Exército

Chegou a minha vez

Como é uma seleção para o serviço militar obrigatório no interior do Rio Grande do Sul

Guilherme Freling
Realidades Invisíveis

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Foto: Guilherme Freling

Passava do meio-dia quando o ônibus saiu de Horizontina, interior do Rio Grande do Sul. Lotado, conduzia mais de 50 jovens para cumprir, em Itaqui, a segunda etapa de seleção para o serviço militar obrigatório. Na bagagem, além do necessário para cinco dias longe de casa, levavam apreensão e ansiedade acerca do destino que teriam no próximo ano. Eu era um deles.

Itaqui é uma cidade de cerca de 40 mil habitantes, no oeste do estado. Lá, fica o quartel do 1º Regimento de Cavalaria Mecanizada (1º RCMec), onde se apresentam os jovens das cidades de Horizontina, Três de Maio, Independência, Dr. Maurício Cardoso, Boa Vista do Buricá, Maçambará e da própria Itaqui.

Na primeira etapa, ocorrida no ano passado nas cidades de origem dos alistados — no meu caso, em Horizontina –, algumas pessoas foram dispensadas. O tenente-coronel Gilton Oliveira Alanis, presidente da Comissão de Seleção Permanente da região de Porto Alegre, afirma que essa etapa tem procedimentos pouco criteriosos. “No quartel, porém, é realizada mais uma seleção, um pouco mais rigorosa, e aí sim a gente vai saber quem vai servir ou não.”

Embora de outra região, o tenente-coronel explica que esse procedimento em duas fases é padrão para todos os jovens em idade de recrutamento. No estado do Rio Grande do Sul, 3º Região Militar, 52 mil jovens apresentaram-se para o serviço militar em 2020, segundo ele. Desses, cerca de 18 mil foram incorporados para o efetivo temporário neste ano, após passarem pelo processo seletivo.

Era segunda-feira, 22 de fevereiro. Estávamos a caminho para Itaqui e do pior momento da pandemia, até então, no estado. A semana seguinte registrou recordes tanto nos números de infectados quanto no de mortes. Segundo o painel do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), foram 36.328 novos casos e 590 óbitos. No dia 29, o governo estadual colocaria todas as regiões epidemiológicas em bandeira preta, a mais dura do modelo de Distanciamento Controlado, e suspenderia temporariamente a cogestão regional.

A despeito disso, máscaras rareavam; distanciamento inexistia e a viagem era demorada. O trajeto dura cerca de seis horas de ônibus e, aos poucos, saíamos do conforto familiar de casa e éramos inseridos numa planície sem fim e pouco acolhedora.

Acesso ao pátio do quartel do 1º Regimento de Cavalaria Mecanizada, em Itaqui | Foto: Guilherme Freling
Acesso ao pátio do quartel do 1º Regimento de Cavalaria Mecanizada, em Itaqui | Foto: Guilherme Freling

A caserna

Chegamos no fim da tarde. Minha primeira interação foi com um soldado: “Vocês são da serra ou da cidade?”, perguntou. Eu, fazendo um esforço para lembrar das aulas de geografia, pensei: “Serra? Não, sou do noroeste do estado. Planalto. Será que eles recebem recrutas da serra?”. Mas, não querendo pôr um pé fora da linha e causar problemas, fui seco: “Não, sou de Horizontina”. A resposta veio no mesmo tom: “Então tu é da serra. Da cidade é quem é de Itaqui.”

Aprendi logo que adentrava uma realidade diferente. A linguagem era própria, o comportamento, o jeito de andar, de responder. O tenente plantonista do esquadrão em que ficamos alojados fez questão de nos lembrar: “Aqui é sim, senhor, ou não, senhor. Sem gracinha, sem joinha. Se alguém chamar vocês, respondam correndo.”

Arquibancadas em que esperávamos durante os dias | Foto: Guilherme Freling

A caserna tem rotina própria. Nós, os intrusos, tivemos que nos adaptar a ela: às 6h, alvorada. Rapidamente, estávamos em pé, fazendo higiene, arrumando os beliches e partindo para o café da manhã. Em formação, como diziam, saíamos juntos, vestidos com calça jeans e camiseta branca, em direção ao refeitório do quartel.

Pão, queijo, café e leite era a base do desjejum. Nas mesas, também havia pratos com doce de leite ou margarina. Isso que mantinha a tropa alimentada até o almoço. Diego Gabriel Sartori, de Horizontina, estudante de design e um dos colegas que foram fazer a inspeção, conta que gostou da comida. “Eu achava que ia ser ruim, mas foi bem boa. Fome ninguém passou.” Feijão e arroz eram pilares no almoço e na janta; já salada e proteína variavam todos os dias. Esses eram os únicos momentos em que se podia entrar em contato com quem fosse de outra cidade.

Entre as refeições, a tarefa dos militares era manutenção e segurança das instalações. Já a nossa era esperar numa arquibancada do esquadrão. Sem uma distração, o tempo parecia não transcorrer como devia. Unhas roídas, pernas inquietas e abundância de perguntas aos praças indicavam o estado de nervosismo de quem não sabia se teria que servir ou não. Para alguns, a saída era fumar. Sem titubear, baixavam suas máscaras, formavam uma roda e colocavam em prática a comunhão do cigarro.

Depois da janta, estávamos liberados. Retornávamos ao esquadrão para tomar banho, falar com os familiares, ou apenas continuar conversando. Às 22h, atazanados pelos mosquitos, dormíamos.

