Discriminação

Jogando com o preconceito

Alguns fãs de videogame lutam contra a inclusão de personagens LGBTQI+ e outros são intolerantes em jogos online

Matheus Konzen
Realidades Invisíveis

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Foto: Pexels/ Lalesh Aldarwish

No final de fevereiro de 2021, foi anunciada uma atualização do jogo online “Tom Clancy’s Rainbow Six Siege” feito pela Ubisoft. Com ela, seriam introduzidas novas funcionalidades, armas e também um novo personagem, conhecido como Flores. Seu diferencial é ser o primeiro personagem abertamente gay do game. Esse fato gerou uma grande controvérsia entre seus fãs. Embora muitos tenham comemorado, outros usaram suas redes sociais para expor sua intolerância.

Com essa grande resposta negativa ao personagem Flores, diversas pessoas com destaque na comunidade do Rainbow Six Siege, como jogadores profissionais e desenvolvedores do game, vieram a público para mostrar seu apoio, entre eles um dos diretores criativos da Ubisoft e que esteve envolvido na produção desse jogo, Leroy Athanassof: “Nós queremos que todo mundo possa se relacionar com esse jogo”, disse ele em seu Twitter. E ainda afirmou que cada vez haverá mais diversidade nos games e que o melhor é que os jogadores se acostumem.

Esse caso exemplifica bem a relação que a comunidade gamer possui com pessoas LGBTQI++. Enquanto a indústria enxerga esses indivíduos como uma parcela da sociedade que precisa ser incluída, uma parte dos fãs de jogos permanece hostil com pessoas e personagens que possuem uma sexualidade ou identidade de gênero que foge do padrão hétero e cisgênero.

Representatividade nos games

Em junho de 2020, foi lançada a sequência do aclamado “The Last of Us”, desenvolvido pela Naughty Dog, sendo protagonizado por uma personagem lésbica. Além disso, há diversos personagens LGBTQI+ importantes para a narrativa. Esse é um exemplo de como essa representatividade tem aumentado nos jogos eletrônicos, mas ainda está longe de ser o suficiente.

Segundo uma pesquisa feita pela Nielsen Company, empresa que reúne dados sobre o consumo, 10% dos que jogam videogame no mundo são LGBTQI+. Esse público gasta 8% mais do que os demais. Em uma entrevista à Out, revista americana destinada ao público gay, um representante da Nielsen Company comentou sobre o assunto: “A pesquisa realmente nos mostra que existe uma sub-comunidade próspera dentro do mundo extensivo dos games que possui uma voz e um grande impacto na indústria”.

O youtuber Felipe Reinicke, do canal Gaymeboy, brasileiro que atualmente mora em Vancouver, faz vídeos de games destinados ao público LGBTQ+. Ele fez uma pesquisa sobre a representatividade dos mesmos nos jogos. “Temos menos representatividade do que deveríamos, e, acredite em mim, eu contei: em 2020 foram lançados 682 videogames. Desses, sabe quantos eu encontrei listando personagens LGBTQ +? Doze isso é 1,8% de representatividade de um grupo que é 10% da comunidade gamer. Para a gente ter um número mais justo, deveríamos ter no mínimo 68 jogos listando personagens LGBTQ+, só em 2020.E a gente não tá nem falando de protagonismo.Se a gente falar de protagonismo, então aí que a coisa se complica cada vez mais .”

Estudando sobre a história dos personagens LGBTQI+ nos games, Felipe percebeu que geralmente essa representatividade é negativa. “A questão é que você tem escritores que não são parte do grupo LGBTQ+ escrevendo personagens que são desse grupo, e eles estão escrevendo esses personagens de forma estereotipada, de forma não acurada, de uma forma muito rasa e fazendo piada com isso.”

Felipe classifica esses clichês em dois grupos, aqueles que são usados como alívio cômico e aqueles que são portadores de doenças mentais, e reitera que a maioria desses são vilões. Para ele, não é que não existam pessoas LGBTQI+ com falhas. “O problema está quando a maior parte da representatividade LGBTQ+ que existe nos videogames representa essas pessoas como vilãs, como pessoas más, pessoas com desvio de caráter ou com problemas psicológicos.”

O youtuber ainda comenta que muitos dos personagens LGBTQI+ que não eram estereotipados foram censurados. Principalmente os de jogos produzidos no Japão. Muitos tiveram sua sexualidade ou transgeneridade apagadas quando foram adaptados para o ocidente.

Luta contra a representatividade

Em 2015, a Nielsen Company fez uma pesquisa com fãs de jogos eletrônicos em que questionava se eles acreditavam que todas as orientações sexuais eram amplamente representadas em personagens de videogame. Dos entrevistados que eram LGBTQI+, 65% disseram que não. Já entre os que não eram apenas 28% disseram que não.

