Negritude

Escurecendo a Cena Gaúcha

Conheça a história de alguns artistas negros rio-grandenses e suas dificuldades de evidência

Giulia Victória
Realidades Invisíveis

--

Foto: Reprodução do Youtube do videoclipe da música “É Dia de Preto” de Bruno Negrão.

Segundo dados de autodeclaração do Plano Municipal de Porto Alegre de 2017, 79,2% da população da cidade é composta por pessoas brancas, 20,2% por pessoas negras e apenas 0,23% por pessoas indígenas. Agora imagine como é ser um artista negro em um estado que antigamente era conhecido como ‘’purgatório dos negros”. No passado, os escravos desobedientes, por exemplo, eram mandados para a cidade de Rio Grande como forma de castigo por ser um ambiente muito frio e rigoroso.

Em entrevista para a GaúchaZH, no dia 15 de abril de 2020, o pesquisador e músico negro Richard Serraria explicou como a cultura negra contribuiu para a formação do estado e conta um pouco sobre o seu processo de musicalização:. “No Rio Grande do Sul, o folclore ‘oficialesco’ exclui as presenças indígena e negra na formação do Estado. O negro ou o indígena que aparece ali é de uma forma romântica”.

O povo negro está na base da construção da cultura brasileira, no entanto, o tradicionalismo muito rígido dos gaúchos fez com que essa narrativa fosse esquecida. Existe uma invisibilidade da população negra no Rio Grande do Sul, e isso influencia em tudo que produzem, inclusive no campo das artes.

“Se tivesse vivido num ambiente que me quisesse e que tivesse me estimulado isso desde cedo, teria me tornado artista bem antes dos 28 anos” - Dona Conceição, cantor.

Nascido e criado num terreiro de batuque em Alvorada, na Região Metropolitana de Porto Alegre, o cantor e compositor Dona Conceição, de 31 anos, levou 10 anos para lançar sua primeira música. “Asé de Fala”, foi escrita quando ele tinha 18 anos e lançada somente quando ele completou 28. A canção se tornou o nome do seu primeiro álbum, lançado em 2018. O cantor afirma que se tivesse vivido em um ambiente que estimulasse a arte, certamente teria se descoberto como artista bem antes.

Dona Conceição, é também roteirista e diretor de cinema. Ele acredita que, por ser negro, não católico e de origem humilde, tem que ser duas vezes melhor e mais sagaz do que os outros. Gosta de se intitular como artivista, e a arte já o levou para vários lugares, como Rio de Janeiro, América Central e até mesmo para a Europa. “Algumas pessoas para as quais eu me apresentava como natural do Rio Grande do Sul, nem acreditavam que eu fosse daqui”, relata o artista.

Dona Conceição foi um dos quatro selecionados do Som no Salão 2018, projeto que fomenta a cena musical autoral, lançando seu álbum no dia 07 de novembro daquele ano, no Salão de Atos da UFRGS, com casa cheia. Foto: Luís Ferreira.

Os projetos culturais têm sido uma boa alternativa para artistas negros independentes, que estão começando, pois além de garantirem seu ingresso em ambientes que lhes foram negados historicamente, viabilizam sua permanência no campo da arte.

“O modo como artistas negros comunicam a própria história diz muito quem foram e quem são” - Elen Janine Ortiz, professora de música.

Elen Janine Ortiz,de 32 anos, moradora de Santa Maria, no interior do estado,teve seu primeiro contato com a música quando criança, participando de corais na igreja. Aos 14 anos aprendeu a tocar flauta transversal no Colégio Militar de Santa Maria. Participou da Orquestra Jovem de Santa Maria e de lá passou para Orquestra Sinfônica de Santa Maria, onde trabalhou até seus 24 anos. Quando assumiu a posição de professora do projeto Orquestrando Arte, em 2015, se inscreveu em aulas de música para se aprofundar mais em teoria, técnicas, sonoridade e instrumentos.

O programa Orquestrando Arte — Incubadora Sociocultural — oferece gratuitamente no período diurno oficinas de música, canto coral, música orquestral, teatro e dança, além de formação humana e apoio pedagógico. A instituição tem cunho socioeducativo, de caráter continuado, em contra turno escolar, que proporciona um espaço de prevenção, proteção e fortalecimento de vínculos familiares e comunitários.

Mais de mil alunos já passaram pelas aulas de Elen. Ela relata que nas turmas do Orquestrando Arte normalmente havia menos alunos negros. Com algumas turmas participou do Encontro Sul-Brasileiro de Orquestras, em Chapecó. Acredita que a forma como artistas negros expõem sua arte reflete muito no que são e foram. “Eu encontro referências negras no Rio Grande do Sul sim, mas não na minha área. Aqui em Santa Maria tenho contato com alguns coletivos e consigo ver uma movimentação artística”, conta professora.

