Moradores de rua
Onde ficam aqueles que não tem casa?
Em número crescente, as pessoas em situação de rua e em albergues em Porto Alegre encontram ainda mais problemas por conta da crise sanitária e econômica
Uma fila se estende na penumbra do bairro Floresta, em Porto Alegre, alguns minutos antes das 19h, horário de abertura do albergue Acolher Dois, na rua Sete de Abril. Ali se reúnem desde pessoas que moram na rua há mais de 10 anos, até quem está há 15 dias sem um lugar para dormir. O que todos têm em comum é vivenciarem a pandemia e a crise que segue sem ter uma casa para ficar.
Uma dessas pessoas é Alexandre*, de 36 anos, que está na rua há três. Para se prevenir, usa máscara e álcool em gel, além de se manter informado pelo celular ou pela televisão. As notícias são transmitidas durante a janta no albergue Acolher Dois, informa Cristiano Costa, assistente social nesse mesmo albergue: “Daí impacta eles a situação, agora eles estão usando máscara direitinho”.
Cristiano também fala sobre a redução na lotação máxima dos albergues como forma de evitar aglomerações. O Acolher Dois reduziu de 75 para 50 pessoas, o abrigo Dias Cruz está com lotação máxima de 30 leitos. O Acolher Um também reduziu sua capacidade de 75 para 50 e está funcionando 24 horas, assim como o albergue Renascer, este com 80 leitos. As filas são mantidas em ordem, e a entrada é um por vez e com medição de temperatura.
Ainda assim é difícil. Um funcionário que não quis se identificar, desabafa: “O que dificulta muito é na hora da refeição, eles fazem muita aglomeração ao redor das mesas”. Sempre que alguém é diagnosticado com covid-19, é isolado para evitar contaminação. Apesar disso, uma vez, mais de 20 usuários em um mesmo albergue se infectaram.
Tudo isso apesar das medidas tomadas. De acordo com Cristiano, sempre há álcool em gel disponível. Os protocolos recebidos pela Secretaria de Saúde do município são obedecidos e repassados para os moradores de rua. Infelizmente nem todos levam tão a sério a situação.
Como Douglas*, de 34 anos, que não usava máscara sobre a boca no momento da entrevista, apesar de ter uma no queixo. Está há 10 anos na rua. Ele comenta que nunca viu um morador de rua com covid. Esse ceticismo não é restrito a Douglas e tem consequências.
Cristiano lembra de uma situação em que, na hora da entrada, um rapaz estava com a temperatura muito alta. Os funcionários do albergue não deixaram ele entrar. Mas na fila ele foi visto compartilhando cigarro com outro colega: “Uma semana após, o que tava compartilhando cigarro com ele pegou covid”.
CRISE ECONÔMICA
Além de afetar diretamente a vida das pessoas que já estavam em situação de rua, a pandemia também fez com que outras ficassem sem casa. Marcos*, de 39 anos, está há apenas 15 dias sem ter um lar, mas ele não é o único. Patrícia Mônaco, técnica social da Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc), diz quem foram os mais atingidos pelo desemprego ocasionado pela pandemia: “As pessoas que tinham um subemprego ou um emprego com uma relação muito frágil, que beira a questão da informalidade”.
Ela dá um exemplo: “Catadores de materiais recicláveis, pessoas que conseguiam num dia arrecadar o suficiente para comer naquele dia. Com o fechamento do comércio, a falta de lixo do comércio, essas pessoas não têm mais onde buscar esse sustento. Então começam a ficar na rua, porque a rua de alguma forma fornece alimentação, fornece algum ganho possível”.
Essas pessoas vêm de outras cidades também. “Todas as capitais, não só Porto Alegre, elas têm esse fomento de serviço. Na verdade, as pessoas fazem sempre uma busca, da melhora de vida, emprego, enfim.” Patrícia diz que muitos vêm da Região Metropolitana em busca de emprego na capital. “Chegando aqui, a gente sabe qual é a realidade”, diz Patrícia.
A técnica social explica que a pobreza extrema é o principal motivo do aumento do número de pessoas em situação de rua. Algumas não conseguem mais se manter em uma casa. “A população de rua é basicamente formada por homens na faixa dos 25 aos 45 anos, agora um pouquinho mais. Então [são] homens que não conseguem ter a rentabilidade suficiente para se manter em casa. Atrelado à miséria, o uso de drogas e as desavenças familiares são os dois principais motivos”, diz Patrícia.
Patrícia afirma que em Porto Alegre, atualmente, há 3.850 pessoas em situação de rua, de acordo com pesquisas da Fasc, mas que esse número pode ser até maior, já que as pesquisas não levam em conta aqueles que estão nos abrigos.
Na percepção de Cristiano, as principais dificuldades enfrentadas por essas pessoas são o acesso a direitos e a descriminação. Apesar de possuírem direitos, por vezes os moradores de rua não conseguem usufruir destes. Ele dá o exemplo da demora para fazer a carteira de trabalho. “Como é morador de rua, agendam pra daqui a um mês, dois meses, e eles precisam pra ontem.”
FUTURO
O cenário das pessoas em situação de rua em Porto Alegre já é grave há tempo. Em 2016, segundo pesquisa da Fasc, a quantidade de pessoas em situação de rua era de 2.115. Hoje, além do número ter aumentado, as perspectivas de futuro são negativas.
Cristiano diz que a população provavelmente vai aumentar. Patricia argumenta que, com a redução do valor do auxílio emergencial de R$ 600 para valores menores, a situação deve piorar, ainda mais com o término desse benefício. “Aquelas pessoas que conseguiam se manter às custas do auxílio emergencial, vão perder essa capacidade”, diz Patrícia.
As sugestões para melhoria vão desde abrir mais um albergue na zona central, até a reversão da situação econômica nacional. “Teria que estudar uma política pública”, acrescenta Cristiano. Mas o tom se mantém pessimista: “Eu acho que vai ter uma piora pelo menos no ano que vem, a gente vai ter um quadro bem acentuado de pessoas em situação de rua”, diz Patrícia.
Enquanto esses e outros problemas da cidade e do país não se solucionam, veremos mais filas no sereno da noite porto-alegrense, lotadas por aqueles que procuram casa para ficar.
* Os sobrenomes foram omitidos para não identificar as fontes.