REPRESENTATIVIDADE

O futebol fora do armário

Presença LGBT dentro e fora do campo se intensifica com o passar do tempo

João Pedro
Realidades Invisíveis

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Bandeira do arco-íris tremula no Macron Stadium, na Inglaterra. Foto: Getty Images

Na última sexta-feira (14), o ex-participante do “Big Brother Brasil” Gilberto Nogueira, o Gil do Vigor, foi alvo de comentários homofóbicos vindos de um conselheiro do Sport Club do Recife, seu time do coração, após uma visita à Ilha do Retiro, estádio do clube. Em áudios vazados, Flávio Koury critica a dança do ex-BBB no gramado do estádio, afirmando que “tem 1,2 milhão de pessoas achando que o Sport só tem veado, só tem bicha”. Apesar do fato ser recente, a existência de comentários assim vem de muito antes.

Para os amantes do esporte, o ano de 1895 é considerado o marco histórico da chegada do futebol ao Brasil. Foi através de Charles Miller que as regras do esporte bretão desembarcaram no país: onze jogadores para cada lado, a bola não pode tocar na mão, ganha quem fizer mais gols. Junto delas, porém, vieram as normas impostas pela sociedade da época e que alçaram o futebol a um status elitista.

No começo, a prática do futebol era restrita a apenas homens brancos de classe alta, o que não apenas impedia a participação da maior parte da população, mas também reforçava o que pode ser considerado o mais antigo estereótipo ligado ao esporte: futebol é esporte de macho. O tempo passou, a sociedade evoluiu e a participação de mulheres e negros em campo cresceu exponencialmente — o que não evitou que os torcedores e adeptos arranjassem um novo bode expiatório: a comunidade LGBT.

O grupo, cuja visibilidade aumentava conforme sua luta por direitos crescia a partir da década de 1970, passou a ser alvo de insultos carregados de preconceito de forma cada vez mais constante. Termos como “bicha” e “veado” tornaram-se maneiras de ofender não apenas os adversários, mas toda uma comunidade, enraizando-se na cultura do futebol. Foi apenas em 2016 que a Federação Internacional de Futebol (FIFA) passou a multar entidades nacionais como forma de repreender este tipo de comportamento.

Em agosto de 2019, o árbitro Anderson Daronco interrompeu uma partida do Campeonato Brasileiro entre Vasco e São Paulo por conta de gritos homofóbicos vindos da torcida cruz-maltina. O incidente foi relatado na súmula da partida seguindo uma recomendação do Superior Tribunal de Justiça Desportiva efetuada poucos dias antes do jogo. Diante da repercussão do caso, os 20 clubes da Série A daquele ano divulgaram, em conjunto, um comunicado repudiando atitudes discriminatórias dos torcedores: “São inaceitáveis práticas ainda existentes em nossos estádios: temos que dar um basta! Pior que prejudicar o seu time é cometer um crime”.

Posicionamentos assim têm se tornado frequentes entre as equipes desde os últimos anos da década de 2010. Segundo levantamento publicado pelo site O Contra-Ataque em junho do ano passado, 18 dos 20 maiores times do país celebraram em suas redes sociais o Dia Internacional do Orgulho LGBT em 2020, um número quase cinco vezes maior em comparação aos quatro que deram início a esta onda em 2017 — Grêmio, Inter, Flamengo e Bahia.

O tricolor baiano, aliás, foi além: criou um núcleo de ações afirmativas, o qual atua no desenvolvimento de ações contra todos os tipos de preconceito. Uma das campanhas de maior destaque lançadas pelo clube veio em janeiro de 2020, quando o volante Flávio abriu mão da camisa 5 para usar a 24 em uma partida válida pela Copa do Nordeste. A intenção do clube era desmistificar a imagem do número associado a homossexuais — no jogo do bicho, 24 é o número do veado.

No domingo (16), em resposta aos ataques homofóbicos a Gil do Vigor citados no começo da reportagem, os jogadores do Sport entraram em campo com uma faixa onde se lia “não à homofobia”. Além disso, os nomes dos atletas eram acompanhados do termo “do Vigor”, em uma homenagem ao ex-BBB.

Torcedores LGBT conquistam seu espaço nas arquibancadas

Apesar de uma parcela considerável das torcidas entoar cânticos preconceituosos, a presença de pessoas LGBT nas arquibancadas vem sendo cada vez mais frequente e, consequentemente, mais aceita. Mas engana-se quem imagina que foi apenas recentemente que a comunidade passou a acompanhar fielmente os jogos de seus clubes de coração.

