A PROMESSA

Pedro W. Gois
Realismo Utópico
Published in
6 min readJun 9, 2017

Terceira Parte

A luta corporal foi intensa. Quando Élvio disse que ambos iriam morrer juntos ali, naquele quarto, naquela noite, Ivone agiu por impulso. Tentou retirar a faca das mãos de Élvio. Ele estava preparado para aquele momento. Embolaram-se e caíram no chão. Ivone tentava agarrar os pulsos do ex-companheiro. Élvio tentava desvencilhar-se. Uma disputa frenética pela faca. Uma disputa frenética pela vida. Élvio levantou-se mais rápido. A ex-companheira tentava-lhe agarrar pelo casaco. Desferiu a primeira facada. A segunda, a terceira. Não sabia ao certo quantas facadas haviam sido. Oito. Talvez dez. Ou doze.

Parou. Sentia-se ofegante. Ivone no chão. Imóvel. Ensanguentada. A poça espessa de sangue já formava-se ao lado do corpo, entre a cama e a porta do quarto. Élvio não podia acreditar no que havia feito. Tinha matado Ivone. Aquela piranha, ela mereceu! Ela mereceu, foi a única coisa que passava na cabeça de Élvio. Porque ela tinha que reagir? Por que? Agora já estava feito. Ele tinha matado Ivone. Por Deus!, o que faria?

Afastou-se do corpo. Sentou-se na cama. Ficou imóvel por alguns segundos. O cérebro à milhão. Um fluxo de pensamentos. Precisava por fim aquilo. Ele prometera à Ivone que tudo aquilo acabava. Nenhum dos dois sairia do quarto com vida. Ele iria cumprir? Élvio sentia-se enjoado. Talvez fosse o cadáver de Ivone. Talvez fosse a idéia do suicídio. Não havia outra hipótese. A faca na mão. Sentia o peso dela. Ficou de pé, caminhou pelo quarto, no sentido oposto à porta e ao corpo. Junto à parede oposta. Olhou novamente para a cena. Sentia-se como num filme. Estava tão distante e, ao mesmo tempo, tão próximo daquilo. O que faria?

Não saberia explicar o porque. Simplesmente, o fez. Na mão direita, o cabo da faca. Pousou a lâmina afiada, já suja de sangue, na palma da mão esquerda. Fechou os dedos canhotos a seguir. Uma leve pressão no início, aumentando. Num movimento rápido com a mão direita, puxou o cabo. A lámina prateada, já maculada pelo sangue de Ivone, deslizou rápida pela palma da mão esquerda. Sentiu dor. Podia sentir o corte na própria carne. A lámina que matara Ivone agora cortava-lhe a palma da mão. Sentiu o sangue escorrer pelos dedos.

Seu sangue. Quente. Com ele, começou a escrever na parede branca do quarto. A primeira letra do alfabeto. Espaço. P. Depois o R. O sangue ia escorrendo-lhe pela mão, pelos dedos. Com o indicador, escrevia na parede. Escrevia com o próprio sangue. Aquilo era sinal de amor. Ele iria mostrar. Iria provar pra todo mundo o quanto amava verdadeiramente Ivone. Precisou matá-la, é verdade. Mas foi pra ela aprender. Pra ela acreditar no que ele falava. Élvio amava Ivone e ia provar da forma mais derradeira deste mundo.

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O policial Marco Ribeiro foi quem atendeu o chamado pelo rádio-patrulha da viatura. Um chamado relacionado à violência doméstica, possivelmente com feridos como indicaram pelo rádio, na Estrada Velha do Socorro. Ele era o agente que estava mais próximo do local. Anotou o número do prédio mentalmente e acelerou o Skoda Octavia à mais de 140 km/h pela madrugada adentro, deslizando sobre o alcatrão molhado pela chuva de mais cedo. Em menos de três minutos, estava parado em frente ao endereço fornecido pela central telefónica da polícia. Todo coberto de vidros-espelhados, era um daqueles prédios construídos recentemente por uma dessas construtoras que enriqueceu com as licitações e os contratos junto ao Governo, recebendo verbas públicas durante o grande boom imobiliário que a cidade sofreu na década anterior. Erguido em uma zona mais afastada do centro da cidade, era um empreendimento de luxo. Ali, Marco sabia que era raro este tipo de ocorrência.

