Bala Perdida

Pedro W. Gois
Realismo Utópico
Published in
6 min readJun 1, 2017

05:59 da manhã. Um dia de semana em uma favela qualquer

O soldado Fábio estava nervoso. Podia sentir o batimento do próprio coração. Podia escutar a pulsação do outro policial, sentado ao seu lado. Podia sentir o cheiro do suor que impregnava o pequeno cubículo. O cheiro do suor dos outros nove policiais sentados ali dentro. Era o exalar de um odor que mesclava ódio e medo. Sequer escutava o que o Capitão falava. Eram as últimas instruções antes da tropa desembarcar do veículo blindado e progredir para o interior da favela. Deveria estar atento, mas nos ouvidos, somente o barulho contínuo do próprio coração, pulsando em um ritmo acelerado, bombeando sangue corpo à dentro. Era o início de mais um dia de trabalho.

Wesley — ou “WL” como era chamado entre os comparsas — acabara de dar o cheiro na última linha de cocaína sob a capa do álbum “Sobrevivendo no Inferno”, do grupo de rap Racionais MC’s. O horário do seu plantão estava próximo do fim. Faltava menos um minuto para ele poder ir para casa, depois de uma longa noite de trabalho. Cocaína, maconha, crack, haxixe. Wesley trabalhava na boca-de-fumo da favela, vendendo drogas para os viciados. Mas, agora, só imaginava o seu descanso em casa. Veria um pouco de televisão, quem sabe até brincaria com o filho antes de dormir, se tivesse um pouco de sorte. Verificou a pistola .40 no coldre, ajeitou a alça do fuzil Ak-47, calibre .762. Levantou-se, entregou o pequeno caderno de contabilidade para um dos comparsas e deixou o local, cumprimentando os colegas que chegavam para iniciar um novo turno. Era o final de mais um dia de trabalho.

Matheus fechou a torneira. Podia sentir o rosto ainda molhado pela água fria da manhã, que descia pelo encanamento da parte mais alta do morro até a pia do seu banheiro. Tateou em busca da toalha, enxugou o rosto. Olhou-se no pequeno espelho à frente. Sentia cansaço, mas não sentia sono. O corpo já estava habituado à acordar diariamente às 4 horas da manhã, horário necessário para conseguir estar no outro lado da cidade duas horas depois, às 6 horas da manhã, servindo café no balcão da padaria em que trabalhava, para os primeiros clientes do dia. Mesmo sem precisar, o corpo habituara-se à rotina. Mateus decidiu aproveitar aquela manhã. Iria até a padaria na esquina do seu beco tomar um café. Mas hoje, iria como cliente. Sorriu. Estendeu a toalha, saiu do banheiro e atravessou o pequeno cubículo do barraco, que servia tanto de quarto, como sala e cozinha. Calçou o chinelo ao lado da porta e saiu. Era o início do seu dia de folga.

06:01 da manhã

O soldado Fábio foi o segundo homem à desembarcar do veículo blindado, carinhosamente chamado de Caveirão pela polícia. Mal sentiu o impacto da sola do coturno do solo, correu. Atravessou a rua rápido. Corpo reto, olhar determinado. O Fuzil Automático Leve — FAL calibre .762 empunhado à frente do peito. Chegou ao outro lado da rua, abaixou-se rente ao muro. Podia ver, pelo canto do olho, a fila de policiais vestidos de negro que formava-se atrás de si, à medida de os companheiros desembarcavam do Caveirão e, assim como ele, atravessavam a rua rapidamente. O policial à sua frente avançou até a esquina. O soldado Fábio atrás. Dobraram à direita. Estavam entrando na favela. Tudo parecia tranquilo nos dez segundos iniciais. Até ouvirem o barulho dos fogos de artifício.

Wesley “WL” descia a rua tranquilo. Sentia-se cansado. O fuzil pendia ao lado do corpo, suspenso pela alça junto ao ombro direito, apontado pra baixo. Pouca gente na rua. As primeiras pessoas começavam à sair de suas casas. A maioria estava indo trabalhar, pensou. Ele estava indo pra casa. Finalmente. Sentia os olhos pesados. Sentia sono. Podia imaginar sua cama. Confortável… O barulho interrompeu o pensamento. Escutou os fogos-de-artifício. Imediatamente, os sentidos voltaram à ficar alerta. Não era bom sinal. Escutar fogos-de-artifício em uma favela nunca é bom sinal. E se você for vagabundo, é ainda pior. Wesley saiu do meio da rua, buscou abrigo próximo à um carro estacionado. Forçou a vista em direção ao início da rua. Será que era a polícia?

