Futebol

Elas são o futuro

As meninas das categorias de base são a grande aposta para o fortalecimento do futebol feminino no país

Mariana Marsiaj
Realidades Invisíveis

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Equipe Sub-17 da Seleção Feminina em preparação para jogo treino — Foto: Thais Magalhães/CBF

Os últimos dois anos revelaram um grande crescimento do futebol feminino no Brasil. A categoria tem se fortalecido muito desde 2019, quando a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) determinou, seguindo orientações da Federação Internacional de Futebol (Fifa) , que os times da Série A do Campeonato Brasileiro devem manter uma equipe profissional feminina como condição para participar do campeonato. Em setembro de 2020, a CBF evidenciou seu interesse na modalidade ao declarar que as seleções masculina e feminina seriam igualmente remuneradas, fato mundialmente noticiado por sua singularidade.

“A Fifa já deu a ordem que tem que investir em futebol feminino, então não tem mais volta”, comenta Fábio Sanhudo, treinador do Sub-18 feminino do Internacional.

A contratação da técnica sueca Pia Sundhage, em julho de 2019, foi outro grande investimento. Pia foi bicampeã olímpica como técnica dos Estados Unidos e também trabalhou com as categorias de base do time nacional da Suécia antes de assumir o comando da Seleção Feminina, trazendo consigo sua experiência de “construtora” de seleções.

“A escolha da Pia reflete a nova dimensão que vamos imprimir ao futebol feminino no Brasil. A partir da sua chegada, desenvolveremos um planejamento totalmente integrado entre a seleção principal e a base”, declarou Rogério Caboclo, presidente da CBF, em coletiva de imprensa após a contratação da técnica.

O recente sucesso da Seleção Feminina começou a atrair fãs e a gerar interesse pelos campeonatos nacionais e estaduais. O Twitter, que transmitiu os jogos do Campeonato Brasileiro Feminino em 2019 e 2020, registrou que 5 milhões de pessoas assistiram a pelo menos um dos jogos do campeonato em 2020, mais do que o triplo do ano anterior (1,5 milhão).

Entretanto, para o futebol feminino continuar evoluindo, é necessário priorizar as categorias de base, essenciais em qualquer modalidade esportiva. Elas ajudam as equipes profissionais a prosperar, possibilitando o desenvolvimento dos fundamentos técnicos e táticos do esporte desde a juventude.

A CBF enfatiza a importância da base por meio do Regulamento para Licença de Clubes, imposto a todas as equipes participantes de competições sancionadas pela Confederação. O regulamento exige a manutenção de três equipes masculinas além da principal, sendo elas Sub-20, Sub-17 e Sub-15, mas requer apenas uma equipe de base feminina, podendo esta ser desenvolvida em parceria ou associação com outra organização que já tenha uma equipe formada.

Embora essa discrepância deva diminuir nos próximos anos, sendo previsível a gradual exigência de mais investimentos nas equipes femininas, fica claro o caminho a ainda a ser percorrido de forma que o futebol feminino alcance o mesmo nível de sua contraparte masculina, e as meninas conhecem essa realidade.

“Eu pretendo lutar muito pelo futebol feminino, pra que todas que vêm da base consigam igualdade com o masculino, que é o que a gente merece”, afirma a jogadora Victória Moura, do Internacional.

Os primeiros clubes a investir na base feminina no Brasil não foram os mais tradicionais ou os com maior renda, mas equipes como Ferroviária FC, de São Paulo, que disputa a Série D do Brasileirão masculino. A Ferroviária conta com investimento na base desde 2017 e é referência no cenário do futebol feminino. Antes disso, se destacavam projetos sem conexão com clubes, como o Centro-Olímpico, de São Paulo, e a Associação Desportiva Lourdes Lago, de Chapecó.

Ganhando espaço

Até 1983, as mulheres eram proibidas por lei de praticar esportes que fossem “incompatíveis à natureza feminina”. O futebol era um deles. A proibição não conseguiu impedir a prática completamente, mas o decreto-lei 3.199, de abril de 1941, foi responsável por enraizar no imaginário brasileiro a ideia de que o futebol é um esporte essencialmente masculino.

Em entrevista ao Dibradoras, Marissa Wahlbrink, a Maravilha, goleira da Seleção Feminina nas Olimpíadas de 2000 e de 2004, contou que teve sua primeira experiência como jogadora de clube no Cruzeiro de Porto Alegre, aos 21 anos. No início, não recebia salário e se sustentava como doméstica. Atualmente, aos 47 anos, é preparadora de goleiras da Seleção Feminina Sub-17, trabalhando com meninas que vivem uma realidade muito diferente da que foi a sua.