Avisou à central pelo rádio-patrulha que já estava no local da ocorrência. Pediu reforços, como era o padrão operacional das equipas de ronda e patrulha policial. Desceu da viatura, fechou a porta e atravessou a rua em direção à entrada do prédio. Podia ver, pelo menos, um morador na janela. As luzes do apartamento estavam apagadas, mas parecia ser a janela do segundo andar. O morador apontava para o andar de cima, o único iluminado aquela hora da madrugada. Marco concluiu que a ligação para a Polícia havia partido dali.

O portão do prédio estava aberto, tal como a porta interna, de vidro. Entrou no hall luxuoso, com mármores e espelhos. Apesar do elevador estar parado no rés do chão, o policial achou melhor subir pelas escadas. Primeiro andar, segundo andar. Terceiro andar, era ali. Abriu a porta das escadas, chegou ao corredor. Duas portas do lado esquerdo, duas portas do lado direito. Raciocinou. A rua estava à sua direita, logo a porta do apartamento seria deste mesmo lado. Checou a numeração, ambas as portas correspondiam ao apartamento 3B.

- Polícia de Segurança Pública, boa noite.

Era a abordagem padrão. Marco sabia disso. Anunciou-se como agente da lei. Bateu à porta. Estava apenas encostada. Lentamente, a porta de madeira abriu-se, revelando uma sala de estar em penumbra parcial. Sacou sua pistola.

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Élvio assustou-se com o grito vindo da sala de estar. Ele ouvira bem. Polícia. Que merda, pensou. Azar? Sorte? Élvio girou sobre os calcanhares, virando-se imediatamente para a porta do quarto. Ficou ali, parado. Não sabe precisar quanto tempo. Podia ouvir os passos pela casa. Aproximando-se. O que ele devia fazer? Deu um passo à frente, distanciando-se da parede e aproximando-se do corpo de Ivone e da porta.

Segundos que pareciam horas. Os passos aproximaram-se. Élvio pode ver alguém no corredor, do outro lado da porta. Apesar da distância pequena — 5 talvez 6 metros, não mais -, não conseguia ver quem estava fora do quarto. Segurava a faca na mão direita. Podia sentir o sangue escorrendo pela mão esquerda.

- Polícia, largue a arma! — o homem gritou. Deu um passo à frente, chegando à altura da porta. A fraca iluminação no quarto fez com que o policial revelasse seu rosto. Era jovem, 25 anos. Não mais.

Élvio não largou a faca. Novamente os segundos demoraram a passar. Sua mente estava vazia. Todo o fluxo de pensamentos havia desaparecido. Toda a adrenalina, o remorso. Não havia nada em sua mente. Vazio. Deu um passo à frente.

- Nem mais um passo, senhor. Largue a arma ou eu atiro!

Foi uma reação. Instinto de sobrevivência, talvez. Ou pelo contrário. Talvez fosse vontade de morrer. Certeza de que somente assim cumpriria sua promessa. Élvio não saberia precisar o verdadeiro motivo que o fez reagir. Simplesmente, ergueu a mão direita. A faca apontada para o policial. Avançou. O primeiro tiro pegou no joelho. Sentiu o impacto. Sentiu a dor. Lembrou da sua carreira como jogador de futebol, encerrada por conta das sucessivas lesões no joelho. Doce ironia da vida. O tiro não impediu seu avanço.

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Marco não estava à espera daquilo. Tudo aconteceu muito rápido. Pelo silêncio na casa, o policial não esperava encontrar ninguém. Sua surpresa ao chegar ao último quarto do apartamento, no final do corredor, foi enorme. Uma mulher caída ao chão. Sangue. Um homem de pé. Olharam-se nos olhos. Marco duvidada que o homem conseguisse vê-lo, mas ele conseguia ver o homem. Perfeitamente. Olhar vidrado, aspecto paranóico. Mandou largar a arma. O homem avançou. Marco disparou o primeiro disparo, de advertência, no joelho. Mas o homem parecia descontrolado.

Marco acertou o segundo no tórax. O terceiro disparo no peito. O homem tombou. A faca, frouxa na mão direita inerte, assumia um tom vermelho-sangue. Mesmo como policial, não podia acreditar naquela cena dantesca. Na parede, ao fundo do quarto — por detrás do corpo do homem à quem ele acabara de balear -, uma mensagem escrita em sangue.

A PROMESSA FOI CUMPRIDA.

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