Matheus saiu de casa. Sentia-se feliz. Não sabia bem se era por ser o dia de sua folga ou pelo fato de estar noivo da linda Luciene, passista da escola de samba do morro. Talvez fosse pelos dois motivos. Sim, era pelos dois motivos, decidiu-se Matheus. Afinal, ele só podia ir tomar café despreocupadamente aquela hora porque estava de folga. Iria aproveitar aquela ida à padaria para comprar um doce qualquer pra Luciele. A mulata adorava! Caminhou mais alguns metros antes de escutar o barulho dos fogos-de-artifício. Nunca era bom sinal, pelo menos, não na favela. Matheus sabia disso, mas já estava habituado. Fazia parte da rotina. Em sua cabeça, passou a ideia de voltar pra casa. Decidiu que não. Estava mais próximo da padaria, iria pra lá. Era o que qualquer favelado faria. Matheus continuou.

06:02 da manhã

O soldado Fábio levantou-se, quase ao mesmo tempo do policial à frente. Sincronicidade. Era isso que eles aprendiam no curso de operações especiais. Precisavam agir em conjunto, eram uma unidade. Eles treinavam arduamente aquilo. Com um só intuito: ser perfeito na hora da execução. Cada detalhe. Para quem olhasse de fora, toda a movimentação dos policiais poderia sugerir a coreografia de um ballet mórbido e violento. Movimentos idênticos. Sincronicidade em perfeição. Mas não naquele dia. Talvez tenha sido um erro que tenha impedido o soldado Fábio de ser atingido por um tiro. Talvez tenha sido a sorte, apesar do soldado Fábio achar que não. Não existe sorte na hora da morte. Ou era a hora ou não era. No caso do soldado Fábio, a hora ainda não tinha chegado. Não foi sorte. Simplesmente, não era a vez dele. Sangue. O soldado Fábio não sabia bem da onde vinha. Sangue em seu rosto. Uma fração de segundos até entender. O policial à sua frente havia sido atingido. Uma mistura de sentimentos. Adrenalina. Impotência. Ódio. Desespero. Fez aquilo que qualquer pessoa, manuseando um fuzil, faria. Apertou o gatilho. Disparou.

Wesley “WL” tinha certeza. Era polícia. Falta de sorte, uma operação policial bem no final do seu plantão. Filhos das putas, pensou. Permaneceu abaixado atrás do carro. Olhou para trás. A rua completamente deserta. As poucas pessoas que circulavam aquela hora já tinham retornado pra sua casa. Ou buscado refúgio em algum lugar seguro. Era isso que ele devia fazer. Pensou. Deveria voltar pra boca de fumo? Correr pra casa? Mas e a arma? O pensamento foi interrompido. Sentiu o barulho zunindo próximo a orelha direita. Sentiu o deslocamento do ar. Abaixou-se. Tinham disparado contra ele. Tinha certeza. Olhou novamente para o final da rua. Podia ver alguma movimentação na esquina. Uma farda preta. Respirou, abaixado por detrás do carro. Resolveu que ia buscar proteção. Precisava ganhar tempo. Levantou-se rapidamente. Sequer fez a mira. Apenas apontou o fuzil para o início da rua. Na direção dos policiais. Apertou o gatilho. Disparou.

Matheus chegou à esquina. Entrou na padaria. Vazia. Atrás do balcão, podia ver um funcionário, provavelmente o dono, escondido. Sentiu, pela primeira vez, adrenalina. Não sentiu medo. Ouviu o barulho dos tiros lá fora. Uma rajada. Eram tiros de fuzil, pensou. Curiosidade. Precisava ver. Sacou o celular do bolso. Acionou a câmera. Baixa qualidade, mas suficiente para a situação. Espreitou a rua. Vazia. Lentamente, caminhou para frente. O primeiro passo. O segundo passo. Câmera ligada, filmando. Chegou à rua. Apontou o celular em direcção ao final da rua, à entrada da favela. Era por lá que os policiais viriam. Não conseguia ver nada. Um estrondo ali perto. Recuou novamente para dentro da padaria. Mais disparos. Silêncio. Era uma boa oportunidade. Colocou metade do corpo para fora da padaria. Sentiu o impacto seco na altura do abdómen. Caiu no chão. Tentou respirar. Não conseguia. Sentia o gosto do sangue na boca. Metade do corpo para fora da padaria, metade para dentro. Esparramado no chão. Inclinou a cabeça. Viu a poça de sangue formar-se ao seu redor. Seu próprio sangue. Tentou virar-se de bruços. Impossível. Não deu tempo de pensar em muita coisa. Só duas palavras vieram-lhe à cabeça. Bala perdida. Uma golfada de sangue. A visão escureceu.

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