Educação

Retratos da exclusão

Em meio a tantas barreiras impostas pela sociedade, o direito constitucional da pessoa autista à educação é violado

Laura Borges
Realidades Invisíveis

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Segregado. Artista: Tsu

“Quando o Leandro chegou na escola, o Arthur continuava todo mijado, sentado sozinho no pátio, na chuva, estereotipando, balançando as mãos e batendo com elas no chão do pátio da escola’’

- Janice Rodrigues, mãe de Arthur

No dia 27 de dezembro de 2012, a presidente Dilma Rousseff sancionou a Lei Berenice Piana (12.764/12), que institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista (TEA) e assegura constitucionalmente o acesso à educação tanto na rede pública de educação quanto na privada. Essa lei garante que a pessoa autista seja considerada pessoa com deficiência com todos os direitos previstos na Convenção Internacional sobre os Direitos de Pessoas com Deficiência. Embora não haja estatísticas oficiais, a Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que no Brasil há cerca de 2 milhões de pessoas dentro do espectro autista.

A questão é que a lei nem sempre tem assegurado a inclusão dos indivíduos autistas no ensino. Eles apenas têm tido o direito à matrícula. É corriqueiro instituições de ensino regular infringirem as políticas de inclusão, fazendo com que os direitos previstos fiquem assegurados apenas no papel, comprometendo o processo de aprendizagem e socialização da pessoa autista.

“É assim que funciona o capacitismo, ele avalia o quão normal você é pra te dar acesso a direitos, e isso é baseado no modelo médico”

- Alexandre Mapurunga, diretor técnico da Associação Brasileira para Ação por Direitos das Pessoas Autistas

Amparos legais e direitos negados

Arthur Rodrigues, de 10 anos, é um exemplo de quem vivenciou a discriminação das instituições de ensino desde muito novo. Diagnosticado com um ano e oito meses com TEA, aos dois anos e meio ingressou numa escola privada, em Alvorada, município do Rio Grande do Sul.

Arthur Rodrigues e seu pai Leandro Gomes. Foto: Arquivo pessoal

Janice Rodrigues, mãe de Arthur, conta que várias vezes a direção sugeriu que procurassem uma instituição especializada para a criança, alegando que aquela era uma escola tradicional e não inclusiva. De acordo com Janice, a direção dizia que não podia fazer uma adaptação curricular exclusivamente para ele. ‘’No segundo ano, a professora foi muito resistente e super antiética, chegou ao ponto de dizer para as crianças que o Arthur não devia estar em uma escola com eles, deveria estar em uma clínica’’, revela Janice. Foram cinco anos de um processo lento e doloroso para a família.

Vídeo de apresentação para a primeira reunião de pais da escola do Arthur. Reprodução: youtube

Arthur não teve o direito ao acompanhante especializado que atendesse suas necessidades educacionais, como prevê a lei. O casal teve que arcar com os custos do salário do monitor especializado e de seu treinamento durante três anos. Leandro Gomes, pai de Arthur, cobrou da direção o cumprimento da lei, exigindo o suporte que o menino precisava, mas apenas quando os pais dele foram mais enfáticos é que a escola disponibilizou o acompanhante para o menino. De acordo com Leandro, o diretor disse que a lei existia só no papel e que, na escola dele, ele era a lei. ‘’Ele era intransigente, só pensava no lucro. O Arthur não estava dando lucro’’, ressalta Janice.

Art. 3º da lei nº 12.764. São direitos da pessoa com transtorno do espectro autista:

Parágrafo único. Em casos de comprovada necessidade, a pessoa com transtorno do espectro autista incluída nas classes comuns de ensino regular, nos termos do inciso IV do art. 2º, terá direito a acompanhante especializado.

Arthur Rodrigues foi diagnosticado com TEA quando tinha 1 ano e 8 meses. Foto: Arquivo pessoal

Depois de tentativas frustradas de diálogo com a primeira escola, o casal, otimista com a possibilidade de encontrar uma instituição que incluísse seu filho dignamente, o matriculou em uma escola municipal. Mas a luta da família e o sofrimento do pequeno estavam longe de acabar.

