Empreendedorismo

Traçando um novo método

Conheça a forma como mulheres trancistas têm trabalhado diante das barreiras impostas pela pandemia

Jean Carlo
Realidades Invisíveis

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Fotos: Moisés Nobre

De geração em geração, as tranças são passadas de pais para filhos como herança cultural na comunidade negra. Tainara Lino, professora e trancista de 32 anos, de São Sebastião do Caí, lembra que aprendeu a fazer tranças quando tinha oito. Ela conta que, quando sua mãe saia de casa, dizia que não a levaria junto porque seu cabelo estava desarrumado. Frustrada, ela diz que aprendeu a se trançar sozinha para poder sair com a mãe. Valéria Mattos, trancista de 31 anos, de Brasília, diz que nem consegue lembrar o seu primeiro contato com as tranças, pois desde muito pequena sua mãe já trançava o seu cabelo. E são assim as muitas histórias que trancistas contam de como foi o seu primeiro contato com o penteado, ainda muito jovens, por influência de alguém mais velho.

As tranças, muito populares até entre artistas famosos, possuem uma grande importância social. Esse penteado traz a identificação dessa comunidade, resgata sua história e ancestralidade. Com a diáspora, os africanos as trouxeram em seus cabelos e as mantiveram vivas até a atualidade. Aquelas que exercem esse trabalho carregam a missão de preservar e ressignificar esse elemento de resistência da cultura negra. A verdadeira dificuldade surge quando essas mulheres precisam colocar o seu trabalho artesanal, de âmbito cultural, no âmbito profissional.

Com uma jornada de trabalho incerta, que varia de duas a 10 horas com uma mesma cliente, elas exercem o seu ofício de pé. Uma tarefa árdua, que pode causar lesões profissionais como tendinite e varizes nas pernas. Além disso, elas lidam com clientes que cancelam em cima da hora, exigem que os preços sejam mais baratos, e as constrangem dentro de suas próprias casas. Embora algumas profissionais possuam o seu próprio salão de beleza, a maioria é de trabalhadoras informais, que têm outra profissão e usam esta como renda extra. Por conta disso, não há dado algum a respeito de quantas pessoas trabalham com tranças no Brasil. O que se percebe é uma predominância de mulheres nesse setor, que atendem em suas casas ou vão até a moradia de suas clientes que, na maioria, também são mulheres.Valéria lembra que possui uma colega de profissão que afirma ter mais clientes homens, mas não há estimativas quanto a isso.

A pandemia do novo coronavírus tornou a prática de trançar o cabelo mais complicada. Desde março de 2020 receber visitas em casa não é mais recomendado pelas organizações de saúde e essa recomendação afeta diretamente o trabalho de trancistas. Um serviço que era agendado apenas com um lembrete para a cliente lavar e desembaraçar o cabelo antes de trançá-lo, agora é com a exigência do uso obrigatório de máscaras, a proibição de acompanhantes e o aviso de que todos os materiais são devidamente higienizados. Tainara, que sempre abriu as portas da sua casa para receber suas clientes, no início da pandemia, decidiu agendar sua freguesia no salão de um amigo, pois teria uma estrutura melhor para atender com todos os cuidados. Mas o número de clientes reduziu drasticamente, e as poucas que restaram lhe pediam para que fizesse o trabalho em sua casa,como de costume, pois se sentiam mais à vontade. Necessitando do dinheiro e levando em conta que são clientes de longa data e de confiança, Tainara passou a aceitar as condições e voltou a recebê-las em sua casa.

A preferência das clientes em trançar o cabelo em ambientes familiares e que as deixem seguras mostra como esse processo é especial. Muito mais que um penteado, trançar se torna um momento de conexão e de confiança nas mãos que tocam o ori, (cabeça; na língua yorubá). Durante o processo, se inicia um diálogo íntimo e que envolve fofocas, segredos e desabafos. Tainara revela que, nessas horas, não sente medo da doença. Trancistas muitas vezes acabam se tornando “terapeutas’’ de suas clientes. “Às vezes eu fico tantas horas ouvindo os problemas delas que eu penso que são meus e ainda acabo dando soluções para elas”, desabafa Daniela Lopes, trancista de 19 anos, de Porto Alegre.