Para a base chegar até esse ponto de desenvolvimento, o que não faltou foi força de vontade e, quando ainda não existiam campeonatos femininos, o jeito era jogar entre os meninos. Foi o caso das meninas do Centro Olímpico de São Paulo, que participaram da Copa Moleque Travesso em 2016, um campeonato Sub-13 masculino. Apesar da relutância de alguns pais de jogadores e de uma das outras sete equipes participantes, as meninas do Centro-Olímpico participaram do torneio e conquistaram o primeiro lugar do campeonato.

Os obstáculos para jogar também surgem, por vezes, dentro da própria família. Bianca Bik conta que os pais, inicialmente, não queriam que ela entrasse na escolinha de futebol. Precisou da ajuda do avô de uma amiga para convencê-los. Hoje ela atua como goleira do Grêmio Sub-16, tem passagens pela Seleção Feminina Sub-17 e pretende seguir carreira como jogadora.

“Uma meta longa que eu tenho em relação à Seleção, que eu criei nesse último período que eu tava lá, é ganhar um mundial, é trazer essa taça pro Brasil e colocar nossa primeira estrela no símbolo.”

A base feminina vem conquistando não apenas seu lugar nos gramados, mas também crescendo em projeção. No Instagram, o perfil Base Feminina (@basefemininaa) traz informações para seus 17,5 mil seguidores a respeito dos campeonatos de base estaduais e nacionais, além das equipes Sub-15 e Sub-17 da Seleção Feminina. Já a televisão transmitiu, pela primeira vez, partidas de um campeonato de categorias de base feminino no início deste ano, as semifinais e finais do Brasileirão Feminino Sub-18.O último jogo do campeonato aconteceu no Beira-Rio, estádio do Internacional.

“A gente não esperava, porque é uma realidade muito distante do futebol feminino, isso de jogar onde o masculino joga, ainda mais sendo da base”, relata Victória Moura, atleta do Internacional. “Este ano o futebol feminino deu um passo muito grande, que é muito importante pra nossa visibilidade.”

Sonho de criança

Eluiza Kavalek cresceu jogando entre meninos e, desde criança, sonhou em jogar na Seleção. Natural de União do Oeste, um município de três mil habitantes em Santa Catarina, começou a ser notada por professores de cidades próximas até ingressar na Associação Desportiva Lourdes Lago (Adell), voltada ao desenvolvimento de futsal e futebol feminino de base.

A Adell é responsável pela formação de atletas que atuam em diversos clubes do Brasil. Amauri Giordan, idealizador do projeto, começou em 2008 com treinos de futsal extraclasse na escola pública em que é professor. O futebol foi agregado em 2012, quando começaram a surgir campeonatos para meninas na região.

“Nós começamos a desenvolver o futebol antes dos clubes grandes”, explica Amauri. “Então os clubes, quando começaram, vinham buscar atletas com a gente.” Muitas das meninas que tiveram o início de seu desenvolvimento no futebol na Adell hoje integram equipes de clubes como Internacional, Palmeiras e São Paulo.

Aos 14 anos, Eluiza foi procurada pelo Palmeiras e, no início de 2021, defendeu o time no Campeonato Brasileiro Sub-18. Ao final da temporada, foi convidada para integrar o time profissional, mas recusou a proposta. “Eu sou nova, tenho muito que aprender ainda”, afirma. Com duas passagens pela Seleção Sub-17, a goleira já pensa no próximo sonho: jogar no exterior. E ela não é a única.

“Acho que é o sonho de toda menina que começa no futebol”, concorda Bianca Bik. A atleta do Grêmio acredita que o cenário do futebol feminino no Brasil ainda está se formando, mas que, em breve, o país deva se tornar uma das potências da categoria. “Aqui as meninas nascem sabendo jogar futebol, só que lá [na Europa e nos Estados Unidos] já tá desenvolvido, aqui a gente tem que correr atrás.”

Futebol é futebol

Fábio Sanhudo, técnico do Sub-18 feminino do Internacional, conta que acompanha o futebol feminino desde os anos 1980 e, recentemente, tem percebido uma ascensão muito rápida da categoria. Anteriormente, ele já tinha trabalhado com os meninos da base do clube gaúcho e com um time de futsal de mulheres, mas essa é sua primeira experiência trabalhando de fato com futebol de base feminino.

O técnico tem grandes expectativas para o crescimento da modalidade nos próximos anos. De acordo com ele, os clubes que ainda não abraçaram realmente o futebol feminino logo vão perceber que os custos para manter um time feminino ainda são muito baixos comparados aos gastos do masculino e começarão a montar equipes melhores. Esse fortalecimento do profissional deve ser seguido do investimento na base, formando atletas mais preparadas para integrar a equipe principal.

Fábio acredita que é possível desempenhar no futebol feminino o mesmo tipo de trabalho usado no masculino, entendendo e respeitando as diferenças que existem entre os dois. “Pra nós [que trabalhamos com futebol], não existe isso de futebol feminino ou masculino, futebol é futebol”, conclui.

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Mariana Marsiaj
Realidades Invisíveis

Estudante de Jornalismo da UFRGS, redatora de NFL no The Playoffs BR.