Arthur é autista severo não-verbal e não é agressivo. Um dia, quando fez xixi na roupa enquanto estava no colégio, Leandro recebeu um telefonema pedindo que buscasse o filho, pois não poderiam trocar sua roupa. ‘’Quando o Leandro chegou na escola, o Arthur continuava todo mijado, sentado sozinho no pátio, na chuva, estereotipando, balançando as mãos e batendo com elas no chão do pátio da escola’’, revela a mãe. Janice prometeu que nunca mais voltaria naquela escola e desabafou no Facebook relatando o ocorrido: ‘’Meu filho ficou por quase uma hora na escola todo mijado. Meu filho autista, que não fala e não consegue expressar o que está sentindo. Sujo, fedendo, molhado, nessa tarde chuvosa’’.

Artigo 4 da Lei nº 12.764.

A pessoa com transtorno do espectro autista não será submetida a tratamento desumano ou degradante, não será privada de sua liberdade ou do convívio familiar nem sofrerá discriminação por motivo da deficiência.

A escola, uma instituição que deveria ser um espaço para todos, buscando alternativas para assegurar a permanência do aluno, acaba por se tornar um local de segregação. ‘’Uma criança autista, incapaz, estava sob os cuidados da escola e sofreu esse tipo de abuso, punição, castigo, tortura. E ele estava sob responsabilidade de pessoas. Equipe diretiva, pedagógica, estagiária de inclusão, todos deixaram ele permanecer assim. Ninguém se importou. Ninguém teve um olhar de empatia ou no mínimo de pena. Não. Optaram por deixá-lo naquele estado”, lamentou Janice nas redes sociais.

Hoje Arthur poderia estar no 5° ano, porém, não consegue realizar atividades “de uma escola padrão”, não consegue sequer pegar um giz de cera e riscar um papel. A última vez que foi ao colégio, foi em 2019. “Não sei se vou voltar a colocá-lo na escola. Em 2022 é que vou pensar nisso novamente, no quanto é positivo reiniciarmos esse processo e essa mudança de rotina, afinal, serão dois anos sem nenhum contato com escola”, diz a mãe.

A história de Alexandre Mapurunga, de 44 anos, defensor dos direitos humanos e diretor técnico da Associação Brasileira para Ação por Direitos das Pessoas Autistas (Abraça), começou com um diagnóstico tardio de TEA, em contraste com o de seus irmãos.

Alexandre Mapurunga, pessoa autista e defensor dos Direitos das Pessoas Autistas. Ex-presidente e diretor técnico da Abraça. Foto: Reprodução redes sociais

Os dois irmãos de Alexandre foram diagnosticados dentro do espectro ainda crianças, enquanto ele só teve a confirmação mais tarde. “Eu nunca fui proibido de me matricular na escola, mas meus irmãos sim. Eles foram encaminhados para uma escola especial, porque na época não existia a lei que garantia que as escolas tinham que acolher a todos’’, lembra Alexandre. Ele diz que os irmãos sofreram, portanto, o processo de exclusão.

“Eu tive a sorte de ser considerado normal o suficiente pra não ser excluído.” Por não ter um entendimento de como funcionava o sistema de apoio, Alexandre não teve acesso a adaptações que poderiam ser necessárias no seu processo escolar. Ele conta que passou por muitas dificuldades ao longo da vida escolar: “Por não me entender como autista e por não ter um ambiente, legislação e política que regulasse esse ambiente na época”.

Negar um direito social fundamental é crime. “É assim que funciona o capacitismo, ele avalia o quão normal você é pra te dar acesso a direitos, e isso é baseado no modelo médico”, explica Alexandre. O capacitismo é a discriminação e o preconceito contra pessoas deficientes (PcDs), reduzindo elas a sua deficiência e as considerando incapaz.

Vinícius Fidelis, de 22 anos, autista ativista e militante de direitos humanos das pessoas com deficiência no estado de São Paulo, relata que durante sua infância foi negado a ele o direito a questão identitária. A desculpa dos profissionais era que ele não deveria ser rotulado como autista e deveria seguir sua vida escolar sem adaptações para demonstrar suas potencialidades.

