Cultura

Arte e a (des)colonização do inconsciente

Entenda a importância sociocultural presente nas representações visuais em primeira pessoa de corpos negros

Paulo Henrique Chalmes
Realidades Invisíveis

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“Meus manos, minhas minas, meus irmãos, minhas irmãs e meus cães”, pintura de Maxweell Alexandre para exposição de “Pardo é papel” no Instituto Inclusartiz. | Foto: Reprodução/Instituto Inclusartiz

“Os negros passaram a projetar sua voz, a se entender e se orgulhar, assumindo seu nariz, seu cabelo e construindo sua autoestima por enaltecimento do que se é, de si mesmo”, afirma o artista visual Maxwell Alexandre no testemunho para o catálogo da Fundação Iberê sobre sua exposição itinerante “Pardo é papel”. As telas do carioca de 31 anos, nascido e criado na Rocinha, ocuparam as largas salas da Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre, até o final de fevereiro deste ano.

As obras de Maxwell, artista negro convidado a atravessar as portas do Iberê para preencher as paredes do espaço com seu trabalho, traduzem o anseio de retratar esses corpos naturalmente marginalizados, na contramão dos espaços e narrativas em que geralmente lhes são atribuídos. E, principalmente, reacendem um significativo debate: a importância e o peso de corpos negros serem representados por artistas negros.

O Imaginário Social

Os estereótipos e a construção do imaginário da sociedade em torno de corpos pretos não são meras obras da casualidade ou coeficientes resultantes do destino. Sobretudo, são consequências de uma série de fatores enraizados e instituídos socialmente. Nesse sentido, é necessário refletir sobre o papel desempenhado pelos retratos e as narrativas presentes por trás das imagens das quais o inconsciente social possui alcance. O imaginário que constrói-se acerca das coisas, das pessoas, dos lugares, é diariamente alimentado pelas imagens que se tem acesso. Em que lugar ou a que estreito é limitada a presença de corpos negros nas representações visuais?

“Não foi pedindo licença que eu chegamos até aqui”, pintura de Maxwell Alexandre para exposição de “Pardo é Papel” | Foto: Reprodução/Instituto Inclusatriz

“De modo que continuam a retroalimentar aquelas primeiras imagens, que colocam o negro africano como primitivo e selvagem e a mulher negra como lasciva e com a sexualidade desviante” -Izis Abreu, curadora do MARGS.

Mestranda em História da Arte pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e curadora do Museu de Arte do Rio Grande do Sul (Margs) desde 2018, Izis Abreu aponta que é exatamente esse o questionamento que moveu o seu interesse pelo tema e fez com que ela investigasse a fundo essas questões para a sua dissertação. “Os corpos negros sempre foram representados nas telas de uma forma estereotipada, e esse estereótipo por muito tempo foi negativo”, declara a pesquisadora.

Historicamente, essas representações visuais — vítimas de signos imagéticos sempre feitos pelo olhar colonizador — atuam como marcadores sociais para pessoas negras, e, com o passar do tempo, desenvolvem mecanismos de sobrevivência. “De modo que continuam a retroalimentar aquelas primeiras imagens, que colocam o negro africano como primitivo e selvagem e a mulher negra como lasciva e com a sexualidade desviante”, afirma a mestranda. Ela diz que é necessário reconhecer os trabalhos e as produções ligadas ao campo das artes visuais produzidos por artistas negros, que na contemporaneidade travam uma batalha árdua e lenta para um caminho de “quebra” e desconstrução desses estereótipos negativos. E, por esse motivo, de acordo com a pesquisadora, a classe identifica como urgente que o número de artistas a ocuparem esses espaços de notoriedade, na tentativa de desenhar uma narrativa inversa ao que foi reservado para os corpos negros na história da arte brasileira, seja maior do que ocorre atualmente.

A construção de um novo olhar

Laerte Pacífico, artista visual e também natural da Zona Norte da capital Fluminense, percebeu no período de isolamento social a possibilidade de retomar e explorar sua relação com a arte. Através de suas telas e representações figurativas de corpos negros, o jovem artista contribui intuitivamente para a construção de um novo imaginário sobre o papel do negro na estrutura social brasileira. “Minha intenção é provocar o questionamento e, de certa maneira, fazer um convite para pessoas brancas refletirem sobre esses padrões, ao mesmo tempo que ofereço para pessoas pretas um espaço de reconhecimento e pertencimento”, pondera Laerte.