Limpar o banheiro e as instalações era tarefa diária, principalmente para os voluntários | Foto: Guilherme Freling

O processo

Os rumores surgidos na terça só foram confirmados na quarta pela manhã: era hora da nossa inspeção. Até então, não tínhamos feito nada além de esperar. No ginásio e com grande distanciamento, passamos por processos semelhantes àqueles ocorridos em outubro. Formulário, inspeção de saúde e entrevista. Receosos de ter que servir, muitos buscaram algo que justificasse uma dispensa.

Diego foi um deles, ainda na primeira etapa. “Quem, como eu, não queria ficar no exército, foi lá, arranjou uma desculpinha com o doutor, pegou um atestado. Aquela coisa que todo mundo leva.” A palavra final cabia ao médico da comissão selecionadora. “Acho que o tipo de atestado que eu tinha não era uma coisa para dispensa”, afirmou. A dispensa veio na segunda etapa, longe de casa.

A inspeção durou toda a manhã de quarta-feira | Foto: Guilherme Freling

Já eu não tinha atestado médico, e o atestado de matrícula não foi suficiente para conseguir uma dispensa na primeira fase. Em Itaqui, porém, consegui.

Fazendo a auscultação, o médico nos questionava sobre o desejo, ou não, de servir. Fui rápido em afirmar que não queria porque estava estudando. “É mesmo? Deixa eu ver seus papéis”, disse ele. Mostrei-lhe meu comprovante de matrícula. “Vou dar um jeitinho”, respondeu pendurando em meu pescoço o crachá de dispensa.

Gabriel Pires, horizontinense e estudante de engenharia de software, também não queria servir por estar estudando. “Não que ele [serviço militar] fosse impedir isso, mas atrasa um ano da vida”, disse. “Eu acho que isso nem deveria ser obrigatório.

Havia também quem quisesse servir, como Natanael Silveira, outro horizontinense. Ele relata que desde pequeno pensava em estar no exército. “Por mais que algumas coisas sejam difíceis, as experiências são únicas.” Nem todos, porém, encontraram lá o que imaginavam. Na saída de Horizontina, 11 dos 52 jovens desejavam servir. Ao final, apenas sete dos oito que tiveram que ficar eram voluntários. Ou seja, um ficou contra sua vontade e quatro desistiram da ideia.

“Até mesmo durante o processo de entrevista, aqui, a gente consegue trazer uma série de fatores positivos, que os 2% antigamente não voluntários acabam querendo servir. Existe uma outra realidade quando a pessoa vem aqui, trava contato com os militares” — Capitão Fernando Marques, responsável pela Seção de Pessoal em Itaqui

O capitão Fernando Marques, responsável pela Seção de Pessoal em Itaqui, afirma que, neste ano, 98% dos 191 selecionados para o serviço militar eram voluntários. Número que representa 45% dos jovens que passaram pela seleção em Itaqui. “Nós valorizamos bastante a questão do voluntariado. Hoje em dia, a gente tem um índice de voluntariado muito alto, que favorece nosso processo de seleção.”

Para o capitão, tal porcentagem se deve à confiança da população nas Forças Armadas. “É uma instituição que tem um alto índice de credibilidade perante a sociedade. Isso tem crescido cada vez mais, de acordo com todas as pesquisas que são feitas, o que se reflete no índice de voluntários no quartel.”

Ao todo, 419 jovens passaram pela seleção no 1º RCMec: 205 de Itaqui e 214 das outras cidades. Segundo o tenente-coronel Alanis, o número de recrutas num mesmo quartel é variável. “Depende muitas vezes da necessidade dos quartéis, todo ano pode mudar.” Por isso, justifica, tantos jovens precisam ir até o quartel, mesmo que para serem dispensados.

Na pandemia

“[Medo do vírus?] Pra mim, particularmente, não. Mas depois, de voltar pra casa, passar pro meu pai ou minha mãe, eu tinha” — Gabriel, conscrito e estudante de engenharia de software

Prestes a completar um ano e com a situação piorando, a pandemia parecia uma coisa distante do ambiente onde estávamos. Embora recomendado, o uso das máscaras era bastante relaxado, até pelos militares. Na percepção de Diego, as pessoas usavam mais por obrigação do que para se proteger.

Sem máscaras, conversamos e dormimos, cerca de 50 jovens, no mesmo espaço | Foto: Guilherme Freling

Durante as refeições e os procedimentos da inspeção, máscara e distanciamento eram cobrados. “Nós fazíamos fila e eles passavam álcool, em gel ou em spray, na mão de todo mundo”, lembra o estudante Diego. Por outro lado, Gabriel questiona: “De que adiantavam [os procedimentos] se, quando voltávamos para o esquadrão, estava todo mundo junto, sem máscara?”.

O capitão Marques afirma que isso foi, sim, considerado. “A gente pensa nesse detalhe também, a ordem dos beliches, o espaçamento, para que a gente conseguisse dar mais segurança a todos.” Além disso, explica que casos suspeitos da doença são monitorados. “Quando alguém apresenta suspeita de covid, é levado para uma área de isolamento, que é aqui no quartel, e fica em observação. É testado e, uma vez positivo, fica em isolamento e, se for necessário, é evacuado para o hospital da cidade e, se necessário, é dada a dispensa médica.”

Felizmente, até onde ficamos sabendo, ninguém desenvolveu covid-19 enquanto estávamos lá. Três colegas passaram mal e foram isolados, mas os médicos os liberaram para voltar para casa. Na sexta-feira, com todos sentados no pátio, sob o sol da manhã, os novos recrutas eram chamados pelo nome completo. De Horizontina, foram oito. Aos outros, restava voltar para casa, livres do serviço militar. E eu era um deles.

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