Vinícius Fidelis, pessoa autista, estudante de direito quintanista e estagiário na SBSA. Foto: Reprodução redes sociais

“Isso tornou minha jornada muito complicada, uma vez que as adaptações que eu demandava não eram atendidas, o estado brasileiro ainda não enxergava a deficiência por um panorama social, até porque não havia ratificado e promulgado a Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência.” Naquela época, não havia instrumentos que dissessem que Vinícius era uma pessoa com deficiência e que, por isso, demandava de atendimento educacional especializado.

Os desafios de famílias de baixa renda com filhos autistas são ainda maiores. Lucas Oliveira, educador comunitário em pré-vestibulares no Complexo da Maré, Rio de Janeiro, conta que há muitas crianças autistas nesses espaços e pouca informação. ‘’É muito mais fácil ter uma sala de recurso equipada em uma escola na zona sul do que dentro de uma comunidade”. As salas de recursos multifuncionais são espaços físicos em escolas públicas que ofertam o Atendimento Educacional Especializado (AEE) para pessoas com necessidades educacionais especiais. Porém, Lucas considera que se o local for considerado de alto risco, é mais fácil nem ter sala de recursos, porque ninguém quer ir trabalhar.

Oponentes da inclusão

Em 2020, o presidente Jair Bolsonaro sancionou o decreto 10502/2020, que trata da Política Nacional de Educação Especial (PNEE) e vai contra a Lei Brasileira de Inclusão. Na opinião da Abraça, a PNEE representa um retrocesso em relação aos direitos dos autistas. O decreto determina que pessoas com deficiência voltem a ficar em escolas especiais. “Esses espaços segregados, na verdade, não são escolas, são espaços terapêuticos e de convivência”, comenta Alexandre. “Escolas especiais não são substitutivas da educação. E nós estamos na luta para garantir o direito à educação regular para todos os alunos autistas. E na educação regular, garantir os apoios necessários para que eles recebam o mesmo nível e qualidade de educação que as outras recebem”. Foi proposto a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 6590) para revogar o decreto 10502. O decreto foi suspenso e considerado inconstitucional pelo Supremo Federal Tribunal (STF) e agora está em julgamento o mérito final.

Presidente da república Jair Messias Bolsonaro assina decreto que institui a Política Nacional de Educação Especial (PNEE). Foto: Agência Brasil/ Carolina Antunes/PR

Vinícius considera que deixar autistas e pessoas com deficiências em geral em escolas especiais é uma violação dos direitos humanos. ‘’É importante considerar que a educação na rede regular é a única possibilidade, é o único método de educação que deve ser admitido.’’ E prossegue: “A inclusão não é sobre o aluno com deficiência, mas sobre o aluno como um todo. A escola não pode, nem deve, ser um ambiente de mero acúmulo de matérias, ela é também local de formação de cidadãos, que, por sua vez, formarão a sociedade no futuro. A interação com a diferença seja ela qual for é uma forma de dirimir preconceitos e derrubar barreiras”, explica ele.

Não há formação especializada para os professores sobre inclusão, e a instituição escola é um ambiente no qual atividades não são pensadas para o público autista. Luis Carlos Santos, pós-graduando em Educação e Cultura e professor de história da rede municipal de Gramado, já atuou como mediador de um jovem autista. Ele pontua que precisa começar agora um investimento pesado em educação e políticas públicas. “Não há como pensar em educação universal sem políticas públicas. A educação precisa de investimento maciço. Infraestrutura, estrutura, formação continuada’’, afirma.

Para ele, a inclusão das crianças e jovens autistas no espaço escolar requer uma mudança de comportamento, uma mudança estrutural e de paradigmas. “Se não houver essa mudança no ensino de pensamento, de mentalidade, a inclusão sempre será falha. Temos que iniciar esse processo de inclusão agora, ele precisa ser sistemático e contínuo’’, conclui o educador. Nesse sentido, é um processo de um trabalho conjunto que possibilita o indivíduo autista ser inserido na escola regular.

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Laura Borges
Realidades Invisíveis

Estudante de Jornalismo na UFRGS e aspirante a fotógrafa. Instagram @lauraborgex