O primeiro movimento de torcedores LGBT do Brasil surgiu em 1977, no auge da ditadura militar. Sob a luz da boate Coliseu, em Porto Alegre, surgiu a Coligay, torcida do Grêmio formada por frequentadores da casa noturna. Apesar de muitos olhares estranhos vindos de outros torcedores, garantiu seu lugar na arquibancada do Olímpico Monumental e, graças a sua fama de pé-quente, foi abraçada por dirigentes e atletas gremistas. Quarenta anos após o encerramento de suas atividades, o legado da Coligay enquanto marco para a presença de pessoas da comunidade LGBT nos estádios segue vivo.

Magda Schmidt, 56 anos, lésbica, é frequentadora assídua dos jogos do Grêmio. Antes da pandemia, costumava ir a todos os jogos do Tricolor em sua Arena, independente do campeonato ou do horário. “Eu já ia antes [quando o clube ainda mandava seus jogos no Estádio Olímpico], mas era mais eventual, até por ser longe da minha casa”, afirma. Segundo ela, sua relação com o Tricolor é antiga, vinda de quando ainda era uma criança, e se mantém forte até os dias de hoje. Magda conta que uma de suas maiores vitórias é ter transformado sua esposa, que mantinha uma afeição pelo Internacional, em gremista. “Consegui uma coisa que ninguém acreditava que era possível.”

Enquanto gay, a contadora afirma nunca ter sofrido ou presenciado algum ato discriminatório dentro do estádio além dos gritos proferidos pela torcida. “Eu acredito que existe tudo isso. Existiu, existe e existirá. São coisas que, pelo menos na minha encarnação, eu não acho que vai acabar.”

Apesar disso, Magda demonstra otimismo pelo futuro: “o ser humano vem numa evolução e tende a ter esses preconceitos diminuídos, até porque vem uma nova geração que tem uma nova visão do mundo. A partir do momento em que as pessoas tiverem respeito um pelo outro, isso vai acabar”, conclui.

Gremista, Magda é frequentadora assídua dos jogos do clube. Foto: Arquivo pessoal.

O que falta para que atletas falem sobre sua sexualidade?

Em outubro de 1990, em entrevista concedida ao tabloide The Sun, o futebolista britânico Justin Fashanu fez história ao tornar-se o primeiro jogador de alto nível a se assumir gay. À época, a atitude do jogador gerou controvérsia e sua vida pessoa, que já era alvo de inúmeras especulações da mídia britânica antes do episódio, virou manchete mundial. Em 1998, poucos meses após sua aposentadoria e enfrentando acusações de assédio sexual, Fashanu foi encontrado enforcado em uma garagem em Londres, onde morava.

Vinte e um anos após sua morte, o caso de Fashanu ainda é um dos raríssimos que dizem respeito a jogadores de futebol abertamente LGBT no mundo. Na maioria dos casos em que um atleta decide tomar a mesma atitude do britânico, isto se dá ou de forma anônima — como fez um jogador da Premier League em 2020, cuja identidade ainda não foi revelada — ou após sua aposentadoria — caso do alemão Thomas Hitzlsperger, que representou seu país na Copa do Mundo de 2006.

O jornalista João Abel, autor de “Bicha! Homofobia Estrutural no Futebol”, afirma que esse fenômeno ocorre porque muitos atletas passam por um dilema no qual têm que escolher entre viver sua sexualidade abertamente e seguir a profissão dos seus sonhos. “Enquanto o futebol não for um ambiente seguro e convidativo à diversidade, os jogadores vão continuar optando por esconder sua sexualidade por medo.”

Enquanto isso, no Brasil, o caso mais comentado de um atleta do mais alto nível do futebol nacional que seria LGBT é, ironicamente, de um jogador que nunca mencionou o fato abertamente apesar de ser alvo frequente de boatos. Desde 2007, quando um dirigente do Palmeiras afirmou que o meio-campo Richarlyson, então no São Paulo, seria gay, as insinuações a respeito da sexualidade do jogador não pararam mais, fazendo com que o atleta se tornasse alvo de protestos até mesmo das torcidas dos clubes pelos quais passava.

Oficialmente, não há nenhum registro de jogadores que tenham atuado em grandes clubes do país e que sejam abertamente gays. Mas, para João Abel, isto deve mudar em breve. “É difícil prever o real impacto que isso teria. No Brasil, hoje, se um jogador da primeira divisão decide fazer esse movimento, ainda é provável que sofresse muita pressão da torcida. Mas ao mesmo tempo receberia muito apoio de coletivos LGBTs e de boa parte da imprensa, que já entendeu que o discurso homofóbico não é mais aceitável.”

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