Elen e sua turma do Orquestrando Arte participaram do Encontro Sul-Brasileiro de Orquestras, em Chapecó. Foto: João Vithor Botega de Paula e Laura Alves.

Fase Emergencial da Cultura

Com o início repentino da pandemia, muitos artistas tiveram seus shows e programações cancelados. Com isso, precisaram se adaptar com a nova rotina online e reorganizar suas programações. Alguns músicos tiveram que recorrer à Lei Aldir Blanc, sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro em junho de 2020, que garantiu uma renda emergencial a profissionais do setor cultural. Foram beneficiados, artistas, contadores de histórias e professores de escolas de arte e capoeira. Os contemplados receberam, por meio dos governos estaduais, três parcelas mensais de R$ 600.

Uma alternativa foi trabalhar com outras atividades para se sustentar. Elen, por exemplo, formada em Enfermagem desde 2011 pela Universidade Franciscana (Unifra), está trabalhando como enfermeira no Hospital Municipal Ruth Cardoso, em Santa Catarina. A instituição onde trabalha está organizando um projeto para incluir a música no ambiente hospitalar, pois sua equipe acredita que a música tem se mostrado cada vez mais importante na recuperação de pacientes. Com o isolamento social, algumas pessoas têm se mantido mentalmente equilibradas pelo auxílio da arte, com livros, filmes e música. Elen sente que esse momento servirá para se aprimorar em suas habilidades e retornar com mais qualidade a seus alunos do Orquestrando Arte.

Cristal em seu show online durante a pandemia. Foto: Alisson Batista.

Historicamente o povo negro demostra ter muita resistência e resiliência. Nos últimos anos, a população negra tem conseguido um avanço significativo com as políticas de ação afirmativa, sobretudo na dimensão educacional, com as cotas, que são de extrema relevância. No Rio Grande do Sul, a discussão sobre a representatividade negra na cultura ganhou um relevo especial a partir das décadas de 1970 e 80 com o Movimento Negro Unificado, tendo como figura central o poeta Oliveira Silveira. Hoje, outros artistas mantém a tradição de resistir e produzir num estado marcado pelo racismo. Nesse sentido, o conceito de sucesso para Dona Conceição e Elen não é ser rico, nem ter um hit famoso e sim deixar um legado, para que as próximas gerações possam os ter como referências. Para eles, a base do sucesso é a união da população negra.

Conheça agora mais alguns artistas negros independentes que merecem serem ouvidos

Cristal, rapper de 18 anos, natural de Porto Alegre, começou sua carreira no Slam com 15 anos, na capital gaúcha. Em 2018, começou a participar de eventos em escolas, atividades e oficinas com jovens e palestras em universidades. “Artistas negros gaúchos não possuem espaço porque simplesmente acreditam que ‘não existem pretos no Sul’, nossa narrativa então é ressignificar o nosso próprio espaço e fazermos nos sentir parte de uma terra que não quer nem que façamos parte de sua história”, relata Cristal. Seu lançamento mais recente é Status.

Bruno Amaral, de 24 anos, é nativo de Porto Alegre. Seu objetivo com a arte é passar sua realidade e transmitir uma identidade e representação da cultura periférica por meio de suas músicas. Trabalha em algumas comunidades de Porto Alegre e Região Metropolitana como educador social. “Acabo me eternizando quando componho, finalizo e lanço um trabalho. De certa forma consigo me eternizar em uma realidade que a gente acaba muito cedo”, reforça Amaral.

Sandro Dubois, tem 22 anos, nascido e criado em Porto Alegre, trabalha em alguns setores da arte como moda, audiovisual e música. “Ser um artista preto no Brasil é bem difícil, sendo gaúcho mais ainda, faz com que eu tenha que correr o dobro do que a rapaziada de São Paulo, por exemplo, não tem tantos lugares para tocar e o público não é tão acessível. Isso me motiva muito a quebrar essa barreira.”.

Bruno Negrão, de 24 anos, natural de Porto Alegre, é escritor e poeta. Já publicou três livros de poesia e atua também na área do Slam. “Para nós que fazemos arte para a população preta, a cultura local acaba sendo bem tradicionalista e dificultando o alcance. Até porque acaba se tendo um estereótipo dentro do Rio grande do Sul e do que é o gaúcho, e nunca incluem o preto e a cultura preta nessa narrativa” relata Bruno.

--

--

Giulia Victória
Realidades Invisíveis

Estudante de Jornalismo na UFRGS e de Secretariado no IFRS. Nas horas vagas me apresento como trancista.