Mas existe uma parcela dos fãs de videogame que, além de não perceberem que essa representação é pequena, se opõem a ela. “Tom Clancy’s Rainbow Six Siege” e “The Last Of Us 2” são dois casos em que o fato de terem personagens que são gays, lésbicas ou trans ocasionou revolta por parte dos gamers.

Nas redes sociais foram feitos inúmeros comentários maldosos em publicações que abordavam esses jogos, usando principalmente memes preconceituosos, e ainda houve diversas avaliações negativas baseadas apenas no fato de haver personagens LGBTQ+ nesses games. Além disso, após o lançamento de “The Last of Us 2”, a dubladora da personagem principal e um dos diretores do jogo foram a público denunciar as mensagens que estavam recebendo. Os comentários continham falas homofóbicas, transfóbicas, machistas, antissemitas e algumas até com ameaças de morte contra os dois e suas famílias.

Marcos Paulo Santos, 30, um gamer morador de Caraguatatuba (SP) , se diz contra a existência de personagens LGBTQI+ nos games. Ao ser entrevistado, afirmou não ser contra a representatividade em si, mas sim de os jogos incluírem esses personagens. “Totalmente desnecessário. Uma coisa é combater o preconceito, outra é incentivar a homossexualidade, e nesse caso é isso que está acontecendo”, opina. Embora se declare contra toda forma de preconceito e discriminação, acredita que adicionar personagens com diferentes sexualidades e identidades de gênero em jogos eletrônicos possa influenciar os gamers.

Sobre esse argumento, a psicóloga com experiência na temática LGBTQI+ Betina Aymone, de Porto Alegre, discorre: “Conforme sugere a Associação Americana de Psiquiatria, não há provas científicas de que a orientação sexual, heterossexual, homossexual ou outra, seja uma escolha de livre arbítrio. Nesse sentido, cabe reiterar que o ‘tornar-se’ LGBTQ+ passa por um processo de reconhecimento, aceitação e identificação, para além do que pode ser absorvido ou visto na mídia.”

Por outro lado, Marcos Paulo acha importante a presença de personagens brasileiros nos games e se mostrou muito animado com isso. “Fico muito feliz, Brasil é uma grande nação e deve ser reconhecida no mundo todo.” Sobre essa incoerência, a psicóloga analisa: “Acredito que, neste caso, há uma lógica individual se sobrepondo a uma social. Muitas pessoas entendem o ser LGBTQ+ como uma escolha ou atribuem um status social de não normalidade a esses sujeitos”. Para ela, esses gamers apoiam a representatividade quando está dentro do que entendem como o “normal” e o “correto”. “Para algumas pessoas, a não-cis-heterossexualidade é necessariamente problemática .”

Violência Online

A LGBTfobia não é direcionada somente a personagens, mas também a gamers. É comum, durante os jogos online, o uso de xingamentos com termos pejorativos contra jogadores gays. Isso ocorre tanto por meio dos chats de texto, quanto por áudio. Muitos, ao ouvirem esses comentários, revidam ou informam à empresa responsável pelo jogo que um indivíduo está sendo hostil. Outros acabam desistindo de jogar com receio de serem insultados.

A streamer Vivian Vitória Melo Vargas, 30 anos, natural de Santa Catarina, é uma mulher trans que há anos tenta consquitar sucesso no mundo das transmissões de vídeo de games online. Ela conta que já foi muito atacada, mas hoje em dia limita o contato com outros jogadores para preservar sua saúde mental. Com o tempo, deixou de revidar os xingamentos e passou simplesmente a reportar o ofensor para as empresas que produzem os games.

“Tenho mais de 12 anos de internet e posso afirmar com toda certeza que a maioria das pessoas que estão nela se acham seguros por trás de um perfil fake ou sem nome e foto”, avalia Vivian. Ela acredita que, mesmo com perfis verdadeiros, os jogadores não temem ser punidos. “Muitos não acreditam que existam leis para esse tipo de ataque na internet, a maioria acha que a internet é uma terra sem lei”, critica.

Mesmo que a maioria dos jogos disponibilizem ferramentas para alertar quando alguém está sendo tóxico, as agressões perduram. Vivian destaca a falta de controle dos apelidos que os jogadores usam, também chamados de nicks. “Eu diria que poucas empresas se preocupam com isso, já cansei de ver nicks de jogadores que eram ofensivos à comunidade LGBTQIA+ e reportei, e nada foi feito.”

Em síntese, a relação entre pessoas LGBTQI+ e o mundo dos vídeos games desde sempre foi questionável, sendo raramente representados, salvo quando eram personagens detestáveis ou um alívio cômico. E, embora essa realidade esteja mudando, ainda que lentamente, existe uma resistência fervorosa, alimentada por uma ideia infundada do que seria o normal, que destila ódio e violência na internet, atingindo principalmente uma comunidade já extremamente marginalizada.

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