Daniela, que atende em casa, revela que também não sente medo de contrair o vírus de suas clientes. Essa confiança evidencia a realidade de mulheres que dependem da proximidade com outras para poderem se sustentar, pois, apesar de estarem correndo o risco de contrair coronavírus, esquecem o perigo no momento do trabalho. Com altos índices de desemprego nos últimos tempos, mulheres que trabalhavam como trancistas apenas para terem um dinheiro extra tiveram que fazer desse trabalho a sua única fonte de renda. Esse é o caso da Graziely Rodrigues, estudante de Psicologia que, após terminar seu estágio, decidiu seguir trabalhando como trancista em Porto Alegre para se sustentar. Diferente das colegas, ela expõe que o medo e a insegurança pelo coronavírus bateram à sua porta.

“O acesso das clientes ao meu local de trabalho complicou com a pandemia, sem falar que tem que ter um preparo melhor para atender em casa. Tenho muito medo de atender pelo fato da minha família morar na frente, meu avô e minha avó.” Mas a necessidade falou mais alto, e Graziely trabalha em sua casa encarando os riscos.

Movimentação nas agendas

Com quase nenhum cliente no momento, Valéria conta que antes da pandemia, em seu salão, conseguia atender quatro clientes em um dia. Atualmente só atende um, e não são todos os dias que há clientes. Mas mesmo durante a pandemia, em alguns momentos, o movimento melhorou. O mês de dezembro para quem trabalha com cabelos é sempre uma época muito lucrativa por conta do Natal e Ano Novo. Mesmo que o recomendado seja não sair de casa e evitar aglomerações, muitas pessoas quebraram o isolamento social nas datas comemorativas e procuraram por suas trancistas. Mas o mais surpreendente foi o “segundo dezembro”, como as profissionais chamaram o mês de julho de 2020.

O recebimento do auxílio emergencial fez com que muitas mulheres procurassem trancistas para fazerem seus cabelos. Valéria, que atende no centro de São Paulo, mesmo vendo a oportunidade de ganhar mais dinheiro nesse período, optou por manter seu salão fechado. “A recomendação é ficar em casa, não é momento de ganhar dinheiro, não tem como querer encher o salão e fingir que nada está acontecendo”, afirma a cabeleireira. Formada em Publicidade e Propaganda, atualmente ela tem focado o seu trabalho na produção de conteúdo para internet, e somente nos finais de semana, por necessidade, recebe alguns clientes em sua casa.

As contas chegam. O que der pra pagar a gente paga, o que não der, mais tarde a gente negocia, tá difícil pra todo mundo.

Assim que esses momentos de maior movimento passaram, o trabalho voltou a se tornar escasso.

Esperando por tempos melhores

Daniela atende seus cliente na sua própria casa

Tanto profissionais como Tainara, que trança desde os 14 anos, ou Graziely, que começou na pandemia, lamentam a desvalorização do seu serviço. Existe um estigma social que as impede de serem vistas como empresárias donas do seu próprio negócio. Elas são colocadas sempre na caixa cultural e nunca na de empreendedoras. Valéria conta que, quando precisa informar sua profissão, se apresenta como cabeleireira ou como empresária, pois, quando fala trancista, as pessoas não compreendem ou não a levam a sério.

Daniela ressalta: “trabalho com trança não é um trabalho valorizado!” Mas também diz que ama o que faz: “Eu amo aumentar a autoestima das pessoas, elas sentam aqui e quando se levantam pensam ‘meu Deus eu sou outra pessoa’. E pra mim, trabalhar com isso é incrível.” Ela também diz que não consegue se ver fazendo outro serviço, e esse discurso se repete com muitas mulheres que exercem a profissão.

Graziely pede para que suas clientes se cuidem durante a pandemia e espera que, quando tudo normalizar, ela consiga mais clientes para exercer o serviço que tanto tem gostado. “Agora com essa pandemia vimos o quanto somos dependentes de estar na rua e de conviver com outras pessoas. Quem quer trabalhar com tranças não deve desistir, pois em breve vamos voltar ao normal.”

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Jean Carlo
Realidades Invisíveis

Um estudante de jornalismo, só mais um pouco do mesmo, mas com um diferencial