onde ir”, completa. Ele explica que os “gatilhos” que desencadeiam uma crise podem surgir a qualquer momento: “Até hoje, na verdade, eu oscilo bastante com isso. Às vezes eu tô tranquilo, lembro de alguma coisa, só por lembrar mesmo, o sentimento vem”. Então, o estudante passa a ter pensamentos depressivos: “Eu me sentia muito inferior às pessoas, ficava pensando que não era suficiente. Não ia dar conta de… talvez… basicamente tudo”.

Daniel entende esse como um processo comum, ressaltando que depressão e ansiedade andam lado a lado: “Em geral, a pessoa deprimida vai ter sintomas de ansiedade e as pessoas ansiosas vão ter sintomas de humor”. O psiquiatra ainda destaca outros efeitos, como o aumento do consumo de álcool e drogas, da dependência de tecnologia e de transtornos de sono.

Amazonas lidera crescimento

“A gente vive uma crise sanitária cobrindo uma que é também social.” -Marck de Souza Torres, professor da Faculdade de Psicologia da UFAM.

Um levantamento do Conselho Federal de Farmácias detectou os estados em que houve os maiores aumentos percentuais no consumo de antidepressivos em 2020: Ceará e Amazonas, com 29%. O professor da Faculdade de Psicologia da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) Marck de Souza Torres vê que o aumento no Amazonas vai além das dificuldades no combate à pandemia: “O modelo de assistência à saúde mental que a gente tem na região Norte, como um todo, que é esse modelo biomédico, é o de uma psiquiatria mais voltada para a parte de medicamentos.” Ele explica que em outras regiões do país os psiquiatras têm normalmente formação na psicologia clínica, ou seja, são terapeutas e, na opinião de Marck, ficam mais preparados. “Aqui na região Norte, é muito comum que a gente tenha psiquiatras apenas de base biomédica, do protocolo biomédico. A gente não tem ainda uma psiquiatria dinâmica, uma psiquiatria que escute a história das pessoas, uma psiquiatria que se preocupe com o sofrimento e com os determinantes sociais dos adoecimentos psíquicos.”

Marck, que também é coordenador do Serviço de Acolhimento Online da UFAM, destaca que a pandemia aflorou estigmas, como a desigualdade social e a proliferação das fake news, e evidenciou os problemas econômicos, de planejamento político e logístico, de políticas de saúde e de assistência social. Todo esse cenário de insegurança, somado a questões intraespecíficas, como a variedade de personalidades, de jeitos de resolver problemas e de mecanismos de defesa, afeta na saúde mental do indivíduo. “A gente vive uma crise sanitária cobrindo uma que é também social”, analisa o professor.

Comércio a céu aberto em Manaus |Divulgação: IMF / Raphael Alves

*Nome trocado a pedido do entrevistado

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