Tela com representação figurativa, por BREDNATELLA. | Foto: Brendon Rei de Jesus

É evidente que essas representações visuais, em que pessoas negras agarram o poder de retratarem suas singularidades, seus corpos e suas realidades, divergem da narrativa modernista e secular da história da arte brasileira, que durante muito tempo limitou e restringiu o negro a específicas performances sociais. “Então parte daí a questão: se vivemos em uma sociedade racista, isso também afeta as nossas representações”, confirma Laerte.

Essas pinturas, retratos e representações no ambiente visual exercem a potência de inversão à lógica modernista, que construiu e consolidou um espaço de subalternidade e subserviência para os negros dentro e fora das telas. “O acesso à arte está concentrado na elite, e não são pessoas negras que ocupam esse lugar como agentes, artistas. Então, quais são as relações que essas pessoas têm com as pessoas negras, por exemplo? São relações de propriedade, então esse olhar está completamente contaminado por isso, e as representações tornam-se apenas consequência”, reitera Izis.

Inversão na lógica de exploração da imagem

“Nunca me via como agente, porque eu não tinha esse respaldo da academia”-Brendon Rei de Jesus, artista visual.

O retrato produzido pelo artista negro e a sua ação enquanto agente ativo, para além de levantar questionamentos sociais e subverter a padronização da representação estereotipada, também apresentam-se como uma forma de validação das vivências e particularidades desses corpos essencializados, anteriormente resumidos a ações estereotipadas. “Enxergo a ocupação desse espaço de poder como uma mudança na lógica da exploração da imagem, o negro como sujeito ativo”, relata Brendon Rei de Jesus. O artista visual admite que está presente no modo de enxergar a arte, a partir desse prisma, a potência motriz que traz vida e promove a essência nos retratos em primeira pessoa que ele desenvolve no seu ateliê na Zona Leste de São Paulo.

“Nunca me via como agente, porque eu não tinha esse respaldo da academia”, desabafa Brendon. O baiano de 25 anos levanta uma reflexão expressiva, que mais uma vez retoma as barreiras do elitismo e o acesso de artistas negros a espaços de poder nas configurações hierárquicas no contexto de produção da arte visual brasileira.

Telas com representações figurativas, por BREDNATELLA. | Foto: Brendon Rei de Jeus

Essas relações de dominância incorporadas socialmente também contribuem para a eclosão de expectativas mercadológicas, quando o assunto é artistas negros que chegaram até o ambiente formal do museu para exporem suas narrativas e proporem novas estéticas visuais com relação aos corpos pretos. “Tenho o sentimento de que eles padronizam a [nossa] arte para que as pessoas de classe média alta não sintam-se culpadas ao consumir. Quando nos dão espaço, esperam que sejamos necessariamente Basquiat´s da atualidade”, lamenta Brendon.

“É como se a academia e uma parcela da sociedade não estivessem prontas para escutarem o que meus quadros — e a minha arte — têm a denunciar”, exalta Pacífico. Muitas vezes, o sentimento desses artistas é de que existe uma certa espetacularização do mercado quanto às suas produções e uma necessidade de monetizar pautas que estão em voga. Ao contrário do real interesse de apresentar imagens que deturpem os estigmas anteriores ao processo de popularização das representações em primeira pessoa por artistas negros. Para além disso, Brendon percebe que é como se existisse a necessidade de ainda sublinhar o artista negro como dissociado dos meios formais de estudo da arte, reservando um aprisionamento identitário para esses artistas.

“Precisamos definir o lugar de onde estamos falando, porque isso influencia nas nossas representações”, aponta a pesquisadora Izis. Em harmonia ao que é pontuado pela curadora, no livro “Black looks: Race and Representation” (Olhares negros: Raça e Representação), bell hooks discorre sobre a importância desempenhada pelas representações visuais de corpos negros nas produções imagéticas e midiáticas. A escritora alerta sobre a necessidade de trabalhar o “olhar” a partir de uma perspectiva política, e, desse modo, avançar para a construção de olhares opositores. Olhares opositores esses que precisam perceber as nuances evidentes nas representações visuais — em particular, no que as representações em primeira pessoa de artistas negros têm a dizer — e, sobretudo, descolonizar o inconsciente e o imaginário social acerca dos espaços resguardados para corpos negros dentro e fora das telas.

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